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Ana Paula: a luta pela sobrevivência e resistência das únicas Taieiras de saber original em AL

Texto de Bertrand Morais

Desembarco da van numa esquina de uma avenida repleta de palmeiras imperiais em seu canteiro. Era uma atípica manhã de outono do mês de maio – tradicionalmente chuvoso em Alagoas – com tempo ensolarado e de poucas nuvens.

Não demorou muito para eu reconhecer uma pessoa vindo em direção a mim, certamente, era a pessoa com quem marquei naquele local. A blusa a qual ela vestia me deu a certeza que o protagonismo cultural daquela cidade estava vindo ao meu encontro.

Comentei que havia reconhecido-a pela blusa do Focuarte. Ela gargalhou e retrucou dizendo que esperava acontecer o mesmo com ela, mas argumentei que a minha estava suja, impossibilitando-me vestí-la naquela ocasião. Seguimos em direção a casa dela perto do nosso ponto de encontro.

A Revista Alagoana traz o perfil de Ana Paula das Taieiras de São Miguel dos Campos.

Logo após atravessarmos o portão dela, ela comentou que seu sonho era abrir seu próprio negócio com a venda de lanches ali mesmo onde estávamos – numa sala virada pra rua – mas eram planos de um futuro ainda sem data. Em seguida, chegamos numa área de terra que cerca a frente e lateral da casa, formando um L, com algumas vegetações ocupando o espaço, onde ela chama de “meu pequeno sítio”. Ali é ambiente também para dois cachorros vira-latas alertas e dóceis em meio às plantações manuais e orgânicas.

Ao sentarmos no sofá, após breves apresentações e assuntos de pouco valor, ela me mostra uma papelada, onde segundo ela habita seu futuro destino, mas já está entregue nas mãos de Deus. Com muita satisfação e euforia, ela mostra-me cartas de recomendações, certificados, documentos pessoais, fotos e desenhos impressos, além de muitas outras documentações. Com tudo isso, o propósito é conseguir realizar o grande e necessário objetivo da vida dela: oficializar-se como mestra do único Grupo genuíno de Taieiras de Alagoas.

 

Quando olhamos a trajetória do folguedo mencionado acima vemos a importância deste ser devidamente valorizado. Em 1760 foi documentado no livro Relação das Faustíssimas Festas de Francisco Calmon o primeiro registro no Brasil das Taieiras, na Bahia. Tradição advinda dos escravizados que apesar da abolição da escravatura, o povo negro brasileiro com suas ancestralidades continuam sendo perseguidos por racismo estrutural, termo que gerou livro do pesquisador Silvio Almeida.

Ana Paula lamenta não ter tido muito tempo ao lado de Nair da Bertina – a Baronesa negra de São Miguel e rainha oficial das Taieiras – a qual faleceu aos 89 anos. Ela passara a integrar, definitivamente, o grupo do referido folguedo em 1991, ano antes ao que Nair falecera. Porém teve na “Tia Ceiça” sua professora e mestra, a qual bebeu da fonte nos tempos de Nair viva e ativa no folguedo, assim podendo transmitir muitos dos seus conhecimentos.

Com satisfação, Ana Paula, 45 anos, revela que tem voltado a estudar pelo EJA (Educação de Jovens e Adultos), após ter parado os estudos no 9° ano do ensino fundamental. Garante-me que este passo que deu em sua vida, tem trazido muita alegria, ocupação e estímulo em sua vida quase solitária, no entanto, preenchida de muitos objetivos, dos quais cuidar de sua única filha e de suas idosas da Taieira, mesmo que a distância, são alguns destes.

Uma curiosidade bem interessante que pude notar sobre Ana Paula é a forma que ela consegue transitar por crenças diversas. Não há dúvidas que ela é uma mulher de muita fé. Mas consegue enxergar Deus nos variados credos, desde ao óleo ungido tradicional das igrejas protestantes até ver sua própria personalidade relacionada à Iansã, orixá de cultos afro-brasileiros.

Não podendo deixar de mencionar sua devoção também aos santos padroeiros das Taieiras – Nossa Senhora do Rosário e São Benedito – santos católicos dos negros. A Taieira alagoana é cultura vinda de Sergipe que, ao ser trazida a Alagoas, ganhou identidade e personagens próprios, como os desenhos de Roniekson nos mostra um por um desses:

 

A cor rosa é a preferida de Ana Paula e tem prioridade em diversos detalhes de sua vida. Vai da jarra que serve o suco de goiaba roseado na hora do almoço, chegando ao batom que paira em seus lábios de feições delicadas, mas por onde sai palavras aceleradas de alto eco e voz grave que, aos ouvidos mais sensíveis, podem parecer sons de descargas atmosféricas vindas do céu tocando à terra firme.

   Oh senhor secretários                      

 Nada temos para lhe dar                 

     Temos nosso trabalho                    

Para lhe acompanhar                

                    

          Lá na Bahia ô

          No canjerê de lá

             As africanas

              Todas elas são iguais

Mas nem tudo anda cor de rosa na vida de Ana Paula. O desemprego bateu-lhe a porta e, hoje, ela sobrevive com o valor de R$89 reais que recebe do Bolsa Família, programa federal para pessoas de baixa renda. Em suas mãos, ela mostra contas básicas como de energia e água atrasados. Solidariedade familiar já faz parte de sua realidade.

Não tem sido fácil para ninguém sobreviver em meio a uma pandemia global. Tais adversidades ameaçam a segurança alimentar, moradia e sonhos de muitos. No caso de Ana Paula Rocha Lins, que coordena o único Grupo de Taieiras de saber original do estado de Alagoas, até a cultura passa a sofrer restrições com a paralisação de ensaios e o adiamento de materializações como a gravação de um disco do grupo popular.

Entretanto, com a abertura do Edital do Patrimônio Vivo de Alagoas 2021 dispondo de três vagas, o sorriso da esperança volta a estampar o rosto de Ana Paula e, certamente, de tantos outros nomes espalhados por nosso querido estado de Alagoas. As Taieiras continuam e continuarão a existir e resistir por amor à identidade alagoana.

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