A vida é um documentário: Fazer cinema sob a ótica e território arapiraquense

Em entrevista à Revista Alagoana, Leandro Alves destaca carreira, vida no interior e o importante papel do cinema para evidenciar narrativas sensíveis e reais

 

Texto de Lu Melo com supervisão de Bertrand Morais

Nossas jornadas pessoais são cheias de histórias para contar. Dos relatos mais simples até contos fantasiosos que surpreendem o ouvinte, essa é uma maneira simples de abordar o imaginário e o real da sociedade. Porém, através de uma lente, essas histórias – ou roteiros da vida real – se tornam lúdicos, sensíveis e visíveis. O documentário é um precursor da sensibilidade humana sobre nossa realidade, da mais absurda até a mais emocionante.

Arapiraca se destaca como uma precursora do cinema fora da capital, Maceió. Suas iniciativas como festivais, oficinas e produções levam para jovens cineastas a vontade de falar sobre sua terra, sem precisar buscar inspirações longe de sua cultura e vivência.

Nesse sentido, o Dia do Documentarista, comemorado no dia 7 de agosto, enaltece o trabalho de profissionais do cinema que contribuem ao contar histórias de uma sociedade escondida dos olhos desatentos. Evidenciando trajetórias tão comuns de maneira sensível e graciosa. A Revista Alagoana entrevista Leandro Alves, arapiraquense, diretor de curtas como “Hoje Tem Espetáculo?” e “Avalanche”; mestre em cinema pela Universidade Federal de Sergipe e diretor do Núcleo do Audiovisual de Arapiraca (Navi). Ele nos conta sobre seus processos em enxergar narrativas para além de Maceió e como o cenário de cinema alagoano cresce no Brasil e no mundo. 

 

R.A.: Os roteiros que você dirigiu são crus, reais e sensíveis. O que é necessário para ter um olhar atento para analisar histórias marcantes para um documentário ou ficção em Alagoas?

Acho que a minha construção de roteiro vem muito da minha vivência pessoal. Eu sou da década de 90, então cresci nesse contexto, em que a gente alugava muito filme, buscava referências nesse lugar. Depois veio a internet, e isso ampliou ainda mais as possibilidades.

Sempre gostei muito de ler e escrever, de consumir muita leitura e muito cinema, mas também de entender a linguagem. Não deixava as coisas só chegarem prontas para mim. Acho que a construção do meu roteiro vem muito disso: de uma busca por humanizar as histórias, de olhar para o que está ao redor, de entender que as histórias são universais, mas que a forma de contar é única. A mesma história, contada por mim ou por você, será diferente, porque cada um tem um olhar, uma bagagem, uma vivência. Isso influencia diretamente na forma como escrevemos. Acho que isso tudo vem das minhas referências.

Quando você fala que meu roteiro é “cru”, acho que é justamente por essa influência do documentário, que é um estilo que eu gosto muito. Eu comecei com o documentário, e me sinto muito à vontade nele. Gosto de conversar com as pessoas, de escutar suas histórias. E os roteiros que escrevo surgem muito desses processos de escuta.

O projeto Navi, por exemplo, me ajudou muito nesse sentido. Enquanto fazíamos filmes, estávamos também produzindo conhecimento, discutindo educação, entendendo como fazer cinema aqui, onde estamos, a partir da nossa realidade, do nosso território. Nesses processos de formação, fui encontrando histórias que, de certa forma, ficam no imaginário e depois servem como base para personagens ou roteiros inteiros.

Esse lugar do documentarista, de quem observa o real, é interessante. Mesmo quando escrevo ficção, levo tudo isso comigo. Tem essa coisa do real, de tentar mostrar as imagens com uma perspectiva quase antropológica, de registrar o lugar, o tempo, as pessoas.

Então, acho que é isso: minha construção de roteiro vem muito desse lugar de escuta, de adaptação, de criação coletiva, da minha vivência como documentarista e da tentativa de transformar isso em algo palpável, mesmo nas ficções. É um modo de fazer que respeita o território, as pessoas e a realidade de onde venho.

 

R.A.: Você acredita que a cena audiovisual de Alagoas debruça-se mais sobre a capital? Como você avalia a sua contribuição como diretor, mestre em cinema e coordenador do NAVI para redirecionar narrativas para regiões além de Maceió?

Meu processo veio muito de olhar para o lugar, para mim, para onde eu estou, e isso é algo difícil. Saí de Arapiraca justamente porque achava que aqui não havia condições de fazer cinema, de dialogar e criar. Eu olhava para o lado e não via ninguém com quem eu pudesse trocar, conversar e produzir junto.

Muitos amigos que também discutiam cinema foram embora, alguns para o exterior e outros para outras cidades. Quando decidi sair, eu pensei: “Ok, vou tentar outro caminho”. Minha primeira graduação foi em Administração. Tentei seguir nessa área, mas chegou um momento em que percebi que não era isso que eu queria. Eu queria cinema.

