A Construção Histórica do Estado Brasileiro e a Hipermodenidade

 

Por Madson Costa

A história do Brasil está profundamente marcada por um processo de construção social e política em que a riqueza e o poder sempre foram centralizados em um pequeno grupo social: os homens brancos, descendentes da elite colonial ou dos demais europeus. Essa estrutura de poder e distribuição de riquezas reflete um modelo de Estado que, desde suas origens, privilegiou uma parcela da população, enquanto marginalizou outros grupos, criando uma desigualdade profunda e persistente.

O Estado brasileiro, desde sua formação, foi fundamentado em um colonialismo de exploração, que visava extrair as riquezas naturais e humanas do território em favor de uma elite. Esse modelo colonial limitou o acesso aos bens da nação a uma minoria, composta por homens brancos, enquanto os demais segmentos da sociedade foram sistematicamente excluídos. As mulheres, confinadas ao papel de cuidadoras e donas de casa, tiveram suas funções restritas ao espaço privado das relações domésticas e, por consequência, sua participação na esfera pública e econômica foi severamente limitada.

Mais cruel foi o destino reservado aos negros, que foram trazidos para o Brasil como mercadoria. A escravidão impôs uma condição desumana sobre eles, tornando-os não sujeitos, mas objetos de propriedade. Os negros não tinham direitos, não podiam acumular riqueza, nem eram reconhecidos como seres humanos plenos. Em vez de serem considerados sujeitos de direitos, eram tratados como coisas, peças no grande esquema de exploração que sustentava a economia brasileira. Nesse contexto, a falta de acesso à propriedade, à educação e ao trabalho digno configurava-se como uma sentença perpétua de subordinação, afastando-os da possibilidade de ascensão social e econômica.

O reflexo dessa construção histórica ainda é visível na sociedade brasileira contemporânea. As desigualdades raciais e de classe, enraizadas nas estruturas coloniais e nas práticas de exclusão, continuam a moldar as relações sociais e econômicas no Brasil. A luta por igualdade, justiça e inclusão social permanece uma necessidade urgente, para que se possa, finalmente, romper com o ciclo de opressão e exclusão que caracteriza a trajetória do país desde seus primeiros passos.

É importante destacar que nem todos os brancos no Brasil são descendentes diretos da elite colonial. Muitos brancos, provenientes da Europa, chegaram após o processo de abolição da escravatura, durante o período em que o Brasil buscava substituir a mão de obra escravizada com imigrantes europeus. Esses brancos, que trabalharam principalmente nas fazendas de café, gozaram de uma condição de privilégio em relação aos negros libertos. Embora alguns imigrantes europeus não fossem parte da elite colonial, a política pública brasileira tratou-os de maneira distinta em relação à população negra.

Os imigrantes brancos tinham direitos básicos como o salário, a possibilidade de acumular riqueza e a capacidade de possuir propriedade — direitos que foram negados sistematicamente aos negros durante o período escravocrata e mesmo após a abolição. A diferença entre o negro e o branco imigrante era imensa, não apenas no campo econômico, mas também no campo social. Os imigrantes brancos tinham a possibilidade de ascensão social, enquanto o negro foi exposto a um processo de invisibilização e marginalização. Após a abolição, a sociedade brasileira, com o apoio do Estado, adotou uma política que priorizava a substituição da “melanina negra” pelo fenótipo europeu. A consequência disso foi a ocupação dos postos de trabalho pelos brancos imigrantes, enquanto os negros eram excluídos, apesar de terem sido libertos da escravidão.

Essa dinâmica não pode ser entendida sob a ótica de uma suposta igualdade de oportunidades, como muitos tentam defender. O Brasil não foi uma nação que abriu portas igualmente para todos. Ao contrário, o Estado brasileiro implementou políticas públicas que favoreciam a entrada dos imigrantes brancos, enquanto os negros eram empurrados para os margens da sociedade, privados de acesso à riqueza nacional e aos direitos fundamentais.

