As Juremas: uma pluralidade de simbologias que pode se tornar Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil

Nesta reportagem, a Revista Alagoana buscou entender sobre a  variedade de sentidos da Jurema dentro do contexto social e cultural alagoano, que vai desde a religiosidade até uma Área de Proteção Ambiental 

 

Por Maryana Carvalho sob supervisão de Lícia Souto e Bertrand Morais

A Jurema possui uma pluralidade de sentidos. Pode ser uma árvore, uma bebida ritualística, uma prática mágico-religiosa tradicional do Nordeste ou, até mesmo, lugares míticos acessados em estados de transe, por meio de cânticos e hinos de seus adeptos. 

Ela tem ganhado espaço na religião, na ciência e agora pode ser Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil, após lideranças de religiões de matriz afro-indígena da Paraíba entregarem ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o pedido de registro. É um marco histórico para o país, que começa a reconhecer e valorizar saberes, práticas e celebrações que, por muito tempo, foram perseguidos, apagados e desvalorizados socialmente.

Jurema, a religião de matriz afro-ameríndia 

Ritual Jurema no Centro Espírita Caboclo Uburací

Seu nome é Jurema, Yu-rema na língua Tupi-Guarani. Fora da etimologia, é uma árvore que encanta. Tem origem afro-ameríndia e surgiu no Nordeste brasileiro, mas também traz elementos da cultura europeia e africana. Antes mesmo da colonização, o ritual era praticado pelos indígenas que viviam nessa terra. Hoje, são chamados de Encantados e moram na Cidade Encantada, lugar mítico acessado pelo imaginário dos discípulos vivos através da cerimônia da Jurema. Para entender melhor essa vivência e cultura, conversamos com Leneker Oliveira, juremeiro e dono do Centro Espírita Caboclo Ubirací.

Antes de falar sobre o culto, o juremeiro abriu espaço para contar sua própria história. Sua caminhada está ligada a um legado familiar, marcado pela espiritualidade presente tanto no Candomblé quanto na Jurema. Dentro dessa tradição, a avó teve papel central, sendo a referência que o guiou desde cedo. Ele lembra que seu destino foi traçado antes mesmo de nascer: ainda no ventre da mãe, já havia sido entregue às forças que o acompanhariam pela vida.

“Um orixá, chamado Oxum, no candomblé, disse que eu viria ao mundo para viver tudo o que estou vivendo hoje e que não me deixasse perder, pois ela tomaria conta de mim. Daí nasci, aconteceu aquele processo todo, e fui morar com a minha avó”, explica.

Quando ainda era menino, Leneker observava sua avó liderar as mesas de Jurema em casa. Foi nesse período que ele começou a sentir a aproximação da incorporação, um processo que, como ele explica, é diferente do transe. Em sua crença, apenas os Orixás entram em transe, pois a força de um deus não poderia ser suportada por um corpo vivo.

“Tomei bastante banho de erva para despertar esse caminho. Os senhores mestres baixavam e falavam que eu ia ser juremeiro. Que nasci para isso e tinha que seguir. Quando completei 17 anos e uns meses, seu Zé Pilintra apareceu na minha vida”, conta Leneker. 

Seu Zé Pilintra é um mestre, conhecido por muitos por sua natureza “malandra”. É popular no Rio de Janeiro, mas tem origem aqui no Nordeste, em Pernambuco. Os mestres são entidades que, em vida, tiveram contato com os povos indígenas e se tornaram raizeiros e curandeiros. Após a morte, foram enterrados aos pés da árvore sagrada, seguiram para a Cidade Encantada e retornaram como mestres. Já os caboclos são diferentes: representam os próprios indígenas ligados à pajelança. Para o juremeiro, a Jurema não existiria sem eles, pois carregam o saber ancestral e dominam a força das ervas e da medicina.

“Ele incorporou, baixou em mim e pediu que o levasse para a casa da minha avó. Quando chegamos lá, ela contou que ele disse assim: ‘Nega, está lembrada de mim?’ Ela respondeu: ‘Mais ou menos… quem é o senhor?’ Então ele falou: ‘Sou uma promessa feita lá atrás, pelo seu pai – no caso, meu bisavô – que trabalhava comigo. Voltei agora para seguir com esse menino. Ele vai ser meu e será juremeiro”.

