Há histórias que resistem nos corpos, nos tambores e na fala sussurrada entre gerações exibidas no documentário
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Lícia Souto
Em um estado marcado por um dos episódios mais violentos de intolerância religiosa da história brasileira, um jovem negro alagoano escolheu transformar silenciamento em denúncia, e apagamento em memória. João Igor Macena, estudante da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), dirige o filme Cartas á Tia Marcelina, obra que usa o audiovisual como ferramenta de resistência e reconstrução histórica. Com olhos atentos ao passado e coração firmado no presente, ele refaz caminhos apagados — e, ao filmar, faz com que Tia Marcelina, símbolo de resistência e vítima da Quebra de Xangô de 1912, volte a ser chamada pelo nome, não pela ausência.
Para à Revista Alagoana, João Igor Macena compartilhou os desafios e motivações por trás do projeto. “Escolhi essa história porque é algo que me atravessa enquanto pessoa preta. Era uma história que eu conhecia muito pouco, apenas por relatos, nada concreto”, revela o diretor.
A ideia de retratar a história de Tia Marcelina surgiu durante uma disciplina eletiva na Universidade Federal de Alagoas. João Igor Macena, aluno do curso de Teatro, conta que a proposta veio da professora Ana Flávia Ferraz, na aula de Produção de Imagem e som. Entre os doze temas possíveis para o trabalho final, um chamou atenção de imediato. “Resgatar essa memória era uma forma de me reconectar com minha ancestralidade e enfrentar esse apagamento cultural que a colonização nos impôs.” explica Macena.
Durante a produção, um dos maiores obstáculos foi a falta de registros oficiais. A equipe teve dificuldade de acesso a materiais básicos, como jornais da época e arquivos institucionais. Restaram os relatos, os encontros com lideranças religiosas e a escuta atenta de quem preserva a memória nos corpos e na voz. “Os registros acadêmicos existentes são muito simplificados e muitas vezes carregados de um olhar enviesado, distante da realidade dos povos de terreiro”.
A oralidade, então, não foi só um recurso — foi o centro da narrativa. A história de Tia Marcelina sobreviveu de geração em geração, mesmo com diferentes versões, e era importante que o filme refletisse essa vivacidade da memória oral. Macena destaca que, ao contrário do que muitos pensam, a oralidade não é ausência de história, mas um modo legítimo e potente de transmitir conhecimento ancestral.
Cartas à Tia Marcelina não se limita ao passado. Ele conecta a Quebra de Xangô de 1912 a episódios recentes de intolerância em Alagoas. Casos como a invasão da Favelinha do Jaraguá e os ataques a terreiros e líderes religiosos — mostram que o racismo religioso continua a ferir comunidades negras. “Alagoas é um dos estados que mais registra casos de violência contra pessoas negras. O perdão simbólico dado em 2012, no centenário da Quebra de Xangô, não basta. É preciso políticas públicas efetivas. Não dá mais para tratar isso como algo do passado.”
Outro pilar do documentário foi a valorização de vozes negras — tanto de religiosos quanto de pesquisadores. A produção levou quase um ano de montagem e, nesse tempo, a equipe se aproximou de figuras fundamentais, como Pai Maciel, reconhecido como patrimônio vivo de Alagoas. “Foi muito intenso. A gente queria romper com o costume de ver apenas olhares externos — acadêmicos, brancos, distantes — narrando nossas histórias. A proposta era clara: são as próprias pessoas negras que devem contar sua trajetória, seus afetos, sua dor e sua força.”
O diretor espera que Cartas à Tia Marcelina sirva como instrumento de educação e transformação. Com exibições já realizadas em festivais nacionais e circulação prevista para o exterior, o documentário começa a trilhar um caminho de reconhecimento mais amplo. “Queremos que as pessoas conheçam essa parte da história, que foi silenciada. Nosso objetivo é contribuir para um mundo mais justo, onde essas memórias sejam reconhecidas e respeitadas.” Para Macena, lembrar Tia Marcelina é uma forma de garantir que a história negra ocupe o lugar que sempre lhe foi negado na memória oficial — e, mais do que isso, é afirmar o direito de existir com dignidade e fé.
