À Revista Alagoana, a empreendedora cultural explica como criatividade e consciência se articulam na construção de novas narrativas negras
Por Maryana Carvalho com supervisão de Bertrand Morais

Para a população negra, a criatividade nunca foi apenas um ato de expressão; é uma ferramenta de sobrevivência, autonomia e luta política. É com essa tese que Salete Bernardo, comunicóloga e produtora cultural, abre a conversa com a Revista Alagoana.
A entrevista acontece na semana que une o Dia da Criatividade (17) e o Dia da Consciência Negra/Morte de Zumbi (20), datas as quais conectam-se e é a personificação da nossa entrevistada. Mulher negra, mãe e bissexual, ela é presidenta do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Conepir), militante do Movimento Negro Unificado (MNU) e, ao mesmo tempo, a empreendedora à frente da Dagô Produções.
Aos 51 anos, Salete discute os desafios de ser uma empreendora cultural em Alagoas, a importância das políticas públicas para o audiovisual, o silenciamento da academia e como sua identidade de mulher negra e bissexual se conectam com a sua luta para um futuro com mais “liderança negra em Alagoas”.
R.A: Antes de tudo, gostaríamos de saber um pouco da sua história. Quem é Salete Bernardo?
Salete Bernardo: Sou mais conhecida como Sal Bernardo. Tenho 51 anos, dois filhos, sou uma mulher negra, bissexual de terreiro. Entrei no movimento negro aos 14 anos para formar um bloco afro com amigos do bairro, que hoje é a Banda Afro Mandela. Lá aprendi muita coisa que a escola não nos ensinava na época, como quem eram Mandela, Zumbi, Aqualtune, Dandara, Acotirene, Lélia Gonzalez e Angela Davis.

R.A: Salete, sua entrevista será publicada entre o Dia da Criatividade (17/11) e o Dia da Consciência Negra (20/11). Dessa forma, em sua trajetória como comunicóloga, produtora e militante, como você vê a criatividade atuando como uma ferramenta política e de sobrevivência para a população negra?
Salete Bernardo: Se não fosse a criatividade, nossa cultura de matriz africana teria morrido com a escravização dos nossos. Imagine que, em espaços de marginalização, a criatividade transforma experiências de opressão em voz, memória e ação coletiva – como as cotas raciais em universidades e em editais públicos. A criatividade gera microempreendimentos culturais (produtoras independentes, editoração, audiovisual, moda, artesanato) que criam renda e autonomia.
R.A: Você é empreendedora cultural da Dagô Produções e vive a cultura tanto como ofício quanto como algo político. Quais são os desafios e as conquistas de ser uma mulher negra à frente de um empreendimento cultural em Alagoas?
Salete Bernardo: O maior desafio é o patrocínio. As grandes marcas acreditam que não vendemos, então dependemos muito de editais – e, graças às cotas, conseguimos ganhar alguns. Outro desafio é manter o equilíbrio entre vida pessoal, maternidade, cuidados e as demandas de liderar projetos. Como muitas mulheres negras, ficou comigo a responsabilidade de cuidar da minha mãe, de 87 anos, com Alzheimer.

