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Maria Benedita dos Santos: O símbolo de 300 anos de história

Texto de Lícia Souto

Agosto veio colorido, ao som de atabaques, agogôs, pandeiros e tambores. Foi marcado a passos fortes e figurinos confeccionados à mão. Agosto foi popular, no sentido mais literal da palavra, foi o mês das pessoas e da cultura, ou melhor, das pessoas que fazem a Cultura Popular.

Em todo o Brasil celebra-se durante o mês de agosto as diversas tradições da Cultura Popular, como Maracatu, Reisado, Bumba Meu Boi, Fandangos, Guerreiro, entre outros. Mas essas tradições vão muito além de um mês comemorativo. O termo ‘cultura’ é conceituado academicamente como um conjunto de produções elaboradas pelos humanos. Portanto, a Cultura Popular é também um grande conjunto de saberes, ideias, obras, elementos e manifestações resultantes dessa interação entre indivíduos. Do folclore, que é um apanhado de lendas e mitos transmitido entre gerações ao artesanato, cabem centenas de expressões culturais que se tornam herança social do povo, que passadas de região para região, vão se modificando e sendo adaptadas por essas pessoas que absorvem determinada tradição e agregam a ela a regionalidade peculiar de cada lugar.

As representações de Cultura Popular que conhecemos hoje constituem uma identidade cultural e, consequentemente, uma memória coletiva e o sentimento de pertencimento, porque naturalmente gostamos e nos orgulhamos de fazer parte de grupos sociais, de ser parte de algo. Mas, para pertencer é necessário conhecer. É do engenho que nasce a constituição social de Alagoas. A economia açucareira teve forte influência na formação territorial de todo o Brasil, especialmente na atual região Nordeste. A fabricação e comercialização da cana permitiu que a colônia alcançasse grande desenvolvimento em todas as suas dimensões.

Alagoas e Pernambuco foram parte importante dessa história, e por muito tempo protagonizaram esse caminho juntos, como uma só Capitania, que tinha como atividade principal o cultivo da terra; até a separação dos estados, quando Alagoas emancipou-se de Pernambuco em 1817. Por isso, esses dois estados vizinhos compartilham até hoje diversas manifestações culturais em comum, com particularidades da formação social de cada um.

A partir da complexa estrutura dos engenhos de cana-de-açúcar, desenhou-se um povoamento e uma cultura, devido a extensa produção que demandava uma grande quantidade de trabalhadores, e a depender do porte do engenho, era possível encontrar ali uma pequena população.

Configurada pela então chamada ‘casa-grande’, onde moravam o proprietário do engenho e sua família, que representava a figura política e a administração, e mais afastado da Casa, encontravam-se as senzalas. Diversas manifestações culturais que conhecemos hoje nasceram nas senzalas. Surgidas de uma mistura das expressões trazidas por escravos africanos, da cultura portuguesa colonizadora e do catolicismo predominantemente seguido pelos senhores de engenho, representada pelas inúmeras capelas dispostas nessas propriedades. Muitas dessas capelas, inclusive, ainda podem ser encontradas no interior de Alagoas e Pernambuco.

Desses retalhos de crenças, constituiu-se um sincretismo que resultou na formação religiosa da sociedade da época. Mesmo proibidas e sujeitas a um processo de aculturação, que é a modificação ou descaracterização da cultura de um indivíduo, as manifestações do candomblé conseguiram resistir e se perpetuar pelo tempo, bem como as danças, que eram uma forma de libertação para aquelas pessoas escravizadas. Decorrente do processo de aculturação, alguns autos foram perdendo seu caráter de dança mágico-religiosa, de luta entre tribos, e dessa fragmentação surgiram algumas das expressões mais conhecidas até hoje, como Reisados, Maracatu, Guerreiros, entre outros.

