O cinema que a cidade apagou: Beatriz Vilela revisita a história dos cinemas de rua de Maceió

Em comemoração ao mês do cinema, a Revista Alagoana entrevistou a escritora dos livros “Cinemas de Rua: Sociabilidades, Decadência e Moralidade em Maceió” e “Pelos caminhos do cinema alagoano contemporâneo”

O cinema é a arte de mover tudo em direção à câmera. Eu falo daquilo que é imperceptível – a agonia, a dor, a ansiedade –  mas que a arte consegue mostrar e fazer o telespectador sentir. As histórias vêm por meio de imagens que transbordam as telas e que se assemelham às experiências do dia a dia, o que causa um certo tipo de identificação humana. 

Em um mês que comemora-se a sétima arte, a Revista Alagoana entrevistou Beatriz Vilela, socióloga, curadora, doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia. Mas além disso tudo, uma cineclubista ferrenha, amante do cinema brasileiro, sobretudo do cinema alagoano e integrante do Mirante Cineclube. Acho que o cinema é uma forma de contar histórias. E eu sempre gostei muito de contar histórias”, inicia Beatriz. 

Beatriz é especialista em Arte e Sociedade, Mestra em Sociologia e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas. Foto: Vitória Romeiro.

Sua história começa em um bairro de Maceió: a Ponta Grossa. Desde sempre foi uma menina que gostava de desenhar, escrever e procurava saber a origem das coisas ou sobre as pessoas. Ela conta que o cinema era algo impensável para ela, pois era um espaço caro demais para sua família estar. Até que um dia, na escola, algo que parecia coincidência, ou destino, aconteceu: ela foi escolhida para integrar um grupo de trabalho sobre cinema brasileiro.

Foi ali que descobriu um dos maiores audiovisuais nacionais: Vidas Secas – originalmente título de um livro do alagoano Graciliano Ramos – Nelson Pereira dos Santos.

“Lembro que foi a primeira vez que ouvi falar do filme vidas secas, de Glauber Rocha, de cinema novo, do cangaceiro, da premiação do Oscar. Fiquei encantada com aquele universo do cinema nacional, pois o espaço da sala de cinema era algo muito distante da minha realidade social”, relembra. 

A pesquisa sobre o apagamento dos cinemas de rua 

Após isso, passou a pesquisar mais sobre o cinema nacional. Frequentava locadoras com sua mãe, sempre procurando algo novo para expandir seu repertório. Durante toda a adolescência, cultivou o desejo de entrar em uma sala de cinema. No entanto, foi somente na universidade que começou a acompanhar as sessões do cineclube Tela Tudo – um coletivo de experimentação audiovisual (iniciado em Maceió em 2008 e ativo até 2013) que realizou exibições em várias partes da cidade. “Depois disso, foi com a pesquisa de mestrado que percebi que o cinema estava para mim para além da diversão, era cinefilia, trabalho e militância: outras formas de contar minhas histórias”, conta Beatriz.

Durante o mestrado, Vilela encontrou a oportunidade de pesquisar algo que marcou sua infância e adolescência, mas que hoje existe apenas na sua memória e de muitos alagoanos: o Cine Lux. Quando criança, ela passava pela porta de uma igreja na Ponta Grossa – onde antes funcionava o antigo cinema – e imaginava como seria se aquele espaço voltasse a exibir filmes. Essa lembrança a levou a estudar o Lux e, a partir dele, os outros cinemas de Maceió.

“Nesse percurso, encontrei um livro muito bonito de Elinaldo Barros sobre o Lux, chamado ‘Recordações de um Cinema de Bairro’. A partir dali, eu quis investigar o fim dos cinemas, a sua decadência, a sua impermanência nos bairros. Então percebi que, através das memórias, eu conseguiria construir uma cartografia de uma cidade que não existe mais”, reflete.

Então, realizou levantamentos das programações fílmicas de Maceió entre as décadas de 1960 e 1980 no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e no Arquivo Público do Estado. Ela conta que identificou um aumento na presença de filmes brasileiros em cartaz, impulsionado principalmente pela pornochanchada – gênero que misturava humor e erotismo e marcou fortemente o período. Um dos maiores exemplos é A Dama do Lotação, de Neville d’Almeida, que figura entre as maiores bilheterias do país: o filme teve 6,5 milhões de espectadores nos cinemas em 1978. 

Ela questiona a ideia de que a pornografia teria sido a responsável pelo fechamento dos cinemas de rua. Para Beatriz, essa narrativa acabou funcionando como uma distração. “Acredito que isso foi usado como uma cortina de fumaça para esconder o grande vilão: a presença esmagadora do capital estrangeiro no investimento das salas multiplex nos shoppings”, explica. 

Livro “Cinemas de rua: Sociabilidades, Decadência e Moralidade”, lançado recentemente na 11ª Bienal do Livro de Alagoas.