A potência está em levar outras mulheres conosco. Somos uma empresa vocacionada, e nosso lema é trabalhar priorizando uma equipe diversa, acolhedora e colaborativa. Isso cria uma grande rede com artistas, militantes, conselhos culturais, universidades e coletivos periféricos, fortalecendo a circulação de saberes.
R.A: Como mestranda em Linguística, você pesquisa uma área em que discurso, política e identidadese cruzam o tempo todo. De que forma você percebe o uso da língua como instrumento tanto de silenciamento quanto para a afirmação da negritude?
Salete Bernardo: A academia nos silenciou e nos tornou invisíveis por muito tempo. Fazer este mestrado é, antes de tudo, uma conquista – só agora, aos 51 anos, consegui realizá-lo; depois de criar meus filhos, ter renda e um pouco de estabilidade. A língua e os efeitos de sentido que ela produz fazem com que muitos não saibam o que é ser negro, mas também nos permitem não aceitar passivamente o que nos é imposto. Uso a linguagem como prática de empoderamento de mulheres negras, pessoas LBGTQIAPN+ e da periferia.
R.A: Como você, sendo uma mulher negra e bissexual, enxerga a intersecção dessas lutas dentro dos próprios movimentos?
Salete Bernardo: As lutas por raça, gênero e orientação sexual não são independentes; elas se cruzam na construção de identidades, estratégias e demandas. Muitos movimentos ainda têm conflitos e tensões internas, o que é triste, porque não percebem que juntos somos mais fortes. Mas vejo cada vez mais nossa presença e fortalecimento dentro dessas pautas, embora ainda existam movimentos machistas e sexistas.
R.A: Salete, para muitas mulheres negras no Brasil, a simples decisão de ser mãe e de criar seus filhos com vida e dignidade já é um ato de resistência. Como a sua maternidade (sendo mãe negra e LGBT+) reconfigurou ou potencializou sua atuação como militante antirracista e LGBTQIA+?
Salete Bernardo: Minha militância antirracista começou na pré-adolescência. Descobri-me bissexual quando meu filho mais novo tinha seis anos e, a partir daí, compreendi a LGBTfobia. Fui perseguida no trabalho, familiares pararam de falar comigo, e percebi que ser negra e bissexual aumentava ainda mais minha responsabilidade com as minorias.

R.A: Em um país onde a imagem de pessoas negras ainda é moldada por estereótipos, como você percebe o papel do audiovisual na construção de imaginários mais justos e plurais?
Salete Bernardo: O audiovisual é fundamental para mudar o imaginário cultural em que pessoas negras aparecem apenas como motoristas, domésticas ou bandidos. Por isso são tão importantes as políticas públicas culturais, para que mais diretoras e diretores negros falem sobre nós e nos representem – sem que outros precisem falar por nós.
R.A: Salete, você é militante do Movimento Negro Unificado e atualmente presidenta do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial. Nesta Semana da Consciência Negra, em que a pauta racial ganha mais visibilidade, como você enxerga o papel dessas duas instituições na construção de políticas, narrativas e ações que realmente impactam a vida da população negra em Alagoas? E de que forma sua atuação pessoal transita entre esses dois espaços?
Salete Bernardo: As duas instituições têm papel essencial na representação das necessidades da sociedade civil, tanto politicamente quanto culturalmente. Participamos da construção da lei de cotas para concursos públicos estaduais e municipais e, recentemente, conquistamos cotas na Uncisal e na Uneal. Conseguimos revisar o Programa Nota 10, aumentando o valor para estudantes autodeclarados negros. Estamos lutando para que Maceió revise a lei do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial, já que somos a única capital do Brasil sem conselho. O Conepir também articula com os municípios do estado que ainda não criaram suas coordenações de promoção da igualdade racial.
Minha atuação transita entre a articulação política – pensando estratégias para fortalecer nosso povo – e o trabalho pessoal, com formações, principalmente em educação antirracista.
R.A: Salete, você atua em várias frentes: da presidência do Conepir à realização do Festival Oriabá, da sala de aula ao ativismo LGBTQIA+. A partir dessas experiências, que caminho você busca construir? Se o Dia da Criatividade é sobre novas ideias e o Dia da Consciência Negra reforça a importância da memória e luta, que futuro você acredita estar ajudando a moldar com as ações que realiza hoje?
Salete Bernardo: O caminho que venho construindo há mais de cinco anos é o de repassar meu conhecimento para mais pessoas negras, ampliando a presença e a liderança negra em Alagoas, sobretudo de mulheres LBGTQIAPN+. Busco um futuro com uma juventude consciente de sua negritude, atuante nas causas antirracistas e protagonizando narrativas reais e bem-sucedidas.