Por isso, é necessário refletir sobre o conceito de vulnerabilidade. A vulnerabilidade não pode ser limitada à dimensão econômica, pois ela é também social, cultural e histórica. A vulnerabilidade dos negros, mulheres, indígenas e pessoas com deficiência é fruto de um processo histórico de marginalização e exclusão, que transcende a falta de recursos financeiros. Esses grupos enfrentam uma vulnerabilidade organizacional, que diz respeito à sua constante subordinação nas estruturas sociais e no mercado de trabalho. Eles não só foram privados de riqueza material, mas também de um lugar de dignidade e respeito dentro da sociedade.

A formação histórica e cultural do Brasil tem sido marcada por uma construção social que privilegiou, de forma quase exclusiva, a cultura, o fenótipo e as características do homem branco, em detrimento dos negros e indígenas. Esse processo resultou na criação de uma organização estatal e social que concentra a riqueza produzida no país nas mãos de um pequeno grupo: 1% da população, composta por homens brancos, descendentes diretos da elite colonial ou de europeus que chegaram após a abolição. Essa estrutura, criada desde o período colonial, ainda mantém sua vigência e influência, perpetuando uma desigualdade que só se acentua com o tempo.

No Brasil, é possível perceber que está em curso um projeto nacional recôndito e taciturno de precarização da população brasileira, com o objetivo de apagar a memória histórica e cultural do povo. Esse projeto visa anular a ancestralidade e as origens do povo brasileiro, permitindo que as barbaridades históricas do passado sejam remodeladas e mantidas com o aval da hipercontemporaneidade. Ou seja, o Brasil está vivenciando um processo de reescrita da sua história, encoberto por uma falsa sensação de progresso, que na verdade visa à manutenção das desigualdades estruturais.

Esse projeto é patrocinado pelas elites nacionais e mundiais, compostas por uma elite intelectual e econômica, predominantemente branca, que busca criar um novo Estado neocolonialista. Nesse modelo, o povo brasileiro, em sua maioria, continua a ser explorado em prol da manutenção dos privilégios de uma pequena parcela da população. A precarização da classe trabalhadora, a marginalização das minorias e a negação de direitos essenciais são os pilares dessa estratégia.

Um exemplo claro dessa precarização é a crescente pejotização dos empregos, uma forma moderna de exploração que legaliza a escravidão sob novas roupagens. A precarização do trabalho, disfarçada de flexibilização, reduz os direitos dos trabalhadores e os submete a condições de vulnerabilidade extrema, perpetuando a exploração sem que a sociedade perceba. A Escala 6×1, por exemplo, é uma das manifestações dessa “escravidão moderna”, onde trabalhadores se veem obrigados a jornadas extenuantes sem o reconhecimento devido, enquanto as leis trabalhistas, que poderiam proteger os direitos dos trabalhadores, são sistematicamente enfraquecidas.

O Congresso Nacional, dominado por uma bancada de direita, tem passado pautas que se recusam a garantir a isenção do imposto de renda para os mais pobres, consolidando a desigualdade fiscal e impedindo que os recursos públicos sejam usados para reduzir as disparidades sociais. Essas políticas, longe de promoverem um projeto de nação mais justa, aprofundam as divisões entre as classes sociais e ampliam a distância entre os ricos e os pobres.

Esse projeto de precarização não se resume apenas à esfera econômica. Ele também é intelectual e cultural. O Brasil, como nação, tem sido conduzido por uma narrativa em que a memória coletiva e a valorização das raízes brasileiras são sistematicamente ignoradas. O povo brasileiro é induzido a esquecer sua ancestralidade, a não estudar sua história, a não questionar a estrutura de poder que o oprime. O resultado é uma sociedade que vive à sombra de um passado de exploração, sem consciência plena de seu potencial transformador.

A partir da hipermodernidade, a sociedade brasileira, assim como a mundial, passou a vivenciar uma nova forma de escravidão, que não mais se manifesta nas correntes visíveis do corpo, mas nas correntes invisíveis da informação e da manipulação. Nesse novo contexto, a escravidão é reformulada e adaptada pelas mídias sociais e plataformas digitais, como TikTok e Instagram, que são financiadas e impulsionadas pelo capital das elites. Essas plataformas se tornam o campo de batalha onde se disseminam discursos distorcidos, que fragmentam a sociedade e promovem uma falta de coesão entre as diversas camadas sociais.

