No Dia do Poeta, escritor delmirense discute sobre a função social do verso e celebra o lançamento de seu novo livro, Revoluteia.
Por João Vitor Ferreira – jornalista colaborador
Antes do poema existir, existe o poeta: aquele que transforma o silêncio em voz e musicaliza a saudade. É dele o atrevimento de garimpar palavras, em seu estado mais bruto, para moldar o mundo com versos. No interior do verso, que sempre se faz carne, habita um corpo-continente atravessado por feridas, afetos, infância e memórias marcadas pelo tempo.
Celebrado em 20 de outubro, o Dia do Poeta é uma homenagem aos que tocam o intangível, renomeiam o nome das coisas e traduzem sentimentos. A data foi escolhida por causa do Movimento Poético Nacional, surgido em 20 de outubro de 1976, em São Paulo, na casa do jornalista e escritor brasileiro Paulo Menotti Del Picchia (1892-1988), membro da primeira geração do modernismo brasileiro.
Para refletir sobre o Dia do Poeta, a Revista Alagoana busca compreender o que move quem escreve e de onde nasce um poema. É sobre isso que conversamos com Mayk Oliveira, 43, nascido em Delmiro Gouveia e intrínseco ao Rio São Francisco, no Alto Sertão alagoano, parte do mesmo chão que deu ao país nomes como Jorge de Lima (1893-1953) e Lêdo Ivo (1924-2012).
Mayk Oliveira é poeta, escritor, colunista, músico, ambientalista e professor de História e Língua Portuguesa. Ele acredita que a poesia é um “fruto assíduo do encontro entre sensibilidade e consciência”. Em seu novo livro Revoluteia, lançado em outubro de 2025 pela Editora Urutau, o autor observa o cotidiano, celebra pequenas revoluções e convida o leitor a reencontrar beleza e liberdade nas experiências do dia a dia.
À Revista Alagoana, o poeta fala não apenas sobre Revoluteia, mas também sobre seu processo criativo, suas principais referências e a função da poesia em sua trajetória.
R.A: Existe um momento em que você se descobriu poeta ou foi o mundo que te nomeou assim?
M.O: O mundo sempre deu ares graves para o ser poeta. Essa nomenclatura nunca foi uma conquista que buscaria. Mas a palavra se fez possibilidade para me colocar no mundo. Os diálogos dos filmes, as letras de músicas, a fotografia e as flores no quintal da minha casa causaram e causam a sensação de satisfação. Percebi os assombros da existência. Dessa maneira, o destino foi quem se impôs silenciosamente e me fez poeta. A poesia é que irrompe e toma os sujeitos.Todos nascem poetas, mas uns deixam passar o mistério e outros permitem que ele brote e floresça.
R.A: Além dos livros, de onde vem o alimento que nutre sua escrita?
M.O: As fontes são variadas. Creio que a fruição da poesia se encontra em todas as artes. Me abasteço de música, cinema, teatro e fotografia. A música me veio como causa primária e veículo facilitador da minha expressão artística. As letras das músicas e a energia que irradiava me fizeram querer me expressar também. Mas além das expressões artísticas humanas, a fonte assídua da minha escrita é a natureza. Foi a natureza quem me escreveu primeiro; eu apenas aprendi a ler as suas pausas.
R.A: Em sua visão, o poeta precisa assumir um papel social ativo ou o poema já cumpre essa função por si só?
M.O: Na minha visão, ser poeta já é, por si só, assumir um papel social ativo. O poema não é simples fuga do mundo ordinário, mas o fruto assíduo do encontro entre sensibilidade e consciência, da recusa em aceitar o mundo como ele é quando poderia ser mais justo. O artista, de modo geral, pode promover um pequeno ato de reparação, um lembrete de que a beleza e a dignidade são direitos universais. Ser poeta é existir com empatia e fazer da palavra um território onde todos possam caber.
R.A: Diante de guerras, crises ambientais e tensões globais, o poeta deve erguer sua voz em tom de denúncia ou ainda há espaço para contemplar flores e borboletas no jardim?
M.O: Diante de tanta calamidade, o poeta não pode se calar. O silêncio, nesses tempos, seria cumplicidade. Adorno disse que “escrever poesia depois de Auschwitz é um ato bárbaro”, e ainda assim, paradoxalmente, é justamente desse abismo que a poesia precisa nascer. Porque a função do poema não é negar o horror, mas revelar que, mesmo em meio a ele, ainda pulsa uma centelha de humanidade. O que seria das pessoas sem a música “Rosa de Hiroshima” para revelar o terror e fazer querer superá-lo ao mesmo tempo? Também se recolhe flores e borboletas, porque nelas reside a força daquilo que o ódio não conseguiu destruir. Contemplar o jardim não é alienação, mas pura resistência. A poesia constrói pontes para nos provocar a ver beleza e também nos tornar capazes de lutar por um mundo onde ela ainda possa existir.