Em seu livro “Cinemas de Rua: Sociabilidades, Decadência e Moralidade em Maceió” (Loitxa Lab), destaca como o crescimento urbano da capital alagoana – que prestigia a diversão, mas se ausenta de políticas públicas – interferiu no cenário dos cinemas na região. 

Entre as décadas de 70 e 80, Maceió passa por um processo acelerado de expansão urbana. Novos bairros surgem, especialmente na região litorânea, que rapidamente se torna o novo reduto da classe média. Com essa mudança, o Centro deixa de concentrar o lazer da cidade, enquanto as antigas salas de rua enfrentam dificuldades para se modernizar e acompanhar as novas tecnologias de exibição e som.

Esse conjunto de fatores abre espaço para que os cinemas dos shoppings ganhem força, amparados pelo discurso da modernização, da segurança e da novidade, atraindo um público que antes frequentava os cinemas de bairro. 

E, sem qualquer tipo de fomento ou investimento do Estado, as salas de rua acabam se tornando espaços de uma sociabilidade periférica, frequentados por gays, prostitutas, pela pegação, por tudo aquilo que não encontra lugar nas novas salas”, explica Beatriz.

Por muito tempo, o cinema alagoano não era tão visível aos olhos do público brasileiro, muito menos do internacional. Hoje, produções como “Alice”, de Gabriel Soniz, filmado em Alagoas e centrado na história de Alice – uma mulher trans, surfista e skatista de Maceió – alcançam espaços importantes, como o prêmio de Melhor Curta Internacional de Documentário no Hot Docs, em Toronto, e até mesmo a possibilidade de chegar ao Oscar.

De acordo com a cineclubista, a primeira metade dos anos 2000 foi marcada pelo registro de memórias da cultura popular e do território alagoano. No entanto, nos últimos anos, esse cenário começou a mudar:

“Percebo que tem ganhado força a construção de ficções que fabulam sobre os problemas sociais da cidade, sobre nossos imaginários coletivos, sobre nossos personagens reais. Estamos construindo outro cinema, algo bastante conectado ao que vem acontecendo com o cinema brasileiro de modo geral. Um cinema que ousa na forma, na escolha temática e se arrisca a colocar em tela personagens historicamente esquecidos ou propositalmente excluídos do mundo das artes”, acrescenta.

A importância dos cineclubes

Atuou como docente na Universidade Federal de Alagoas nos cursos de humanidades entre 2021 e 2023. Foto: Vitória Romeiro

Como integrante do Mirante Cineclube, Beatriz vê os cineclubes como espaços essenciais para a formação de um olhar crítico sobre o cinema, além de ampliar o acesso à cultura. Ela explica que aprendeu muito nesse ambiente, debatendo filmes com outras pessoas, o que lhe permitiu aprofundar o contato com cinematografias de diversos países e desenvolver o hábito de pensar e escrever sobre o que via nas telas.

Uma sessão, em especial, segue como um marco em sua vida: a exibição de A Teta Assustada, da peruana Claudia Llosa.“É um cinema feito aqui do nosso lado, mas que, ao mesmo tempo, está tão distante”, lembra. Para ela aquele encontro sintetizou o propósito do Mirante: não apenas reunir espectadores, mas estimular a busca por olhares contra-hegemônicos. “E de certo modo, isso nos levou a construção da Mostra Quilombo e da Mostra Que Desejo, que lançam olhares para o cinema negro, indígena e queer”. 

Beatriz ainda destaca que o país vive uma conjuntura política mais favorável às políticas culturais, após um período marcado pelo desmonte e pela desinstitucionalização da área. Algo que só é possível por causa da participação social e de um governo que recoloca a cultura no centro do desenvolvimento nacional.

No caso de Maceió, – onde as salas estão, em sua maioria, concentradas em shoppings populares – o incentivo a mostras, festivais e cineclubes se torna uma necessidade para ampliar o acesso ao cinema. Editais, como a Lei da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) e a Paulo Gustavo já apresentam linhas de fomento a esses espaços. 

“Isso representa uma virada histórica para o campo da difusão, pois com isso é possível garantir janelas de exibição que asseguram a presença do cinema brasileiro de forma gratuita e acessível”.

O que Beatriz encontrou nos arquivos, cineclubes e caminhando pela cidade não foi só um passado que ficou para trás, mas sinais de que ele pode voltar a existir. “É o caso de cidades bem pertinho da nossa, como Penedo, que reabriu suas principais salas: a do Cine Penedo e o Cinema São Francisco”, lembra. Esses exemplos mostram que existe um caminho possível. Ao observar o que já acontece em outras cidades, Beatriz afirma que Maceió também pode trazer o cinema de volta para os espaços da cidade. Essas cidades estão mostrando para as capitais que o cinema também é prática social, e sobretudo, é uma possibilidade de fortalecermos nossa cidadania cultural”, conclui.

Ao fim da entrevista, a Revista Alagoana perguntou qual filme do audiovisual alagoano ela escolheria como favorito. Incapaz de apontar apenas um, Beatriz apresentou uma lista de dez títulos que considera indispensáveis:

 

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