A força das mulheres esteve como centro de enredos que resgatam memórias e denunciam violências de gênero
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Lícia Souto e Bertrand Morais
Nos festejos juninos de 2025 em Alagoas, duas apresentações brilharam por motivos que vão além da beleza dos figurinos e da sincronia dos passos. A quadrilha Amanhecer no Sertão e o grupo de coco Reviver Alagoano venceram os principais concursos culturais do estado trazendo ao centro de suas narrativas a figura da mulher, seja como denúncia ou memória viva.
As vitórias de ambos os grupos não aconteceram por acaso. Representam o resultado de processos coletivos que vêm transformando as expressões populares em instrumentos de denúncia, visibilidade e resistência. Em um cenário onde cultura e política se entrelaçam, o São João se tornou espaço também para a reivindicação de direitos, para o grito por justiça e para a celebração daquelas que sustentam, com seus passos e vozes, os saberes ancestrais do povo alagoano.
A denúncia em cena: Quadrilha Amanhecer no Sertão
A arte popular sempre esteve profundamente conectada às vivências do povo e, em muitos casos, tem sido uma das primeiras formas de denúncia e resistência diante das opressões cotidianas. Em comunidades onde o acesso à justiça é limitado e a informação não chega com clareza, é por meio da dança, do canto e da encenação que se constroem estratégias de enfrentamento, acolhimento e transformação.



A memória como resistência: Grupo de Coco Reviver Alagoano

Foi esse o caminho escolhido pelo grupo de coco Reviver Alagoano, vencedor do Concurso Municipal de Coco de Roda 2025, ao homenagear figuras femininas centrais para sua história: a matriarca e fundadora do grupo, dona Roseane, além da mestra Rosália, referência nos cantos de trabalho em Arapiraca, e Nossa Senhora Rosa Mística. O espetáculo, intitulado “Rosas”, levou à arena uma verdadeira oferenda à força, beleza e ancestralidade das mulheres.
“Estávamos num momento de conversa e lembraram que minha mãe já não costura mais como antes. Aquilo mexeu comigo. Veio à tona tudo o que ela fez pelo grupo”, contou Bettinho, filho de dona Roseane e atual coordenador do Coco Reviver. A partir daí, surgiu a ideia de transformar o espetáculo numa homenagem em vida, repleta de simbolismos: figurinos em tons de rosa, flores de cetim, coreografias em roda e músicas de Renata Rosa e da mestra Rosália. “Fizemos tudo pensando nas nossas raízes e no bairro de Bebedouro, que carrega tanta tradição”, completa.

Quando a cultura popular rompe o silêncio
As apresentações dos grupos Amanhecer no Sertão e Reviver Alagoano revelam caminhos distintos, mas igualmente necessários, para colocar a pauta das mulheres no centro dos festejos populares: uma pela denúncia direta da violência, outra pela celebração da memória e da ancestralidade. Ambas desafiam o imaginário tradicional do São João e mostram que a cultura popular pode, sim, ser espaço de consciência e transformação social.
Conversamos com a advogada e pesquisadora Bruna Sales, que atua no enfrentamento à violência de gênero e, para ela, quando manifestações enraizadas nas comunidades assumem esse papel, rompem com o silêncio que ainda encobre muitas violências naturalizadas. “Sai do cenário do casamento matuto tradicional, que fomenta uma cultura machista e patriarcal, para trazer, sem romantismo, a realidade experienciada, ainda, infelizmente, por muitas mulheres”, analisa.

A especialista também chama atenção para o papel do Estado nesse processo. Segundo ela, o direito e as políticas públicas ainda estão distantes dos territórios onde a cultura pulsa como instrumento de cuidado e educação. “Falta reconhecer que cultura popular é, muitas vezes, a primeira forma de justiça a que o povo tem acesso. Esses grupos já acolhem, já educam, já escutam. O que o poder público precisa fazer é parar de falar deles e começar a falar com eles”, afirma.
Nas arenas improvisadas de bairros periféricos, em coreografias circulares e enredos costurados à mão, seguem resistindo comunidades inteiras e, principalmente, mulheres. Em tempos de violência silenciada ou banalizada, gritar em roda, lembrar em flor ou denunciar em cena são gestos que não cabem mais no rótulo de “folclore”. São, na verdade, formas urgentes de comunicar o que ainda precisa ser mudado.
Seja exaltando mestras, santas e matriarcas, seja rompendo com narrativas machistas caracterizadas de tradição, os grupos culturais que venceram os concursos de 2025 fizeram mais do que competir: eles transformaram a cultura popular em território de enfrentamento, memória e esperança.