R.A: Para você, a beleza é um destino a ser visitado ou um mundo que se constrói com gestos e palavras?
M.O: Há beleza até na lama, no erro, no desgaste e no inacabado, porque ela não habita só o esplendor. A beleza é fruição, é o instante em que o olhar humano se abre para o que o mundo oferece, mesmo quando esse mundo dói, te deixa só. Visitar a beleza é um exercício humano de aprender a ver com atenção, a demorar-se no detalhe, a permitir que algo simples nos transforme. A construção da beleza, por sua vez, nasce da observação do mundo, desse trabalho de quem recolhe o que é bruto e o devolve como forma, canto ou sentido. Posso pensar dessa forma que a beleza é viagem e obra; é o caminho de quem, ao ver, também cria.
R.A: Num tempo em que tudo é acelerado e efêmero, especialmente nas redes sociais, qual é o sentido de insistir numa arte que exige silêncio e atenção profunda?
M.O: Insistir na poesia e na arte em geral é total resistência ao esgotamento. Vivemos um paradoxo: para existirmos no tempo do corpo, precisamos enfrentar o tempo infinito do feed, esse fluxo contínuo que nunca dorme, nunca se sacia. A mente, porém, se cansa. Ela se estoura num suporte físico que precisa de descanso, alimento e água. A arte, ao contrário, exige o corpo natural; pede respiração, pausa, escuta, presença. O poema não se atualiza em segundos; ele amadurece como fruto, à espera da colheita certa. É nesse contraste que reside seu sentido. Estabelecendo que somos mais do que telas que deslizam, que ainda temos pele, fôlego e coração. A poesia nos devolve ao ritmo humano, aquele que o mundo virtual tenta apagar, mas que insiste em bater no peito, lento e real.
R.A: A música pode ser uma espinha dorsal da identidade. De que maneira o Rock n’ Roll se manifesta na sua voz poética e na forma como você enxerga o mundo?
M.O: Da maneira mais plural que existe. O Rock n’ Roll se manifesta na minha voz poética como impulso de liberdade e comunhão, recusando a monotonia do mundo. O rock ensinou que a arte pode ser grito e escuta porque a rebeldia é uma forma de criação. Pouco se fala, mas foi ele quem fez a juventude ganhar voz, tratando dos temas mais caros aos seus anseios e inquietações. Assim é com a poesia. Muitos movimentos literários nasceram do pulso da música, como a geração beat, que respirava jazz e improviso.
R.A: Se pudesse construir uma pequena biblioteca de vozes essenciais, quais poetas já mortos e outros ainda em movimento você colocaria nela — e por quê?
M.O: Não teria escolha senão começar com Whitman, para me ensinar como respirar e escrever são a mesma coisa; Maiakovski, para me lembrar que a palavra também é explosão; Kerouac, para que a estrada nunca acabe e o café nunca esfrie; Gullar, para rir e chorar das contradições do mundo; e, claro, Drummond, que me acompanharia silencioso, mas firme, em cada desvio da vida. E nessa conversa, é claro, brindamos: uma vodka para esquentar as ideias e um cafezinho com cachaça para aguentar os excessos da reflexão.
Quanto aos poetas que ainda se mexem e que ainda me fazem querer conversar até o sol nascer, são muitos, mas se pudesse escolher, iria atrás de Tarso de Melo e Sérgio Vaz. Imagino a cena: rindo, debatendo rimas, reclamando do mundo e da política e provavelmente discordando sobre se a cachaça deve entrar antes ou depois do café. Meu ideal é uma biblioteca não só de livros, mas de encontros que
desafiam o tempo, o tédio e o bom senso.
R.A: Entre essas vozes que já partiram, com qual poeta você gostaria de ter se encontrado em vida para tomar um café e conversar?
M.O: João Ubaldo Ribeiro, para morrer de rir.
R.A: Por que é importante ouvir, e não apenas registrar, as vozes que nascem no sertão alagoano?
