O giro do Diabolô no jardim das primeiras quedas

Por Luiz Miguel Xavier da Silva

 

A infância é um território onde sempre voltamos, mesmo quando pensamos tê-la deixado
para trás. Mas não voltamos como turistas nostálgicos, e sim como sobreviventes:
carregamos as marcas, as sombras e as brechas daquele chão sujo, pisado por pés ainda
tão indulgentes. Diabolô, de Nilton Resende, nos lembra que esse terreno não é o da
inocência idealizada, mas da experiência viva, áspera e melancólica. O brinquedo que dá
título ao livro (aquele que gira, sobe, cai e se equilibra na corda) é metáfora perfeita: os
primeiros anos de vida são esse constante movimento de tensão, de queda iminente, de
repetição sem descanso.


Nos contos, as crianças não aparecem como seres cósmicos, banhados por uma energia
branda, como muitas vezes o imaginário popular insiste em mostrar. Não são diamantes a
serem lapidados, como no sonho de Peter Pan. Em Diabolô, elas são telúricas: cheias de
erros, atravessadas por emoções conflituosas, carregadas de diabos. E, quando nos
deparamos com algo tão real quanto isso, alguns questionamentos breves, mas profundos,
surgem: eu também era assim quando mais novo? É possível alguém tão minúsculo em
idade ser tão grande em egoísmos, raivas e melancolias? Há espaço para isso na infância?

Essa dúvida não é nova. Walter Benjamin, ao escrever sobre sua própria infância em
Infância em Berlim por volta de 1900, já apontava que lembrar é reconstituir ruínas, não
paraíso. Do mesmo modo, Resende nos devolve o peso de sentimentos que insistem em
permanecer: a vergonha de não caber no mundo, o desejo proibido que só se espera de um
adulto, os olhos curiosos que nos tiram a inocência. Não há espaço para glamourização em
sua narrativa. Ele é cru, realista e profundo em cada trecho do livro.

Mais do que isso, Diabolô nos lembra que a infância é um jardim de sentimentos inaugurais
que pode nos moldar para o resto da vida. É como um túmulo ao qual voltamos sempre,
levando flores. Um brinquedo quebrado, uma paixão precoce, uma grande perda. Todas
essas quedas funcionam como ensaio para a vida adulta, e os contos que trazem figuras
mais velhas revelam muito bem como essas cicatrizes permanecem.

Ao mesmo tempo, Resende abre espaço para refletir sobre a sexualidade ainda na infância.
Ela existe, mas pouco se fala sobre ela, quase sempre como um assunto proibido. Os pais
tentam afastar os filhos desse mundo “promíscuo”, mas esquecem que também, quando
pequenos, tinham pensamentos semelhantes. É nos anos inaugurais que começa adescoberta.

É nesse tempo que o olhar muda. Cada criança nos contos consegue mostrar,
com sua própria singularidade, as diferentes formas como esse desejo nasce: um pela
curiosidade, outro pela paixão prematura, alguns pelo ímpeto de crescer logo. Resende não
observa suas personagens com olhos superficiais, mas com profundidade. Se olharmos de
perto, Resende nos ensina a olhar as crianças como seres humanos, sem idealizações e
sem pudor.

Em “A Ceia”, conto de abertura do livro, nos deparamos com uma criança cheia de
travessuras e com uma perversidade que perpassa a ideia do que é ser criança.
Normalmente, acha-se que alguém com tão pouca idade jamais conseguiria agir de forma
tão maquiavélica. Em “Ofício”, a solidão da criança é quase palpável, e as emoções dele
são tão íntimas que planta no leitor uma certa desconfiança, quase como se estivéssemos
invadindo a privacidade dele; a paixão, o ódio e a impulsividade, ainda mais potencializadas
por se tratar das emoções de uma criança, o leva a caminhos doloridos que o marcará para
o resto da vida. Já em “A Fresta” é mostrado um momento de extrema importância em toda
infância: a perda da inocência; as metáforas com as cores, o jogo de palavras, a simbologia
dos frutos apodrecidos, tudo isso coloca no conto um charme a mais, nos dizendo aquilo
que fica subtendido nas entrelinhas.

Ao fim, ler Diabolô é reconhecer que a infância não nos abandona. Mesmo envelhecidos,
pisamos nesse mesmo terreno baldio onde a erva daninha cresce mais rápido que as flores.
E talvez seja essa a grande lição: não há como adoçar a infância sem mentir. Ela é feita de
frestas, quedas, desejos e maçãs que nunca amadurecem a tempo. Como o brinquedo que
gira sem parar, a infância continua seu movimento dentro de nós: não só como saudade,
mas como presença melancólica, eterna e inacabada.

______

Sobre o autor: Luiz Miguel Xavier da Silva é estudante de Letras pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e leitor-pesquisador que interroga a literatura e seus desvios. Natural de Delmiro Gouveia (AL), cultiva o desejo de se aprofundar em narrativas dissidentes e personagens que escapam do óbvio. Dedica-se a explorar a literatura alagoana em toda a sua amplitude — do sertão às paisagens urbanas — com um olhar voltado para uma produção sensível e diversa.

Últimas notícias

Inscreva-se para sempre receber as nossas novidades

Comente o que achou: