Como a unificação e troca de saberes quilombolas é celebrada numa bicentenária festa. E quais as lições que ficam

A Revista Alagoana acompanhou a programação que iniciara na noite anterior à Festa do Meado de Agosto, celebrado sempre no dia 15 do respectivo mês, no Quilombo Lunga

 

A localização do Quilombo Poços do Lunga é desafiadora. São em torno de 17 km que separa o quilombo –  primeiro ponto de cultura da cidade – do centro administrativo do município de Taquarana, no agreste de Alagoas. E, mesmo em período de inverno, com possibilidade de chuva e frio, há 200 anos é realizada a tradicional Festa do Meado de Agosto, em tom de resistência e ousadia frente ao racismo estrutural do nosso país. 

Um destaque especial, entre os vários espaços do território, é para a cozinha semi-industrial em homenagem a Mestra Firmina, que fora uma grande expoente dos saberes ancestrais do Quilombo Lunga. As três refeições eram servidas, gratuitamente, para quem tivesse fome, por mãos habilidosas de mulheres da comunidade. 

“É sempre uma alegria muito grande realizar e receber visitantes em nossa comunidade. Pela primeira vez, abrimos a festa com o lançamento de um livro infantil, feito pelas histórias ligadas ao nosso pé de umbu através da escuta e parceria da UFAL, em nome do Prof. Saulo Luders e alunos do grupo de pesquisa Aroeiras. Um trabalho lindo que muito me orgulha”, destaca Tonha do Espírito Santo, coordenadora geral da festa na comunidade quilombola. O projeto literário realizado com o engajamento dos moradores, foi finalista numa premiação do Ministério da Igualdade Racial. 

Na sequência, foram exibidos os curta-metragens alagoanos Cajá dos Negros, de Israel Oliveira, Feira de Ibateguara, de Luana Verçulino e Cartas à Tia Marcelina, de João Igor Macena, o qual foi responsável por mediar uma roda de conversa com a comunidade, que foi provocada a pensar quais outras histórias merecem ser contadas. Como resposta, teve quem enfatizou a sua própria história, a de seus avós ou a de seu marido, para citar exemplos. Já era perto das 22 horas, sob céu estrelado e vento frio, que se findou as atividades daquela noite, com mentes fervilhando e afazeres batendo à porta, para muitos, assim que o sol despontasse no horizonte. Era hora de recolher-se.

A religiosidade é um ponto marcante no Quilombo Lunga, em que os credos se atravessam ou vivem de forma harmoniosa entre si. Pai Tonho de Ogum, babalorixá do palácio dedicado ao mesmo orixá, é responsável pela abertura das festividades, com o tradicional ritual catiço no rio Lunga. “Mãe Vera [in memoriam], do Abassá de Angola em Maceió, foi quem iniciou essa tradição na Festa do Meado de Agosto, a qual sempre nutri um profundo respeito e, toda visita que ela nos fazia, eu não deixava ela voltar de mãos vazias”, e completa “Hoje, com meus mais de 70 filhos de santo, aqui e fora do quilombo, dou continuidade a tradição com grande satisfação”. 

Antes mesmo do ritual no rio Lunga, um outro mais discreto e intimista é feito por Tonha do Espírito Santo, ao ir em direção à capelinha em homenagem à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ajoelhar-se ainda na entrada, adentrar e fazer o sinal da cruz. Lá dentro, ela segura uma caixa, se direciona à saída da capela e escolhe um local aberto para o lançamento de “foguetes” ao alto, fazendo saber a todos, pontualmente, às 06 horas, que a festa começou. 

Alguns metros dali, de volta ao rio, em uma de suas margens, reúne-se um grupo de pessoas, com vestimentas características do culto afro e de cores de toda sorte, formando um círculo, para o início do ritual do catiço, que é uma variação do Candomblé e Umbanda. Várias pessoas se aproximam e acompanham próximas à roda ou numa pequena ponte sobre o rio. Após alguns cântidos entoados ao som de tambor e triângulo e flores serem jogadas ao rio, a multidão se dispersa e volta a se encontrar dentro do terreiro, local de encontro para o início e fim do cortejo, com homenagens e reverências ao Sagrado.

