Artista construiu carreira entre Maceió e o Rio de Janeiro, levando a música erudita a palcos prestigiados e públicos diversos.
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais
No Brasil, onde o canto lírico ainda é associado a estéticas elitistas e pouco acessíveis, construir uma trajetória nesse campo exige mais do que talento: requer vocação, estudo e disposição para romper barreiras culturais. Mesmo com uma tradição sólida em diversas capitais, a ópera e o canto erudito ainda enfrentam resistência quando o assunto é democratização do acesso e valorização regional.
Ainda assim, artistas e educadores têm buscado novos caminhos para ampliar os horizontes da música vocal no país, aproximando-se de territórios populares, linguagens contemporâneas e processos educativos mais inclusivos.
É nesse cenário que se destaca o professor e Tenor Diogo Oliveira, um artista que transforma a própria voz em ferramenta de expressão e transformação. Nascido em Maceió e apaixonado pela música desde a infância, Diogo encontrou no canto lírico não só uma profissão, mas um modo de existir no mundo: com técnica, afeto e compromisso com a educação.
Em entrevista à Revista Alagoana, ele compartilha vivências, reflexões e conselhos sobre o ofício de cantar e viver com a voz. Em um diálogo profundo, Diogo fala sobre formação, mercado, referências e os desafios de quem sonha em viver da arte num país que ainda subestima a potência da cultura. Confira:
R.A.: Para começar, como você explicaria o que é o canto lírico para quem ainda não conhece ou nunca teve contato com essa forma de expressão musical?
Diogo Oliveira: O canto lírico, também chamado de canto erudito ou clássico, é a arte da voz cantada, uma forma de expressão vocal que vem de muito tempo. Ele nasce lá atrás, no chamado cantochão, antes mesmo do Renascimento, e vai se desenvolvendo junto com a história da humanidade. Esse canto esteve sempre ligado à elite e à realeza europeia. Enquanto nas igrejas e palácios havia essa música mais “oficial”, as mulheres, por exemplo, nem podiam cantar. A participação feminina aparecia mais nos cabarés, em espaços de contracultura. Então o canto lírico também carrega essa história: é uma arte que foi, por muito tempo, sinônimo de luxo, poder e exclusividade.
Tecnicamente, ele é extremamente desafiador, exige uma vida inteira de dedicação, disciplina e cuidado. O cantor precisa desenvolver uma projeção vocal tão grande que consiga ser ouvido por um teatro inteiro, mesmo cantando com uma orquestra completa sem microfone. Isso requer o que chamamos de “voz grande”, além de equilíbrio sonoro, expressão refinada e uma técnica que é muito rígida.
O repertório é específico: óperas, oratórios, cantatas, música de câmara. E há ainda um termo muito usado, o chiaroscuro, que define esse equilíbrio de harmônicos na voz, entre graves e agudos. É uma sonoridade rica, encorpada, que precisa ser construída com muito estudo. Então, resumindo, o canto lírico é isso: uma técnica vocal tradicional, exigente, sofisticada e histórica, que permite à voz humana atingir todo o seu potencial artístico.
R.A.: Você tem uma trajetória longa, com passagens por espaços renomados, e hoje está à frente da VOX Music Class. Que papel o ensino da técnica vocal e do canto lírico ocupa na sua vida hoje?
Diogo Oliveira: Olha, esse papel é total, é a minha vida. Eu tenho uma vida inteira dedicada à música. Canto desde os 9 anos de idade. Venho de uma família musical: minha avó era pianista, minha mãe e meus tios cantavam na igreja. Então, desde pequeno, eu já estava imerso nesse universo. Comecei a estudar canto lírico de forma profissional aos 18 anos. Passei e ainda passo por muitos desafios. Já ouvi muitos “nãos” e enfrentei até problemas de saúde, como um cisto na prega vocal. Mas nunca me afastei disso.
A música, o estudo da técnica vocal e a pedagogia são o que me movem. É disso que eu vivo. É o que dá sentido ao meu dia a dia, às minhas relações, à minha expressão no mundo. Ser cantor, professor e preparador vocal não é só uma profissão pra mim é minha identidade, minha forma de estar no mundo. É, literalmente, a minha vida.
