Gênero musical se tornou um meio de luta para quem busca visibilidade e autenticidade em uma cultura dominada pelo mainstream.
Texto da estudante de jornalismo Giovanna Dantas
A música, enquanto expressão cultural, é fortemente influenciada pela dinâmica entre o underground e o mainstream. A cultura underground, que abrange gêneros como punk, hip-hop alternativo e eletrônica experimental, não é apenas um espaço de criação artística, mas também um campo de resistência às normas estabelecidas pelas indústrias culturais.
Ao analisar as diferenças entre underground e mainstream, questiona-se como essas categorias são construídas e consumidas. O consumo segmentado (underground) frequentemente se apresenta como uma alternativa autêntica, enquanto uma estratégia de consumo amplo (mainstream), está sempre em busca por lucro e maior aceitação, podendo comprometer a essência artística em prol da popularidade.
A diferença entre os dois segmentos se torna evidente quando consideramos as estratégias de consumo adotadas pelas indústrias culturais, que moldam a forma como a música é armazenada, distribuída e, consequentemente, acessada pelo público.
A forma como os gêneros são comercializados e promovidos reflete não apenas questões estéticas, mas também dinâmicas de poder e hierarquia na sociedade. O acesso facilitado a plataformas digitais, por exemplo, democratizou a distribuição musical, permitindo que artistas da cena underground alcancem públicos mais amplos, mas também gerou novas formas de competição e apropriação.
Ao falar sobre o underground, o rap chama a atenção por dar voz às pessoas que querem ser ouvidas e que sentem nesse estilo musical, derivado do movimento hip-hop — um conjunto cultural que também inclui a dança, a pintura e o DJ —, uma oportunidade para falar sobre sentimentos e fazer críticas sociais necessárias.
Voz das periferias: o rap como canal de expressão e alívio emocional
O rap, que surgiu nas ruas de Nova York nas décadas de 1970 e 1980, é hoje um movimento global que ultrapassa fronteiras. No Brasil, principalmente nas periferias, a cultura hip-hop se consolidou como uma voz ativa das juventudes que buscam no som e na letra uma maneira de falar sobre suas realidades.
Lucas Malcone, de 25 anos, é músico repentista, poeta marginal e psicólogo. Ele descreve como sua infância no bairro Benedito Bentes, em Maceió, foi marcada por preconceito e piadas ofensivas relacionadas à sua identidade, o que o fez sentir-se desrespeitado e retraído. Além disso, a violência no local o levou a passar mais tempo em casa. Quando interagia com os outros, sentia-se desconfortável devido às atitudes homofóbicas e, por isso, se isolava ainda mais.
A música sempre foi uma forma de expressão poderosa capaz de transformar emoções e realidades em algo perceptível. No caso do artista, a motivação para começar na música, especialmente no rap, veio da necessidade de se comunicar e de dar voz às suas vivências. Desde muito jovem, ele sentia que a música era uma maneira de traduzir o que via e sentia, uma forma de colocar para fora tudo o que ficava guardado dentro de si.
“O que me motivou a começar na música foi a necessidade de me expressar, de falar a respeito de muita coisa que eu via que estava errada e que eu gostaria que tivesse cada vez mais visibilidade. Entendendo o meu contexto, meu local, o que me afeta e o que não me afeta. Essa é a maneira de me expressar. Busco sempre colocar para fora, de forma integrativa, com o potencial de cura que vem junto dessa expressão musical”, explicou o artista.
Malcone também contou como foi a escolha de seguir sua carreira com o rap. “Sempre me identifiquei com esse gênero musical porque fala diretamente com a minha essência. Admirava os artistas e a cultura de rua que, com sua autenticidade e intensidade, passaram a fazer parte de quem eu sou”, disse.
O desafio de ser um artista LGBTQIAPN+ na cena hip-hop em Maceió
Ser um artista LGBTQIAPN+ no cenário do rap não é uma jornada fácil, ainda mais quando se trata de um cenário vivido em uma cidade marcada pelo coronelismo como Maceió, onde a homofobia, o machismo e outras formas de opressão ainda têm uma presença marcante sobre a sociedade. O preconceito, o estigma e a busca pela aceitação são desafios que, constantemente, são enfrentados por muitos que ousam quebrar normas e expressar suas identidades de maneira autêntica.
Malcone revela sobre a trajetória difícil que percorreu até os primeiros passos na música. Ao falar sobre sua infância, ele relembra os primeiros contatos com o universo do rap e as batalhas de rimas, onde, além de competir com outros artistas, também teve de enfrentar a discriminação e a exclusão, mas isso não o impediu de seguir com a vontade de iniciar a carreira no rap.