A propaganda e os discursos promovidos nas redes sociais não têm compromisso com a verdade. Ao contrário, são estratégias pagas, direcionadas a moldar a percepção de massa e a manipular o que é considerado “real”. A narrativa que circula nessas plataformas é construída e impulsionada por aqueles que detêm o poder econômico, com o objetivo de legitimar seus interesses e silenciar as vozes daqueles que buscam uma representação verdadeira e justa da sociedade. O que é real, na perspectiva da hipermodernidade, não é mais aquilo que emerge da vivência concreta das pessoas, mas sim aquilo que é amplificado e disseminado de forma massiva nas plataformas sociais.

Assim, o processo de fragmentação da sociedade se torna ainda mais complexo. As pessoas, ao consumir essas informações manipuladas, perdem a capacidade de distinguir o que é verdadeiro do que é falacioso. A escravidão, embora tenha sido abolida formalmente, se reinventa no domínio digital, onde a maioria se vê aprisionada por um sistema que promove não a liberdade de pensamento, mas a alienação, o consumo desenfreado e a manipulação ideológica. O novo cipoal de correntes é invisível, mas igualmente forte: ele mantém a sociedade dividida, desinformada e, em última instância, impotente diante das estruturas de poder que continuam a ditar as regras.

Com o avanço da hipermodernidade, as estruturas de poder, que antes estavam fixadas em formas mais tradicionais, se reinventam para se manterem ativas e inquestionáveis. No cenário atual, marcado pela fase mundial de pós-verdade, a verdade se torna uma questão volátil, moldada e manipulada conforme os interesses de quem controla a informação.  Nesse  novo  contexto,  as  elites  se  adaptaram  ao  ambiente  da hipermodernidade, percebendo que as redes sociais são instrumentos eficazes para garantir a continuidade de sua dominação.

O conceito de pós-verdade reflete essa transformação. Em vez de se basear em fatos objetivos, a verdade passa a ser determinada pela percepção das massas, o que é amplificado e repetido incessantemente até ser aceito como real. As elites, com seu domínio econômico e político, viram nas redes sociais não apenas um palco para vender produtos, mas uma plataforma estratégica para manipular a opinião pública, enfraquecendo o discernimento crítico das massas e garantindo sua permanência no poder.

A circulação de fake news, a distorção da realidade e a criação de narrativas de fácil consumo são algumas das estratégias que essas estruturas de poder utilizam para reforçar seu controle. Assim, ao invés de um campo democrático de troca de ideias, as redes sociais se tornam um mecanismo de perpetuação da desigualdade, onde as elites alimentam o ciclo de desinformação e controle, garantindo que suas narrativas prevaleçam.

O conceito de Estado neocolonial hipercontemporâneo é uma realidade que se desenha no Brasil, impulsionada por um plano nacional de precarização intelectual. As elites, com seu domínio econômico, buscam transformar o poder político em uma extensão do poder econômico, onde as decisões políticas não são tomadas para o bem coletivo, mas sim para garantir a perpetuação dos interesses das elites. O poder econômico e o poder político, ao invés de se manterem separados, se confundem, criando um ciclo vicioso em que o controle das escolhas públicas é manipulado por aqueles que detêm o capital.

No campo da política, as eleições se tornam um mercado eleitoral, no qual os votos não refletem o verdadeiro desejo popular, mas sim a validação e legitimação de interesses que visam assegurar o domínio de setores específicos por meio de lobby. O voto, que deveria ser o exercício da soberania popular, torna-se, assim, uma mercadoria no grande jogo do poder. Esse sistema de mercado eleitoral é alimentado pela falta de conscientização política e pela precarização intelectual da população, resultado da desinformação e falta de acesso a uma educação de qualidade.

Esse plano de precarização intelectual, apoiado por um modelo educacional falido e pela manipulação das mídias sociais, enfraquece a capacidade crítica do povo brasileiro. Ao fazer com que a política se torne um espaço de troca e negociação entre interesses econômicos, as elites garantem que a estrutura de poder se mantenha em suas mãos, e que as desigualdades históricas e sociais continuem a ser reproduzidas, com a população se tornando cada vez mais vulnerável ao controle econômico e político.