Em um país onde a intolerância religiosa e o racismo continuam a fazer vítimas, projetos como Cartas à Tia Marcelina mostram a importância da arte como espaço de resistência. Comprovam que lembrar é também um ato de coragem — e que honrar a memória de figuras como Tia Marcelina é, sobretudo, uma afirmação do direito de existir e de manter viva a ancestralidade.
Em 1912, a Quebra de Xangô marcou não apenas a destruição de terreiros e símbolos sagrados, mas o esforço consciente de silenciar uma memória ancestral que resistia, viva, em meio às marcas ainda recentes da escravidão. Em plena República Velha, quando o país tentava projetar uma imagem de modernidade e progresso, práticas culturais negras foram perseguidas como sinais de atraso, e a repressão violenta ganhou o respaldo das elites políticas e da força policial.
Tia Marcelina, Ialorixá de Alagoas, guardiã de saberes ancestrais e liderança espiritual de sua comunidade, respeitada tanto pela força religiosa quanto pela influência social que exercia, tornou-se alvo direto da repressão: viu seu terreiro ser destruído, seus objetos rituais saqueados e sua memória condenada ao silêncio imposto pela intolerância. “Quebra perna, lasca a cabeça, tira sangue, mas não tira o saber.” Assim teria dito Tia Marcelina, diante da destruição. Palavras que sobreviveram onde quiseram plantar o esquecimento — e que hoje encerram também o filme como um manifesto da memória viva.
Xangô rezado alto e resistência
Os cultos afro-brasileiros em Alagoas foram obrigados a se reorganizar de maneira clandestina. Sem o uso dos atabaques e dos cantos públicos que caracterizavam as cerimônias tradicionais, os rituais passaram a ser realizados em segredo, muitas vezes marcados apenas pelas palmas dos participantes. Essa nova forma de culto ficou conhecida como Xangô Rezado Baixo — expressão de fé movida pelo medo de novas perseguições, que moldou profundamente a identidade religiosa afro-alagoana durante décadas.
A partir da segunda metade do século XX, no entanto, a religião de matriz africana encontrou novos caminhos de afirmação. Rompendo com o silêncio forçado pela Quebra de Xangô, os terreiros voltaram a ocupar os espaços públicos com atabaques, danças e cantos. Esse movimento ficou conhecido como Xangô Rezado Alto, expressão de resistência e orgulho que resgatou a força ancestral sufocada pela violência de 1912.
Ainda que o Xangô Rezado Alto tenha rompido o ciclo de medo imposto pelo passado, os terreiros continuam enfrentando desafios como o preconceito religioso, a intolerância e a marginalização social. A prática aberta dos cultos, no entanto, reconfigura a paisagem cultural de Alagoas e resgata figuras históricas como Tia Marcelina, cuja memória ressurge como símbolo de luta e dignidade. Cada tambor batido em praça pública ecoa não apenas como um rito, mas como um manifesto contra o silêncio imposto há mais de um século.
O filme: memória afetiva, denúncia política
É nesse cenário de memórias fragmentadas, silenciamentos e lutas por reconhecimento que o filme Cartas à Tia Marcelina, dirigido por João Igor Macena, resgata a história da ialorixá a partir de uma perspectiva afetiva e política, buscando reconstruir, através da linguagem audiovisual, as conexões que o racismo e a violência tentaram destruir. A pesquisa que sustenta o filme combina fontes documentais, relatos orais de mães e pais de santo de Maceió, além de entrevistas com historiadores, sociólogos e militantes do movimento negro.
A obra percorre o passado e o presente: reconstitui a Quebra de Xangô de 1912 e reflete sobre a continuidade da violência contra os terreiros. Performances inspiradas na religiosidade afro-brasileira, leituras de cartas fictícias e registros contemporâneos, como o Xangô Rezado Alto de 2024, compõem a narrativa. Mais do que um registro histórico, a obra é um ato de resistência e um chamado para que a história dos xangôs e das lideranças negras como Tia Marcelina ocupem, de forma definitiva, o lugar que lhes foi negado na memória oficial.
