Memórias e reflexão sobre como os povos tradicionais revelam formas sustentáveis de viver e cuidar da terra
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais
Em um momento em que o mundo busca soluções para a crise ambiental, os saberes ancestrais dos povos tradicionais emergem como caminhos potentes de preservação e convivência equilibrada com a natureza. Muito além das políticas oficiais, comunidades quilombolas carregam em seus modos de vida, práticas sustentáveis enraizadas no respeito à Terra, no uso consciente dos recursos e em ritmos herdados de gerações anteriores.
Nesse contexto, a Revista Alagoana conversou com Israel Oliveira, jovem quilombola, nascido e criado na comunidade Cajá dos Negros, localizada no agreste sertanejo de Alagoas. Formado em Ciências Sociais e mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Israel defende a titulação de territórios quilombolas e reflete sobre as formas de resistência, cultura e preservação ambiental vividas por sua comunidade — hoje marcada por conflitos fundiários e apagamentos históricos.
Israel compartilha memórias de infância, saberes do cotidiano e análises sobre o impacto das políticas públicas no meio ambiente e nos modos de vida quilombolas. A conversa parte da vivência para refletir sobre como tradição, território e natureza se entrelaçam no presente e apontam caminhos para o futuro. Confira:
R.A.: Como você entende a preservação ambiental dentro do contexto quilombola?
Israel: Está no modo como usamos a Terra. A gente planta no ritmo da Terra — milho, feijão, abóbora, tudo junto, sem monocultura, a terra volta a brotar sozinha se deixada em paz. Diferente da monocultura da cana ou soja, que suga até o último fio de vida do solo. A proteção ambiental nas comunidades não é só “preservar”, é usar respeitando o tempo da natureza.
R.A.: Como é sua relação com o meio ambiente? E como seu conhecimento territorial e ancestral atravessa essa relação?
Israel: A palavra “ancestralidade” nunca foi um conceito presente diretamente, mas nossas práticas cotidianas eram profundamente conectadas com o território. Na infância, durante a quaresma, a gente saía pelo mato colhendo umbu em grupos. Caminhávamos quilômetros, guiados apenas pela memória e oralidade. Tínhamos uma relação de uso com o território – e não de exploração.
Às vezes, o básico que aprendemos na comunidade vira “conhecimento ancestral” para quem está distante da Terra. Saber que uma árvore quebra o calçamento porque tem raiz não deveria ser algo extraordinário. É o mínimo. O que falta é as pessoas voltarem a sentir o chão, o cheiro da Terra, o tempo da semente.
R.A.: Você acredita que a luta por território é também uma política ambiental?
Israel: Sim. A titulação de territórios é, por consequência, uma política de preservação. Em Alagoas, por exemplo, se todas as 77 comunidades quilombolas tivessem suas terras tituladas, teríamos 77 áreas de conservação ambiental. Só que isso não é visto assim pelo Estado. Falta reconhecer que garantir território tradicional é permitir que práticas sustentáveis e culturais sobrevivam.
R.A.: Como manter vivas as tradições culturais e sua relação com o meio ambiente?
Israel: A tradição se mantém se houver território. Sem circulação no território, a prática pode morrer. Com a titulação em curso desde 2013, muitos da nossa comunidade tiveram o acesso restrito por fazendeiros. Sobre educação, conquistamos recentemente o curso superior de Educação Escolar Quilombola aqui no estado, acho que é um bom caminho. Mas também falta mercado e valorização para os produtos culturais das comunidades.
R.A.: As políticas ambientais atuais contemplam os modos de vida quilombolas?
Israel: Não dá pra dizer que sim ou não, porque sequer há aplicação concreta. Sem titulação, sem território, como avaliar? A política está no papel. Quando muito, é discurso. Quando as terras forem garantidas, aí sim poderemos medir seus impactos ambientais reais.
R.A.: Quais são os maiores desafios ambientais hoje e qual o papel da juventude quilombola?
Israel: O maior desafio é não ter território. Quando a terra é usada por outros, a gente sofre com veneno, desmatamento, calor extremo. Se você for no Cajá e olhar para a Serra das Mãos que não faz parte do território quilombola, mas é uma das serras que você vê de dentro da comunidade, nota que metade dela praticamente está sendo desmatada e particularmente, eu diria que não sei dizer se há ou não algum tipo de acompanhamento por parte dos órgãos de regulamentação ambiental sobre essa situação.
A juventude pode enfrentar isso se apropriando das instituições, se tornando juiz, Antropólogos, técnico ambiental, defensor público. Lutar por direitos também é resistência.