A singularidade de Saulo na vida e Saci no rap

Em entrevista à Revista Alagoana, o rapper Saci fala sobre sua trajetória no rap, o cenário hip-hop em Maceió e a força das periferias na sua música.

Foto: Cláudio Virginio

Por Maryana Carvalho com supervisão de Bertrand Morais

Saci é um personagem folclórico muito conhecido na história brasileira, reconhecido pelo seu gorro vermelho e seu inseparável cachimbo. Mas, nesta narrativa alagoana, o Saci é outra pessoa. Seu nome verdadeiro é Saulo, e desde criança ele viu no rap a sua paixão. Em suas letras, busca retratar a realidade das periferias e, por isso, se autodenomina “a cara das periferias”.

Foi a partir da Roda Marginal que Saci teve seu primeiro contato com o rap e o freestyle. Inspirado por essa vivência, lançou seu primeiro álbum, “Singularidade”, que mostra a realidade e o quão único é o Saci. A Revista Alagoana entrevistou o artista, que contou um pouco sobre sua trajetória no rap e sobre o gênero como uma forma de arte e denúncia. Saulo vai levar sua música ao Festival Carambola, que acontece dia 1° de novembro.

R.A: Primeiramente, vamos começar com a sua história na música. Você pode contar quando você decidiu ser artista musical e o por quê?

Eu sempre gostei de música, desde criança. Lembro que havia um rádio na casa dos meus pais, e eu conseguia gravar pelo toca-fitas em uma única fita cassete que tinha. Gravava programações e músicas que passavam na rádio, além de me gravar cantando músicas de desenhos e umas besteiras de criança.

Tive meu primeiro contato com o rap (que eu me lembre) entre os 10 e 12 anos, quando ouvi tocar em algum lugar enquanto caminhava na rua. Aquilo me chamou atenção, porque nunca tinha ouvido nada parecido e parecia muito bom. Era o tipo de música que não tocava em rádio, que os pais proibiam os filhos de ouvir. Ninguém tinha CD, porque quase ninguém conhecia, e computador, pra mim, era algo distante — quem dirá internet.

Por volta dos 14 ou 15 anos, tive acesso a um DVD com alguns clipes de rap gringo, que a gente chamava de “DVD de Hip-hop”. Depois, com a internet, comecei a ouvir Racionais, MV Bill, Sabotage e, mais pra frente, NSC, Os Comparsas, entre outros. Foi mais ou menos nessa época que comecei a querer escrever, por toda a identificação que eu tinha com o que era dito nas letras – mas ainda sem a consciência de que queria ser artista musical. Essa decisão veio anos depois, quando resolvi aprender a ser beatmaker e produtor.

Foto: Arlean Sant

R.A: Quem é Saci e por que você escolheu esse nome?

Saci é um apelido de infância. Quando comecei a batalhar, precisava me apresentar com um nome artístico, e esse já era um nome com o qual eu estava familiarizado – um personagem preto do folclore brasileiro não parecia uma má ideia. O apelido surgiu porque quase perdi uma perna por complicações de saúde, depois de uma contusão jogando bola. Sendo assim, Saci é um artista preto, brasileiro e original, no caminho de se tornar uma lenda.

R.A: Sua carreira começou pela necessidade de produzir seus próprios beats. Como essa fundação como beatmaker e produtor influencia sua abordagem como MC? 

Eu acho que a melhor coisa para um MC ou rapper é aprender a se produzir, deixar o resultado final do som – a pós-produção – o mais próximo possível do que foi pensado como projeto. Vejo o produtor como outro artista, assim como o beatmaker também é, apesar de nem sempre todos estarem creditados na mesma faixa. Se essas três pessoas se comunicam bem e têm o mesmo propósito, o resultado final é sucesso.

Se você tem acesso ao que precisa para fazer seus próprios beats e se produzir, acho que vale muito a pena o investimento, porque você é a melhor pessoa para decidir como quer que seu som soe. É um trabalho que exige mais criatividade e investimento, principalmente de tempo, mas, se for possível, vale muito a pena.

No meu caso, eu precisava de beats para escrever e lançar minhas letras. Tinha um PC e um fone, e resolvi aprender a criar. Na época, 90% dos artistas usavam beats de rap gringo disponíveis no YouTube – muito bons, por sinal –, mas essa era uma opção que poderia trazer problemas para lançar as músicas em algumas plataformas futuramente, então eu evitava.

R.A: A Roda Marginal foi um ponto de virada para você. Além da técnica do freestyle, o que as batalhas de rima te ensinaram sobre a comunidade, a performance de palco e sobre o Hip Hop em Maceió?

A Roda Marginal foi meu primeiro contato real com o freestyle e com o hip-hop na cidade. Até então, eu só assistia vídeos no YouTube. O contato com a cultura sendo feita é sempre bom por vários motivos: você encontra pessoas que gostam do mesmo que você, que se movimentam para fazer acontecer.