Trezentos anos depois, em frente a uma loja Renner, no Maceió Shopping, onde foi montado um pequeno espaço para uma exposição fotográfica em homenagem à Cultura Popular, Maria Benedita dos Santos, de 64 anos, se apresentava com seus filhos, netos e outros integrantes do grupo Mané do Rosário. As pessoas se amontoavam nas portas das lojas, para dar espaço a apresentação do grupo lendário. Diferente das outras expressões mais conhecidas, a exemplo do Coco de Roda, o Mané do Rosário tem sua própria lógica, não é coreografado, e os integrantes seguem à vontade para correr e rodopiar livremente, ao som de pífano, em homenagem ao seu padroeiro São José do Poxim. Os homens e mulheres dançam, com longas saias, chapéus de palha e panos coloridos enrolados na cabeça, como uma espécie de véu, para que não sejam reconhecidos.

O mistério do rosto não revelado e a liberdade dos passos, cativa a atenção do público. Para muitos ali, a expressão jamais havia sido vista, mas esse folguedo surgiu no ano de 1762, no povoado do Poxim, em Coruripe, à 80km de Maceió. Não à toa, um dos grupos mais antigos de Alagoas carrega uma história mística: no ano de seu surgimento estava sendo construída a igreja de São José, e na festa em homenagem ao santo apareceram dois homens mascarados que brincaram e dançaram na porta da igreja, a identidade deles, no entanto, permaneceu desconhecida, e todos os anos seguintes, na ocasião da festa, a população ficava a espera para ver os mascarados dançarem, mas ninguém nunca descobriu quem eram.

A população então começou a se reunir e copiar os trajes, modos e danças dos homens, e assim o folguedo se perpetuou até a geração de dona Benedita, que hoje é, orgulhosamente, Mestra Traíra do Mané do Rosário e Patrimônio Vivo de Alagoas.

Após a apresentação do grupo, formou-se um aglomerado de gente ao redor da Mestra para cumprimenta-la e tirar fotos, mesmo ofegante e suada por causa da dança, Maria Benedita atendeu, simpática, a todas as pessoas e posou com um largo sorriso para as selfies desconhecidas. Perguntei se poderíamos conversar, mas ela disse que já estava indo embora, mesmo assim aceitou que eu a acompanhasse enquanto descia no elevador.

Então entramos no elevador, eu, dona Benedita, um de seus filhos e mais algumas pessoas do grupo. Liguei o gravador para registrar suas repostas e logo o filho dela abriu um sorriso e pediu aos amigos que fizessem silencio porque a mãe dele estava sendo entrevistada.

A Mestra relembrou a história que originou o folguedo, “Eles cobriam o rosto para poder chegar até a porta da igreja, que na época dos escravos, os negros não podiam ir até lá, então assim eles começavam a brincar, as nove noites da festa. […] do tempo em que eu nasci, a minha avó, dona Josefa do Carmo, era quem brincava, ela morreu (1972) e eu fiquei tomando conta, brinquei desde criança.”. O elevador abriu e nós saímos, outros filhos e seus netos já estavam à espera de dona Benedita. Quando perguntei se os netos que estavam ali também dançavam, ela assentiu. “Para mim, é maior emoção da minha vida, era da minha avó e agora eu espero que fique para os meus filhos e netos.”, conclui.

De acordo com a Lei Nª 7.172, de 30 de junho de 2010, para ser considerado Patrimônio Vivo do Estado, a figura em questão precisa deter conhecimentos e técnicas necessárias para a preservação dos aspectos da cultura tradicional ou popular de uma comunidade, no caso de Alagoas estabelecida há mais de 20 anos, repassando assim às novas gerações os saberes relacionados as danças e folguedos (literatura, gastronomia, artesanato, entre outras práticas da cultura popular).

A paixão pelo que faz e a forma como se devota, desde criança, a uma tradição de seus antepassados negros e escravos, é fácil de identificar na voz e no sorriso de Maria Benedita dos Santos. Quanto ao desejo de ensinar e repassar o que aprendeu aos seus filhos e netos, é nítido no discurso e evidente nas próprias crianças, que já a acompanham e se caracterizam de acordo com a tradição apresentada pela avó. Maria Benedita dos Santos é os 300 anos de história, é o Mané do Rosário, é o negro alagoano que um dia foi silenciado, mas hoje não. Maria Benedita é Patrimônio Vivo de Alagoas. É a história viva que dança com seus próprios pés.

Produzido em 2019.*

 

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