O filme foi selecionado pelo edital de distribuição da Política Nacional Aldir Blanc de fomento à cultura (PNAB) e deve circular em sessões públicas ao longo de 2025, ampliando o debate sobre intolerância religiosa e resistência cultural.
Narrativas visuais contra o apagamento histórico
O audiovisual tem se consolidado como uma das ferramentas mais potentes na preservação e transmissão da memória cultural. Ao unir som, imagem e narrativa, ele consegue não apenas registrar fatos históricos, mas também emocionar e engajar o público de maneira profunda. Em contextos onde a história oficial apagou ou distorceu vozes e trajetórias, o cinema e os documentários têm exercido um papel reparador, recontando o passado a partir de novas perspectivas — muitas vezes, das margens para o centro.
Obras que resgatam líderes religiosos, tradições afro-brasileiras e episódios de opressão rompem o silêncio imposto pelo racismo estrutural e contribuem para uma nova consciência coletiva. Filmes como Cartas à Tia Marcelina não apenas denunciam injustiças, mas também celebram a força, a espiritualidade e a cultura negra, criando pontes entre gerações e promovendo orgulho identitário.
Mais do que entretenimento, esse tipo de produção audiovisual é uma forma de educação política e cultural. Ao retratar histórias como a de Tia Marcelina, essas obras reescrevem os alicerces da memória social brasileira, revelando que o protagonismo negro sempre existiu — apenas foi silenciado. Ao colocar essas narrativas em evidência, o cinema se torna uma ferramenta essencial para construir uma sociedade mais justa, plural e consciente de suas raízes.
FICHA TÉCNICA
Direção: João Igor Macena
Assistente de Direção: Eduarda Sofia e Lino de Messias Yugen
Roteiro: João Igor Macena e Lino de Messias Yugen
Direção de Fotografia: Lucas Espíndola
Assistente de Câmera: Eduarda Sofia
Direção de Produção: Eduarda Sofia
Assistentes de Produção: Lino de Messias Yugen e Rita Lins
Produção Executiva: Lino de Messias Yugen, Ana Flávia de Andrade Ferraz e Rita Lins
Montagem: Lucas Espíndola
Assistente de Montagem: Eduarda Sofia
Direção de Arte: João Igor Macena
Figurino: João Igor Macena
Maquiagem: João Igor Macena
Preparação de Elenco: Lino de Messias Yugen
Colorização: Lucas Espíndola
Design Gráfico: Mickey Berto
Trilha Sonora: Yuri Limão
Design de Som: Yuri Limão
Som Direto: Lucas Espíndola
Still: Rita Lins
Suporte Logístico: Rita Lins
Elenco: Allan da Costa; Allexandrëa Constantino; Brenda Lima; Emanuelle Divino; George de Olicino; Henrie Santos; Israel Oliveira; Italo Azuos; Leide Serafim; Tamara Caetano
Narração: Leide Serafim
Entrevistados: Babalorixá Célio; Yalorixá Jeane; Tatalorixá Maciel; Alycia Oliveira; Jeamerson Santos; Danilo Luiz Marques.
Texto Adaptado: Uma Lembrança de Amor Para Tia Marcelina de Luiz Sávio de Almeida
Arquivo de Reportagem: O Perdão do Quebra/Xangô Rezado Alto – TV Pajuçara
Acervos Fotográficos:
Acervo Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas
Acervo História de Alagoas
Acervo Quilombo Real
Acervo Jesus Carlos/BBC News Brasil
Acervo Larissa Fontes
Músicas:
Banzo – Orquestra de Tambores de Alagoas
Mundaú-Nagô – Orquestra de Tambores de Alagoas
Zumba – Orquestra de Tambores de Alagoas
1912 – Tequilla Bomb