A batalha é um ambiente de competição onde você busca melhorar sempre. É também o contato com o público – que pode ser o seu primeiro, dependendo do estágio da sua carreira. Você cria conexões com pessoas com interesses em comum, o que ajuda no desenvolvimento de todos.

Claro que nem tudo são flores – estou citando a parte boa. O hip-hop na cidade e no estado ainda é difícil de fazer. Hoje, com as leis de incentivo, o Estado é obrigado a investir em cultura, e quem já fazia o movimento “na raça” agora tem acesso a recursos para aprimorar. Com o tempo, mais pessoas se identificaram com a cultura, e ela foi crescendo, devagar, no ritmo da cidade. Agora é um pouco menos difícil de fazer, porque temos mais ferramentas, mais experiência para passar adiante e a disposição de sempre, entendendo que isso é um trabalho de gerações.

Foto: Cláudio Virginio

R.A: Seu primeiro álbum, “Singularidade”, foi um projeto totalmente independente. Olhando para trás, quais foram os maiores desafios? E qual é a “singularidade” daquele Saci de 2018 para o Saci de hoje?

Saci é a própria singularidade, um ser único, como cada pessoa é. Aprender a usar o melhor disso é um processo contínuo, e percebo essa evolução desde então. Os maiores desafios na época foram lidar com a burocracia do lançamento, a produção do trabalho, decidir quando estava pronto… Era fazer e aprender, e aprender fazendo. No começo, tudo é meio obscuro, até que você faz duas, três vezes e pega um ritmo, criando um “manual” pra algumas coisas.

Um desafio que permanece é ser artista independente em Alagoas. Ainda não é o suficiente para sobreviver só da arte; é preciso buscar outros meios para sustentar o lado artístico. Essa é a grande dificuldade que faz muitos ficarem pelo caminho.

R.A: Você tem um EP chamado “Real Alagoas” com parceria com o produtor VHS 80’s. Nesse contexto do álbum, para você, o que significa ser “Real Alagoas”? 

É ter sua identidade alagoana expressa naquilo que você faz. Ela pode estar no seu jeito de falar, andar, se vestir, no que come, na realidade em que vive, no que escuta e em várias outras expressões.

Real Alagoas não foi um projeto que eu planejei e depois executei. Ele surgiu naturalmente, escrevi algumas músicas e, no final, ao ouvir tudo, decidi colocar esse nome por causa do conteúdo, que tinha essa identidade. É o recorte de uma pessoa com vivências específicas, individuais e coletivas, de um lugar específico, mas não é o único caminho para ser “Real Alagoas”, apenas um deles.

R.A: Você diz que é “a cara das periferias de Maceió”. De que forma as suas vivências cotidianas influenciam na sua música?

Influenciam de todas as formas. Não tem outra realidade a ser dita além da minha e da de quem está ao meu redor. Isso atrai outros artistas e um público que se identifica com a realidade periférica alagoana, de dificuldade, muito trabalho, mas também de criatividade, cultura e resiliência.

Mostro o lado positivo e negativo como forma de reflexão, para que a gente possa se enxergar melhor e buscar evoluir – ou, pelo menos, deixar o caminho mais fácil para quem vem depois.

R.A: Como você enxerga seu papel na cena local, especialmente para os artistas mais novos que estão começando agora?

Eu sou um artista que busca melhorar sempre, procurando ter o máximo de autonomia no meu trabalho, conectando-me com o novo e com o mais experiente, sem perder minha originalidade, mesmo com influências. 

Não deixo de ser quem sou, independentemente das tendências. Busco excelência pra não ficar pra trás de ninguém, de lugar nenhum, em questão de qualidade, só assim a gente, como “cena”, pode se tornar referência.  Se é pra dar certo, que seja sendo eu, de outro jeito não dá pra mim. Foi vendo artistas conterrâneos sendo quem são, fazendo seus trabalhos com originalidade e identidade, que aprendi a valorizar quem eu sou e minhas origens. Da mesma forma que isso me influenciou, espero que o meu trabalho influencie positivamente quem vem depois.

R.A: O que o futuro reserva para o Saci? Existem novas sonoridades, temas ou formatos que você deseja explorar em seus próximos projetos?

O que o futuro me reserva, eu não sei. É sempre uma surpresa, e espero estar preparado para surpresas boas. Quanto aos próximos projetos, posso dizer que ainda tenho muito a fazer dentro do rap: lançar trabalhos que já estão prontos, tanto solo quanto em parceria com outros artistas, e solidificar ainda mais minha identidade no gênero.

Mais pra frente, quero testar novas sonoridades que gosto e ainda não explorei, expandir meu trabalho como produtor e lançar projetos de outros artistas. Tenho muitos planos, mas não posso entrar em detalhes agora –  prefiro que vocês acompanhem na prática.

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