Texto de Lícia Souto
Vale tudo. Vale o que vier. Vale o que quiser. Só não vale dançar homem com homem, nem mulher com mulher. O trecho da canção escrita por Tim Maia na década de 90 não poderia estar mais equivocado hoje. Mas acontece que 31 anos após a música, ainda paira no imaginário social que dançar não é “coisa de homem”. Essa concepção, na verdade, é mais antiga que o próprio Tim Maia.
Afinal, o que é coisa homem?
Nesta reportagem, conversamos com bailarinxs sobre o envolvimento com a dança e toda bagagem social que vem junto com a arte; confira.
- Muitas coisas estavam acontecendo num Brasil vulnerável e exposto, que cambaleava ao encontro da redemocratização. Naquele ano, José Sarney instituiu o Plano Cruzado, Hebe Camargo estreou no SBT; na Copa do Mundo, a França derrotou a seleção brasileira e os mandou de volta para casa. Em Alagoas, Fernando Collor era eleito governador.
Em São Paulo, o então prefeito Jânio Quadros se lançava em uma de suas empreitadas populistas e obrigou a direção da Escola de Balé do Teatro Municipal a expulsar alunos tidos como homossexuais, proibiu a entrada e contratação de bailarinos considerados gays na instituição e extinguiu o curso noturno de balé para homens. Em meio a um cenário caótico, aquilo passou despercebido. O que aconteceu em 1986 ficou naquela realidade. Menos o preconceito. Este, atravessou as décadas e ainda acompanha muitos homens, ainda reprime muitos passos fora dos holofotes.
- Três anos antes da enchente histórica que devastou vários municípios de Alagoas e Pernambuco, o Clube Esportivo Santanense situado em Santana do Mundaú (AL) recebia as comemorações de São João, e era palco para as quadrilhas juninas. Ali, naquele espaço que foi arrastado pela água e hoje é só memória, começava a história de Maciel Ferreira com a dança.
“Aos 13 anos tive meu primeiro contato efetivo com dança. Um período prazeroso e ao mesmo conturbado de novas descobertas, exigências… Estava me descobrindo sexualmente. Até ali, não tinha consciência do que era preconceito, mas já sabia que ele existia. Dançamos e foi uma experiência inenarrável! ”, relembra Maciel.
No ano seguinte, ele recebeu a visita de uma tia e as filhas que chegavam do sertão alagoano. Por acaso ou destino, uma das meninas era dançarina de banda de forró, o que despertou ainda mais a curiosidade de Maciel pelas quadrilhas e pela dança, apesar de toda repressão que viria por esse caminho.
“Essa prima foi a primeira da família quem me estendeu a mão e falou abertamente sobre preconceitos, afirmando que nem todo homem que dança é homossexual, que eu não me importasse com o que as pessoas iriam dizer. Juro que foi libertador, vi nela um amparo, mesmo assim não assumi naquele momento a minha orientação sexual por medo, e o meu medo maior era o meu pai. Lembro-me dela ensinando alguns movimentos que timidamente fui aprendendo. Sempre reafirmando que eu não precisava ter vergonha, nem medo de nada.
Nessa época senti florescer um sentimento pela dança que ainda não saberia explicar. Tudo era de forma espontânea e empírica, pois não tínhamos e não temos nenhum espaço que ofereça aulas de dança no município, ainda que tivesse, provavelmente eu não o faria por não ter dinheiro para pagar e jamais teria incentivo do meu pai, da minha mãe tenho certeza que sim.”, conta.
Entre turbulências familiares e descobertas pessoais, Maciel foi achando aos poucos na dança o seu lugar. Em 2010 estava estudando pelo Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem), quando descobriu o curso de Licenciatura em Dança na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), ali, decidiu o que iria fazer pelo resto da vida, mas devido as circunstancias familiares caóticas que se passavam, ele acabou indo na contramão desse caminho e se mudou para São Paulo, onde permaneceu até 2015, quando finalmente retornou à Alagoas. Os seis anos que separaram Maciel de sua paixão não foram o bastante para fazê-lo desistir, em 2016 ele começou o curso de Licenciatura em Dança.
Para o professor, a dança no estado não é recente, recente é a atenção que damos para ela, sabendo que a partir da arte pode-se discutir questões importantes como racismo, homofobia, xenofobia, sexismo e tantos outros problemas sociais. “A expressão da dança percorre vários espaços e camadas sociais e políticas, além da camada artística. Atualmente, tem significado uma expressão de resistência política porque percebo a ausência de pretos, pretas e pretes no cenário da dança alagoana atuando e produzindo, principalmente. Isso tem a ver com um processo no nosso estado, a dança em Alagoas se inicia com os folguedos e sei disso porque durante a graduação fui monitor do Museu Théo Brandão, se não fosse esse contato direto, não teria tanta força de afirmação e identificação.”, afirma Maciel.
DANÇA É TAMBÉM RESILIÊNCIA
De frente para uma comprida parede de espelhos, o corpo esguio conduz os passos leves pelo piso de madeira, João rodopia rapidamente sobre as pontas dos pés, com os braços elegantemente arqueados que harmonizam os movimentos da coreografia.
- 2021. Aos 15 anos de idade, a disciplina e o talento levaram João Paulo Timóteo, que mora na comunidade Aldeia do Índio, no bairro do Jacintinho, em Maceió, pela segunda vez à seleção da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil, uma das melhores companhias de balé do mundo. Ele não passou no primeiro teste. Mas, resignado, o aluno do Ballet Selma Pimentel não desistiu, contando com o apoio da professora, a própria Selma, tentou mais uma vez. Aprovado novamente em maio deste ano, a professora se mobilizou através do Instagram para realizar uma vaquinha online de doações para que o bailarino pudesse viajar e realizar o teste que poderia mudar o curso de sua vida.