Achei que, ao sair, não ia mais voltar. Tinha essa ideia de que não dava para viver de cinema aqui em Arapiraca. Mas acabei voltando por várias razões. E quando voltei, percebi que tudo aquilo que eu havia aprendido e feito em outros lugares, eu também podia fazer aqui. Comecei a tentar entender como eu poderia viver de cinema aqui, e ao mesmo tempo veio o pensamento: “Como eu vou viver disso aqui?”

Sempre gostei muito de audiovisual, de assistir, de consumir, de refletir sobre o que está acontecendo no Brasil nesse campo. Então, quando decidi ficar em Arapiraca, a primeira coisa que pensei foi: “Quero olhar para o meu lugar. Quero ver se aqui tem histórias para contar. Quero entender o que é ser de Arapiraca”. Eu não queria contar histórias de Maceió, nem de São Paulo ou do Rio. Queria contar as histórias daqui.

Quero conhecer meu território, conhecer as pessoas que também podem produzir, principalmente quando estivermos em processos de formação. Porque muitas vezes, quando estamos formando ou planejando, não pensamos no lugar onde estamos. E por quê? Quando produzimos algo no nosso território, com os nossos recursos e as nossas condições, fica mais possível. Não necessariamente mais fácil, mas mais viável. E a gente conhece esse lugar, essa realidade. Acho que, para mostrar imagens, para contar histórias, precisamos saber o que estamos mostrando. 

Tem uma frase do Walter Benjamin que diz que os analfabetos do futuro serão aqueles que não souberem ler suas próprias imagens, e isso me marca muito. Quando comecei a fazer cinema aqui, eu nem imaginava que seria algo focado só em Arapiraca. Não era um plano. As coisas foram acontecendo, meio subjetivamente. Hoje eu entendo a importância do lugar onde estou. Estou há mais de 15 anos envolvido com o audiovisual, e vejo que muita coisa foi feita. Tem muita gente produzindo aqui.

Acho que é importante olharmos para nós mesmos e reconhecermos: fizemos muita coisa massa. Há coisas interessantes, sim. Também precisamos pensar na nossa trajetória individual como roteiristas, como diretores. Afinal, precisamos sobreviver. Outras pessoas também precisam surgir: realizadores, outras formações, outros públicos.

Estou sempre tentando entender o papel de fazer cinema em Arapiraca. Gosto de dialogar, de conversar sobre o que estamos fazendo. E acho que isso é um diferencial: não é só fazer filmes, mas também difundir, discutir. Sempre tento participar de espaços e entender como estamos sendo vistos, porque isso fortalece nosso trabalho.

Também nos ajuda a perceber a importância do que estamos fazendo por aqui. Acho que precisamos falar mais sobre nós mesmos. Às vezes a gente evita isso, mas é necessário ter consciência do papel que ocupamos e do lugar onde estamos. Espero que o audiovisual de Arapiraca cresça e floresça. Quero fazer mais longas, ser chamado para produzir, escrever, realizar em outros territórios, quero entrar no mercado.

 

R.A.: Para você, como é ser alagoano e o que Arapiraca representa? E como isso se reflete nas suas produções audiovisuais?

Enquanto alagoano, acho que a gente tem muito orgulho do que é. Vejo isso muito na figura do arapiraquense também. Arapiraca carrega essa imagem de cidade que mais cresce, de “metrópole do futuro”, de “avenida do futuro”, o “gigante”. Existe essa ideia de que Arapiraca está em constante crescimento.

Cresci nesse lugar, uma cidade de passagem, que se desenvolve de forma acelerada, você passa por um lugar, e na semana seguinte a padaria virou um prédio de dez andares. As casas e comércios vão sendo substituídos por clínicas, por prédios. O centro da cidade hoje é praticamente todo comercial.

E é daí que vem essa minha vontade de falar sobre o meu lugar, sobre essa percepção de ser arapiraquense. Existe uma ânsia, um desejo de fazer algo grande. E isso também está muito presente no cinema alagoano. A gente quer fazer um negócio bonito, bem feito, bem cuidado. Muitas vezes, é algo estético, mais demorado, mas isso também é normal.

Produzir um filme nosso, feito aqui, sobre o nosso lugar, é muito difícil. É se expor, é mostrar nossa realidade. Mas com o tempo a gente vai perdendo o medo, vai amadurecendo. E acho que os nossos filmes refletem isso: são pensados esteticamente, sim, são bem cuidados. O cinema alagoano tem esse olhar visual forte. Os processos de formação foram importantes, eles deram oportunidade para que outras pessoas aparecessem, trouxeram novas estéticas, abriram espaço para outros olhares. Isso é muito importante.