M.O: Ouvir, e não apenas registrar, as vozes que nascem no sertão alagoano é um grande
reconhecimento de justiça cultural. Não se trata apenas de coletar dados ou produzir imagens de um “interior” exótico; é na verdade o ato de permitir que essas vozes se manifestem por si mesmas, com sua própria linguagem, seus próprios ritmos e suas próprias dores e alegrias. Como Fred 04, do Mundo Livre S/A, nos lembra numa de suas canções: “não espere nada do centro se a periferia está morta”. Essa frase é uma advertência: se ignoramos os que estão à margem, se limitamos suas expressões a anotações superficiais, perdemos a chance de compreender a totalidade do Brasil. No sertão alagoano, estamos em um lugar onde existem olhares que somente quem aqui vive pode ver e traduzir. Essa percepção é singular, íntima, construída no cotidiano, na convivência com a festa, com a música, com a terra e com as pessoas. É uma identidade que precisa ser dita por nós, pelos próprios sujeitos, e não apenas interpretada ou filtrada por olhares externos. Não se trata de uma regionalidade isolada: é Brasil. O sertão, suas vozes e sua sensibilidade fazem parte da tessitura nacional e desafiam a narrativa centralizadora que muitas vezes quer decidir o que é “autêntico” ou “relevante”. Ouvir é, portanto, um ato de presença, de empatia e de afirmação de que esses cantos e essas histórias existem, têm valor e merecem ocupar seu lugar no mundo. É reconhecer que a cultura se faz quando se deixa falar por quem a produz.
R.A: Cultivar a terra por dentro é também pensar nas raízes que nos atravessam. Que essência do sertão se espalha pela sua obra — um cheiro, um rosto ou uma paisagem?
M.O: As cidades interioranas têm um ritmo próprio, que escapa ao relógio apressado dos centros urbanos. No sertão alagoano as cidades respiram devagar, com ruas contando histórias. O cotidiano é feito de pequenos gestos como o café passado na hora certa, o burburinho das feiras, a conversa que se prolonga na sombra da igreja ou debaixo de uma mangueira. Nelas, a vida parece mais visível com as alegrias, as tristezas, os encontros e os desencontros. As pessoas são parte do espaço, e o espaço, por sua vez, se molda aos olhares e passos de quem nele habita. A paisagem urbana se mistura à rural trazendo as casas simples pintadas de tinta xadrez, ladeiras e pequenos riachos. No nosso caso, pelo gigante Rio São Francisco. Minha obra tem os ritmos daqui, embora seja oprimido pelo cotidiano que rege o mundo do trabalho.
R.A: Sobre o seu livro “Revoluteia”, qual mensagem você espera que permaneça com o leitor mesmo depois de fechá-lo?
M.O: Ao publicar esse livro, dei voz a uma experiência humana universal, mas muitas vezes silenciada: o peso do cansaço cotidiano e o desejo profundo de se reconectar com o essencial. É uma obra que fala do desgaste, porém carrega uma imensa esperança de transformação, apontando caminhos para renascer.
R.A: Como surgiu a ideia do livro e de que forma ela se transformou ao longo do processo da escrita?
M.O: A ideia de Revoluteia nasceu como um lampejo de capturar momentos de ruptura, de pequenas revoluções pessoais e coletivas, de episódios em que o cotidiano se dobra e se transforma em algo inesperado. No início, a intenção era registrar histórias soltas, reflexões que surgiam como fragmentos do dia a dia, do mundo que se move rápido demais para ser compreendido de uma vez. Mas à medida que o processo de escrita avançava, esses fragmentos começaram a conversar entre si, criando uma espécie de constelação de ideias, personagens e sensações. O livro se transformou de uma coleção de textos avulsos para algo mais orgânico. Aquilo que antes era crônica ou reflexão passou a dialogar com a outra, construindo uma narrativa sutil de transformação e resistência, sempre com uma pitada de melancolia. A escrita permitiu que as pequenas revoluções, internas e externas, se tornassem palpáveis, revelando como o cotidiano pode ser um terreno fértil para reflexões e insurgências poéticas. Revoluteia é o olhar para a vida com atenção aos detalhes, para perceber as fissuras que existem entre o que esperamos e o que acontece e, de algum modo, celebrar essas pequenas revoluções que nos atravessam.
R.A: Se pudesse deixar um único verso como despedida desta conversa, qual seria?
M.O:
a hora que roubam
a hora que me negam
a hora que peço
revoluteia
na insurgência que esvoaça
a alma
Sobre Mayk Oliveira
Ao longo da carreira, Mayk Oliveira também lançou “ Livro dos Delírios” (Parresia, 2020), Pétrino Astériu (2021) e Alcatrão com Grilos (2022). Conheça mais sobre o trabalho do poeta em seu perfil na rede social: @maykolivei_.