R.A.: O Dia do Cantor Lírico é uma data simbólica, que nos convida a olhar para esse ofício muitas vezes invisibilizado fora dos palcos. Na sua visão, quais são os principais desafios e oportunidades para quem deseja seguir carreira no canto lírico no Brasil, especialmente fora dos grandes centros?
Diogo Oliveira: Essa questão dos grandes centros é realmente central. No Brasil, o eixo Rio de Janeiro-São Paulo ainda concentra a maior parte das oportunidades para quem trabalha com música erudita, e isso não se restringe ao canto lírico. Os grandes teatros, orquestras, festivais e instituições de fomento estão, majoritariamente, nas metrópoles.
Eu vivi isso de perto quando morei por 10 anos no Rio de Janeiro. Lá, o Theatro Municipal não é apenas uma casa de espetáculos: ele tem corpo técnico próprio, orquestra sinfônica, coro lírico, companhia de balé e companhia de ópera. Esses profissionais são contratados via concurso público, com salários fixos e temporadas programadas. É um modelo institucional sólido, que valoriza o artista. São Paulo também segue essa linha. O Teatro São Pedro, por exemplo, conta com estrutura semelhante. E há outros polos relevantes no país, além de iniciativas importantes no Rio Grande do Norte e na Bahia, onde, inclusive, a UFBA tem uma produção acadêmica muito forte em música.
Mas fora desses lugares, a realidade é outra. Em Alagoas, por exemplo, o cenário da música de concerto é quase inexistente, principalmente por falta de políticas públicas específicas. Não há editais com recortes voltados à música de concerto (como eu prefiro chamar, em vez de música clássica ou erudita), enquanto outras linguagens, como o forró ou a música autoral popular, até recebem alguma atenção, como deve ser. Mas o canto lírico e a música de concerto seguem invisibilizados.
Então, para quem está fora dos grandes centros, a dificuldade é enorme. É preciso resistir o tempo inteiro e, muitas vezes, criar os próprios caminhos. Ainda assim, existem artistas comprometidos, iniciativas potentes e pessoas que acreditam na construção de uma cena local. Mas sem políticas públicas voltadas à formação, circulação e manutenção da música de concerto, o cenário continuará sendo de invisibilidade.
R.A.: Você é fundador de um espaço que se dedica ao estudo e à prática da voz cantada. Qual o perfil dos alunos da Vox hoje? Há um crescimento no interesse pelo canto lírico em Maceió?
Diogo Oliveira: A Vox nasceu da necessidade de manter vivo um espaço de formação vocal em Maceió, num momento em que o cenário local do canto lírico começou a perder força. Houve uma época de ouro, entre 2000 e 2010, quando a Universidade Federal de Alagoas ofereceu o bacharelado em canto lírico, sob liderança da professora Fátima de Brito, uma referência absoluta no estado. Muitos nomes relevantes surgiram dessa geração, como Felipe Oliveira, Claudiana Mello, Michelle Bassan, entre outros, que ganharam projeção nacional e internacional.
Mas esse cenário mudou bastante. Com o fim do curso de bacharelado, a UFAL passou a oferecer apenas licenciatura em música com habilitação em canto, o que não forma necessariamente cantores. A partir disso, houve um esvaziamento da cena. Hoje, não vejo esses novos formandos atuando. Também perdemos eventos importantes como o Nordeste Canta, os encontros de coros e os concertos de fim de ano que movimentavam a cidade.
A Vox tenta ocupar essa lacuna. Oferecemos bolsas para jovens talentos que não teriam condições de pagar por aulas particulares, como foi o caso do Jonathan Malaquias, que veio do Coro Jovem do IFAL. Ele estudou conosco por dois anos e foi aprovado no curso técnico de canto lírico da EMESP e no Coro Jovem da instituição, onde recebe para cantar e segue se desenvolvendo, hoje, inclusive, é aluno do professor Felipe Oliveira, também alagoano.
Então, vejo que o interesse ainda existe, mas ele depende de iniciativas de resistência. Não há mais uma política estruturada de formação vocal no estado, como existia antes. Para termos um cenário forte, precisamos de uma cadeia de formação básica, técnica e superior funcionando em conjunto, como acontece em São Paulo e no Rio. Aqui, estamos tentando manter essa chama acesa com muito esforço.
R.A.: Além do talento, o que você acredita ser essencial para quem deseja trilhar um caminho profissional como cantor ou cantora lírica?
Diogo Oliveira: Paixão. É preciso ter muita paixão, porque, como toda profissão, o canto lírico tem suas dificuldades. E, no nosso caso, elas se agravam: somos brasileiros, nordestinos, de Maceió, enfrentamos muitas barreiras. Por isso, não dá para romantizar. É preciso vocação.
E quando falo em vocação, não estou falando de “dom”. Eu, particularmente, não acredito nisso. Acredito em resultado: muito estudo, muita dedicação, muita vontade. Quando você junta tudo, paixão, vocação e empenho, aí sim pode surgir um grande profissional. A vocação, pra mim, é quase um chamado. Algo espiritual mesmo. Quando você sente esse chamado e escuta ele, a vida ganha outro sentido. Você se sente mais inteiro, mais completo como ser humano e como profissional. Quando a pessoa é vocacionada, ela vai atrás, não mede esforços, porque sabe que só assim vai se sentir realizada.
Por isso, acho que a vocação é essencial. Porque as batalhas são muitas, como em qualquer profissão, mas se há um propósito profundo, você não desiste. A vocação te ajuda a transformar as dificuldades em sentido de vida. É isso que, pra mim, não pode faltar em quem deseja seguir a carreira lírica.
R.A.: Qual foi a apresentação que mais marcou você até hoje, e por quê?
Diogo Oliveira: Minha apresentação no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2012, foi a que mais me marcou. Eu fui para o Rio em 2010, recém-formado, saindo de Maceió, sem muitas perspectivas, apenas com a vontade de ver até onde a música me levaria.
Lá, vivi experiências incríveis, gravei na Globo, cantei no programa “Estrelas” no aniversário de 50 anos da atriz Glória Pires, tudo em rede nacional com o coro do Teatro Municipal. Mas o momento mais especial foi minha estreia como solista no Oratório de Natal de Johann Sebastian Bach, no próprio Theatro Municipal.
Lembro de caminhar pelo centro do Rio, passar em frente ao teatro e ver o cartaz do concerto com o meu nome lá: “Diogo Oliveira, Tenor”. Era difícil acreditar que aquilo estava acontecendo. Ver meu nome naquela vitrine foi uma confirmação de que é possível sonhar, que todo esforço vale a pena. Esse momento marcou profundamente minha trajetória e me fez entender que a música realmente pode transformar vidas.
R.A.: Por fim, que mensagem você deixaria para quem sonha em viver da voz, mas ainda tem medo ou dúvida se esse caminho é possível?
Diogo Oliveira: Se você quer viver da voz profissionalmente, eu acredito que é possível, sim. Mas é preciso ter muita paixão, dar asas a essa paixão e acreditar nos seus sonhos. Se entregue de corpo e alma.
No entanto, vivemos tempos diferentes dos meus, eu tenho 40 anos e venho de outra época. Hoje me preocupa muito a banalização do estudo. Parece que é mais fácil virar influenciador digital do que se dedicar verdadeiramente a algo. Muitas pessoas acham que o número de seguidores nas redes sociais vale mais do que estudo e técnica. Pode parecer um papo antigo, mas é uma preocupação real.
Por isso, meu conselho é: estude, se dedique, se aprofunde no que você ama. O estudo salva. A educação salva. Mais do que isso, ela forma caráter, ajuda na socialização, na argumentação, e dá a bagagem técnica necessária para ser um bom profissional. O estudo nos leva a lugares que seria impossível alcançar sem ele.
Lembro de uma lição do meu pai, quando eu tinha 17 anos e decidi fazer vestibular para música. Minha mãe perguntou: “Você não vai morrer de fome?” E meu pai respondeu: “Desde que você estude, você pode ser o que quiser.” E é isso que eu acredito: a gente pode ser o que quiser, desde que estude.