Ser alagoano é também lidar com essa condição de estar entre grandes polos culturais, que tem investimentos históricos em cultura, políticas públicas de incentivo e reconhecimento. Alagoas e Sergipe, por outro lado, ficam meio escondidos, esquecidos nesse mapa.

E aí vem esse desejo de mostrar: “Estamos aqui, somos pequenos, mas temos muita gente massa, muita gente boa!”. Acho que hoje já vemos um movimento diferente: as pessoas estão ficando, produzindo aqui, sem necessariamente sair de Alagoas. Durante muito tempo, quem fez sucesso era quem saiu, mas agora há uma tentativa real de mostrar que também se faz muita coisa boa por aqui.

Temos uma cultura forte e rica, não é só turismo. Temos muitas histórias, muita gente talentosa, histórias bacanas para contar. E é isso que eu quero mostrar enquanto alagoano: temos o que contar, temos valor, temos o que oferecer.

Estamos cercados de estados que já entenderam a importância de trabalhar com cultura, de investir, de reconhecer o próprio território. E, sinceramente, acho que Alagoas ainda carece muito disso. Ainda falta esse entendimento de que é preciso investir na cultura e valorizar quem está aqui, criando, resistindo e construindo.

 

R.A.: Nacionalmente, como você acha que as produções documentais de Alagoas são vistas ou como deveriam ser enxergadas?

Acho que o cinema alagoano está sendo muito visto e com curiosidade. As pessoas estão de olho no que está sendo feito aqui. O cinema de Alagoas tem chamado atenção lá fora, está sendo bem recebido, tanto do ponto de vista estético quanto narrativo, histórico e até na forma de fazer.

Acredito que o cinema alagoano vai crescer muito. Vai ter muita gente circulando com seus trabalhos. Quem está fora das nossas bolhas já percebe isso. Pode ter certeza: o cinema alagoano está sendo observado de perto.

Os filmes daqui estão presentes em diversos festivais pelo Brasil. Se você observar, quase todos os festivais nacionais têm, pelo menos, um filme alagoano sendo exibido. E por quê? O público está assistindo e gosta do que vê.

Acho que, para muitos, é um cinema novo, fresco, com uma linguagem própria. Existe esse olhar atento para o que está acontecendo aqui. Os movimentos, os realizadores que estão surgindo, os festivais que estão nascendo e os filmes que estão sendo produzidos.

Tem uma nova safra de longas-metragens vindo aí, e essa safra já está sendo vista. Esses roteiros, esses filmes em fase de finalização, os cortes preliminares… Eles já estão circulando em laboratórios importantes, em espaços de desenvolvimento de projetos, estamos falando de materiais que estão sendo avaliados para festivais como Cannes, Berlim e entre outros internacionais.

Ou seja, é um cinema que está sendo visto com interesse real. As pessoas estão prestando atenção no que está sendo feito aqui. E isso mostra o quanto o cinema alagoano tem potencial e está ocupando seu espaço.

 

R.A.: Por último, qual seria o recado ou dica que você daria para aspirantes que querem se aventurar no mercado do audiovisual?

Aqui em Alagoas, por exemplo, a gente não tem um curso de graduação em audiovisual. Então, nosso processo é muito mais autodidata, de aprender na prática, de correr atrás, de estar sempre buscando. Mas, ao mesmo tempo, eu percebo que hoje tem se produzido muito por aqui. A informação está circulando mais, as pessoas estão se interessando e estão mais ligadas no que está acontecendo.

Claro que ainda existem bolhas, e furar essas bolhas é difícil. Mas isso não é exclusivo de Alagoas, acontece em todo lugar. Mesmo assim, eu acredito que quando as pessoas se juntam para pensar e criar juntas, as coisas começam a mudar.

A criação de coletivos, de grupos que se identificam e querem produzir juntos, é muito potente. Não importa se alguém diz “ah, mas eu não sei produzir”, ou “não sei nada disso”. Não, bicho. A gente está produzindo, estamos criando, aprendendo e experimentando, isso é muito importante.

Vejo muita gente olhando para o que está surgindo, consumindo mais o que é feito aqui, se envolvendo, e acho que esse é o caminho. Foi assim que eu comecei a discutir cinema, no palco, na mesa do bar, trocando ideias com amigos, entrando em processos de formação, se inscrevendo em oficinas, escrevendo e mostrando para outras pessoas. Tipo: “Olha, escrevi isso aqui, o que você acha?”. Esse tipo de troca é fundamental.

Às vezes a gente pensa que tem que guardar tudo, que a ideia é só nossa, que ninguém pode ver o roteiro porque é “nossa história”. Mas toda história, de alguma forma, se universaliza. Sempre vai ter alguém contando algo parecido. O que muda é a forma como você conta, como você dialoga com o mundo.

Então, no fim das contas, é sobre tornar as coisas possíveis e isso só acontece quando você encontra pessoas que queiram caminhar junto com você. É assim que as coisas se realizam.

 

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