No povoado Lagoa Grande, ainda em Taquarana/AL, a quadra da Escola Municipal Edgar Tenório, recebera algumas lideranças quilombolas e representantes do poder público, para uma roda de conversa com seus estudantes. Este é o ponto alto do evento, pois discute as cadeias produtivas e unificação em torno da identidade quilombola. A boa receptividade e a importância vista por todos de ocupar estes espaços de ensino foram destaque, mas misturaram-se com outras questões preocupantes que suscitam ainda mais a necessidade de continuidade das ações.

“É preciso trazer pessoas que falam e entendem sobre a  identidade quilombola, ao contrário do que só tem nos livros, porque nos livros está apenas o que os brancos querem. Estou decepcionada com a forma do aprendizado dentro da escola [que estou], pois os estudantes não reconhecem suas descendências negras”, lamenta Genilda Queiroz, coordenadora do movimento As Dandaras – Coordenação Feminina Quilombolas de Alagoas. 

Já o coordenador da Escola Municipal Edgar Tenório, Josmar Araújo, atribui esta percepção levantada por Genilda, a diversos fatores, entre eles, metodologias de pesquisa errôneas da gestão escolar passada, aplicação desatualizada da Lei 10.630/03, que torna o ensino obrigatório de história e cultura afro-brasileira nas escolas e, inclusive, a localização do espaço de ensino fora dos limites quilombolas que dificulta algumas implementações pedagógicas, mesmo num ambiente onde mais de 80% dos alunos vêm de comunidades quilombolas no entorno. 

Jadielson da Silva, representante do Quilombo Mameluco, sugere que a escola tenha um papel também de educar os pais dos alunos sobre a temática quilombola, em oficinas e como convidados de eventos, como a roda de conversa em questão. Além disso, destacou que nestes momentos de diálogo, há um esforço de unir as comunidades quilombolas, mas ainda há uma longa caminhada pela frente, uma vez que não houve representações dos quatro quilombos existentes em Taquarana, por exemplo. 

De frente ao palco, onde subiram vários grupos para apresentações culturais ao longo do período da tarde e da noite, inúmeras pessoas de caravanas variadas se juntaram, para celebrar a Festa do Meado de Agosto. Estudantes, professores e pesquisadores eram em grande número, porque “o Quilombo Lunga é lugar de memória que, muitas vezes, nos é negado e, como a maioria dos meus alunos são da periferia e negros, eles terem esse contato com a cultura negra é uma forma de colocá-los em um lugar de nutrição de suas raízes, e a cultura é esse lugar de produção de anticorpos para essa sociedade que nos vulnerabiliza” afirma o professor, Leandro Neto, que trouxe sua turma de alunos, entre 12 a 14 anos, de Arapiraca. 

Uma das apresentações da noite foi a do grupo Oxiroots, que fomenta o reggae na cidade de Delmiro Gouveia, e estava no Quilombo Lunga pela primeira vez. “Somos o único grupo ativo de reggae na nossa cidade e o convite de vir aqui veio através da Keka Rabelo, que conheci no Encontro Cultura Reggae, em Maceió, e tô achando a Festa do Meado de Agosto muito bonita, ancestral e territorial”, afirmou o vocalista e guitarrista solo, Eduardo Neório.

E, assim, foi se findando mais uma edição da Festa do Meado de Agosto do Quilombo Poços do Lunga, uma ode à ancestralidade, ao solo sagrado, às práticas originárias e tudo aquilo que nos unifica. “Viemos aqui para fazer um momento de vivência, reconhecer o território, se aproximar da comunidade e criar laços com quem o ocupa. Participei do momento da gira [religiosidade afro] no começo da manhã e também participamos da novena [religiosidade católica] pela tarde, ambas atrações muito ricas. Pretendo voltar e passar mais tempo”, fala Carlos Henrique, estudante de psicologia, da UFAL Palmeira dos Índios. Para quem ainda não foi, só indo para entender toda esta energia. 

 

SOBRE O EVENTO

Projeto executado com recurso da PNAB estadual edital de Povos tradicionais através da Secult/AL, PNAB do município de Taquarana através da Secult de Taquarana e recursos do Projeto Memória e Produção em Territórios Culturais AL conforme Termo de Fomento de nº 961409/2024 – celebrado com o Ministério da Cultura e Instituto Quintal Cultural através do gabinete do Deputado Federal Paulão.

Realização Ponto de Cultura Quilombo Lunga

Coordenação Geral Tonha do Espírito Santo

Coordenação de Produção e Comunicação Keka Rabelo

Direção Artística Instituto Bico de Fulô

Laboratório de Memória e Comunicação UFAL – Projeto Bureau de Comunicação

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