“Quando comecei, o que mais me afetava era ver muito preconceito, muitas atitudes que me faziam sentir ainda pior comigo mesmo. Eu já estava muito confuso, com muitas questões internas sobre minha identidade e esse ambiente só piorava a minha perceção sobre mim. Com o passar do tempo, descobri o poder da minha voz, que eu poderia falar a respeito do que acreditava e que iria ser respeitado através disso, independente de qualquer coisa”, lembrou o multiartista.
O músico relatou como o rap se tornou um verdadeiro salvador em sua vida. “Em vários momentos em que eu estava muito para baixo, muito vulnerável, frustrado e angustiado de diversas formas, principalmente em relação à minha saúde mental, produzir arte me possibilitou enxergar para além. Eu não estava mais tão preso aos meus sentimentos negativos”, comentou.
Para ele, a produção artística foi uma forma de olhar para o futuro, além da dor. “A expressão me fez vislumbrar novos cenários, novos contextos, não só para mim, mas também para os meus irmãos, para as pessoas ao meu redor. Foi como se eu pudesse acreditar mais uma vez”, confessou.
Atualmente, para Malcone, com a evolução da cultura e a expansão das informações por meio da internet, o preconceito diminuiu. No entanto, ele conta que esse fato acontece mais dentro de algumas bolhas sociais “Eu sinto, sim, que houve uma melhora na redução dos casos de homofobia, mas não tanto quanto dentro da própria bolha, sabe? Fora dela o pessoal ainda julga muito, discrimina e sempre que tem a oportunidade fazer um comentário a respeito, faz com aquele olhar reducionista ilimitado”, desabafou.
Marginalização do rap: o preconceito com o gênero advém do racismo estrutural
A visão predominante de que o rap é parte de uma cultura underground e marginalizada se reflete não apenas em seu formato, mas também nos estigmas e preconceitos que ainda cercam suas raízes. Em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural, o gênero musical, como uma expressão predominantemente preta, frequentemente é visto com um olhar negativo que associa seus consumidores a atitudes criminosas, violentas e rebeldes.
“A cultura do hip-hop é marginalizada porque é uma cultura preta”, afirma Malcone. Ele explica que essa marginalização é consequência de um sistema racista e colonizador que tem a tendência de demonizar tudo que se relaciona com a população negra. “Assim como muitos outros movimentos culturais ligados à nossa ancestralidade, o hip-hop carrega o peso de ser associado a estigmas e estereótipos. Isso é reflexo de uma população que prefere marginalizar do que entender”, pontuou.
A marginalização do hip-hop não se restringe à forma como é visto por uma parcela da sociedade, mas também na maneira como é tratado pela indústria musical e até mesmo pelas políticas públicas. “As dificuldades na produção, elas se dão para mim mais no âmbito de ser uma produção artística como um todo, porém mais especificamente por ser uma produção que faz referência ao hip-hop, que é o rap”, contou o repentista.
Segundo o artista, o principal obstáculo está no fato da sociedade ainda ver o hip-hop como algo marginal, algo distante da ideia de uma carreira sólida e rentável. “O desafio ainda é você ser considerado uma possibilidade de viver da sua arte. O que é uma grande adversidade para mim, visto que isso é enxergado enquanto uma exceção e não uma regra, pois poucos vão conseguir ter uma vida confortável vivendo da sua arte”, explicou.
A realidade de muitos rappers, não só em Maceió, mas também no Brasil, é marcada pela dificuldade de sustentar uma carreira artística, especialmente no hip-hop. A percepção social criada por Malcone evidencia as barreiras enfrentadas pelos artistas do gênero, que não têm o mesmo reconhecimento ou valorização que outros estilos musicais.
Segundo ele, para manter uma trajetória no hip-hop, é necessário investir dinheiro, tempo e energia em produções que nem sempre geram retorno financeiro imediato, o que leva muitos a buscar outros empregos para se sustentar. “O desafio é a precarização, a falta de incentivo. Existe apoio, mas ele é insuficiente”, concluiu o artista, ressaltando que o fomento à cultura no Estado ainda não atende de maneira ampla às necessidades dos artistas locais.
A cena underground de Maceió, apresentada nesta reportagem pela resistência LGBTQIAP+ no hip-hop, é um exemplo claro de como a música pode ser uma ferramenta poderosa de luta e afirmação de identidade, dando voz a uma parcela da população historicamente marginalizada.
Nesse universo, onde cada rima é uma arma, cada verso é um manifesto de liberdade e cada batida é uma marca de coragem diante de um sistema que insiste em silenciar aqueles que não se encaixam no padrão criado pela sociedade, é através dessa forte mistura de som que a cena underground prova que a arte não é só resistência, ela é transformadora.