A campanha relâmpago de doações mobilizou muitas pessoas e João conseguiu realizar a audição na Bolshoi, mas novamente não foi selecionado. Nas redes sociais, a professora parabenizou o foco e a determinação do aluno que, de acordo com ela, já é um vencedor, ainda que não seja fácil chegar ao destino final. A mensagem ecoou diversos comentários positivos e levou as pessoas a marcarem famosos e associações na postagem para ajudá-lo a realizar esse sonho.
“A arte sempre chamou minha atenção, mas a dança tinha algo de especial; aos 12 anos esse desejo de dançar surgiu. Conheci o Ballet Selma Pimentel através de um ex-aluno nas redes sociais, entrei em contato, mas não consegui respostas, então, fui sozinho de bicicleta até o local. Tímido, subindo as escadas, algo me dizia que eu estava fazendo a coisa certa. Perguntei o valor da mensalidade, minha mestra falou que não precisava pagar nada, só me comprometer e não faltar as aulas.”, conta João Pedro.
O jovem artista define, sem arrodeio, a dança como oxigênio, como um escape que Deus o deu, um refúgio nas horas tristes e felizes. “Quando você tem um sonho, aquilo é quem você é, e rapidamente você se moverá até ele ainda que de forma lenta. A vida nos ensina que a essência da coisa está em continuar. ”, reflete.
Quando perguntado sobre sonhos e metas, ele admite que quer fazer parte das grandes companhias de dança, afirma: “Não tenho opções! O que tiver de ser, vai ser.” Ele considera o assunto “homens na dança” delicado, algo que só com o decorrer do tempo aprende-se a lidar com isso. João conta que na escola onde estuda e até mesmo onde mora já ouviu diversas piadas de mau gosto, mas que tenta não dar valor.
“Não só existe o preconceito como também a cobrança pessoal. Todos os dias estamos sempre procurando fazer de forma mais limpa possível os movimentos, tudo com excelência e perfeição, é frustrante, dá dor de cabeça, machuca e até mesmo dá vontade de parar, mas o amor pela arte fala mais alto e te alavanca ao encontro do voo novamente.”, conclui o bailarino.
UM VOO PARA DENTRO DE SI
Entre uma coisa e outra, acabou no curso de Psicologia na PUC/RJ, onde aprofundou os estudos sobre Performance Arte, debruçando-se em performance, ocupando galerias, ateliês, ruas, praças… em meio ao movimento agitado que a arte conduzia, recebeu uma ligação inesperada de Carla Shah – uma diretora de cinema chinesa radicada em Nova York – convidando para estrelar sua nova produção, o curta-metragem “ICARO”. O que uma vez fora uma ligação por telefone, rendeu a Allexandrea, em 2016, o prêmio de melhor “performance e dança” no Festival Experimental de Cinema em Toronto.
Allexandrea Constantino com mais de vinte anos de carreira artística quando pensa em um “modelo de sociedade”, vem à mente educação como um motor de produção, de expansão da experiência e mediação com o mundo, conosco e com o outrx. É preciso conhecer e cuidar de si, para cuidar da cidade, do coletivo.
“Facilmente podemos observar o nível de adoecimento (disfunções corporais, psíquicas), gerados na população alagoana, brasileira, pela introdução forçada de religiões, tradições, culturas que negam o corpo ou tentam diminuir sua potência, sua existência. Gostaria de observar que é só com o corpo e através do corpo que podemos mediar uma relação com esse planeta, plano. Sem o corpo, nossa experiência como conhecemos não seria possível, é preciso retornar ao corpo, a casa, ao templo sagrado no qual habitamos.”, explica Allexandrea.
Allexandrea saiu da periferia de Maceió em busca de novos conhecimentos, e nessa jornada abrindo novos caminhos, foi parar no Rio de Janeiro, onde ficou de 2007 a 2015, se dedicando aos cursos que se envolveu e dando aulas. Do balé à capoeira, sempre em busca de compreensão e expansão das possibilidades corporais, elx iniciou suas primeiras vivencias com a cultura e tradições afro e indígenas, visitou quilombos e aldeias, o que despertou ainda mais conexão com a sua ancestralidade e o próprio corpo.
Após a ligação que mudou o curso de 2016 para elx, Allexandrea retornou a Maceió e se lançou em outras produções, uma delas é o primeiro longa-metragem alagoano “CAVALO”, que já entrou como um marco na história do audiovisual em Alagoas. O filme que estrearia em março de 2020 esbarrou em algo que paralisou o mundo: a pandemia. A estreia de CAVALO foi adiada. Mas a mente agitada de Allexandrea colocou mais uma produção em seu extenso currículo, elx dirigiu e protagonizou o curta “NAMORADOR” (2021), que traz a vida e obra de Moleque Namorador, o histórico Rei do Passo; preto, pobre, jornaleiro e engraxate na Maceió dos anos 30/40. Nessa narrativa, Armando Veríssimo transcendeu a sua condição de anônimo através da dança, nas ruas e salões da burguesia da capital alagoana.
As histórias de todos os personagens desse texto mostram que talento e currículo não blindam contra preconceito. Quando perguntadx sobre o assunto, Allexandrea diz: “Em um estado como Alagoas, que mais mata jovens negros, negras, indígenas, afeminados; num país onde o preconceito faz parte da formação, infelizmente sim, já sofri e sofro até hoje. Num Brasil regido desde sua formação pelo patriarcado adoecido, por uma burguesia pobre, ser um homem afro e indígena sensível a arte é um desafio, mas também um presente. Por isso se faz urgente movimentos que tragam novas formas, possibilidades, perspectivas, outros modos de ser e viver.”.