Esse plano se pauta principalmente na negação de direitos essenciais, como educação, saúde, e segurança, promovendo uma sociedade em que a desigualdade é não apenas mantida, mas expandida. A manutenção de privilégios para uma pequena minoria é o cerne desse projeto, enquanto o resto da população segue refém de um sistema que perpetua a pobreza e marginalização. As elites, ao se fortalecerem, buscam garantir o domínio sobre as classes vulneráveis, sem jamais permitir que elas se fortaleçam o suficiente para desafiar a estrutura de poder.

A expansão do domínio da elite é feita por meio da disseminação de informações falsas, uma tática que se insere no contexto global da pós-verdade, onde o que importa não é mais a verdade, mas o que é impulsionado como verdade nas plataformas digitais. As informações manipuladas são usadas para fragmentar ainda mais a sociedade, levando as pessoas a acreditar em narrativas que favorecem os interesses das elites, enquanto as questões fundamentais de justiça social, igualdade e direitos humanos são apagadas. O conceito de verdade se dilui, e o que resta é uma construção ideológica que serve exclusivamente aos interesses do poder dominante.

Além disso, esse plano está intrinsecamente ligado à rigidez da divisão de classes sociais. Ao manter a pobreza como condição estrutural e perpetuar a marginalização de grupos vulneráveis, como negros, mulheres, indígenas e outros, a elite brasileira garante que o fluxo de riqueza e poder continue restrito a um pequeno grupo, excluindo todos os outros. A falta de acesso a oportunidades reais e a constante vigilância sobre as condições de vida das camadas populares servem para garantir que a pobreza se mantenha como um instrumento de controle social.

Um dos efeitos mais visíveis desse plano é o contra-ataque às conquistas progressistas da sociedade. A elite busca reverter avanços como a isenção de impostos para as camadas mais baixas, propondo, por exemplo, o aumento da carga tributária sobre a população pobre, ao mesmo tempo que nega direitos fundamentais das minorias. A luta contra os direitos das pessoas trans, o direito das populações negras e a defesa de um modelo de sociedade tradicionalista revelam um claro movimento de retrocesso. A elite, ao se sentir ameaçada, também busca preservar o que chamamos de “segurança ontológica”, ou seja, a manutenção da sua própria imagem como detentora do ideal de perfeição, uma visão que se distorce da realidade da diversidade e da justiça social. A segurança ontológica da elite se vê ameaçada quando seus privilégios são questionados, e a manutenção desse status é vital para a reprodução desse sistema desigual.

O Brasil vive em uma era de hipermodernidade, onde as estruturas de poder, ao invés de serem transparentes e responsáveis, se tornam cada vez mais opacas e manipuladoras. A escravidão não se dissolve completamente, mas se adapta aos tempos contemporâneos, sendo reformulada nas plataformas digitais e na forma de um Estado neocolonial hipercontemporâneo, que visa manter as desigualdades e a exploração. As elites, com seu controle econômico e político, moldam a realidade social para perpetuar seu poder. O povo, fragmentado e desinformado, se vê cada vez mais distante de sua capacidade de resistir e transformar a realidade.

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SOBRE O AUTOR

 

Madson Costa, de 23 anos, é escritor e poliglota. Foi um dos ganhadores do Prêmio Diversidades Literárias, com “Os Meninos da Parte Alta”, seu livro de estreia, na categoria obras inéditas, bem como recebeu a segunda maior nota com seu poema “Terra de Sois”, no concurso de poesia do mesmo prêmio. Já foi selecionado para diversas antologias poéticas. Foi um dos ganhadores do Prêmio Literário Ladislau Netto, na categoria obras já publicadas, com “Os Meninos da Parte Alta”. Com seu poema “Quebra de Xangô”, foi um dos ganhadores do Concurso de Criações Literárias Anilda Leão. “Quariterê”, seu novo livro, foi uma das obras selecionadas pelo Concurso de Criações Literárias Ruth Quintela.

 

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