Quando sua avó faleceu, ele se sentiu desamparado, sem saber como continuar. Foi nesse momento que seu caboclo, Ubirací, incorporou em seu corpo. Ele é o mesmo guia que hoje dá nome à sua casa espírita. Essa experiência marcou o início de sua caminhada na Jurema. A partir daí, Leneker procurou uma casa, começou seu desenvolvimento, cumpriu as obrigações, foi batizado e, por fim, recebeu o Tombo da Jurema. Esse ritual marca a entrada do juremeiro na Cidade para buscar conhecimento, em uma experiência que se assemelha a uma pós-morte.

As cidades são encantadas, uma conexão entre os discípulos desse mundo com os encantados. Dentro delas existem 12 reinados. Para cada uma, existe um reino. “Você adentra essa cidade e passa pelos chaveiros, os guardiões das entradas, até chegar diante do rei, para então desvendar o segredo que ali existe”, explica. 

Ritual

Ouço a gaita tocar,
a gaita dos senhores mestres,
que o pajé mandou buscar.

Trabalhar, meu mestre, prestar serviço,
foi palavra que Deus disse:
“Aquele que com ferro fere,
com ferro será ferido”.

Defumação durante o ritual Jurema

É através do cachimbo – ou gaita – preparado com ervas, que o adepto da Jurema fuma e defuma – fumaça contrária. Esse processo abre os caminhos para a cidade sagrada e conecta o praticante ao mestre ou caboclo. Com o chacoalho do maracá, as entidades são invocadas para trabalhar. Já o vinho da Jurema é usado de forma ritualística, seguindo um momento específico para sua ingestão. De acordo com Leneker, ele é preparado junto com os mestres, que trazem a ciência e a sabedoria necessárias para seu uso na cerimônia.

“Teve gente aqui que seu Zé Pilintra curou de câncer, com o vinho da Jurema e a entrecasca de um pé de pau que quase ninguém valoriza: a casca do jatobá. Tenho uma afilhada que teve câncer de estômago e chegou aqui praticamente no fim da vida. Então, com o trabalho da Jurema, primeiramente Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, concedeu a cura. E, abaixo dele, seu Zé Pilintra, que baixou e disse: ‘Minha filha, não tenha medo, eu vou te curar”.

Jurema em Alagoas – Quebra de Xangô 

Embora a Jurema tenha hoje uma manifestação de apoio para se tornar Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil e já é na Paraíba e Rio Grande do Norte, antes disso, a tradição sofreu apagamento e preconceito por muito tempo. A prática foi perseguida durante a colonização. “Padres tentaram impor o cristianismo, proibindo práticas indígenas consideradas ‘pagãs’. Aqueles que resistiam eram mortos, e até hoje nossa tradição sofre preconceito e interpretações equivocadas”, acrescenta Leneker.

A quebra de Xangô foi um dos maiores genocídios a pais e mães de santo em Maceió, capital de Alagoas. Consistiu na destruição de terreiros e na perseguição violenta a adeptos e líderes de religiões de matriz africana. Um dos principais responsáveis pelos ataques dá nome a uma avenida da cidade: Fernandes Lima, que, na época, estava ligado à Liga dos Republicanos Combatentes, agremiação política que se opunha ao governador Euclides Malta. Mais de 150 terreiros foram invadidos; praticantes de Candomblé, Umbanda e outros cultos foram espancados, presos e mortos.

Entre as vítimas estava a Yalorixá Tia Marcelina, descendente do Quilombo dos Palmares, que, junto a outros negros, fundou os primeiros Xangôs do Brasil em Maceió. Os discípulos da Jurema faziam as reuniões de mesa na mata e durante o dia, porque se fosse à noite, a polícia poderia ver os feixes de luz e os acusariam de feitiçaria ou bruxaria.

“É triste ver que, mesmo sem ter nenhuma ameaça à espiritualidade, a polícia chegava e destruía tudo. Você era humilhado, tinha seus santos e sua devoção arrancados e expostos na rua. E ainda obrigavam a pessoa a dizer: ‘Eu sou um macumbeiro’, enquanto era violentada”, relata Leneker.

Isso afetou a forma como as pessoas enxergam as religiões de matriz africana. E os preconceitos do passado persistem até hoje. O medo permanece nelas, fazendo com que sintam que estão fazendo algo errado ao cultuar aquilo em que acreditam. “Mas a Jurema já havia sido defasada. Hoje, porém, começa a retornar a Maceió com força. Até pouco tempo atrás, na época em que minha avó ainda vivia, se perguntava a ela: ‘Qual é a sua religião?’ Ela respondia: ‘Sou católica.’Isso mostra que ninguém revelava sua religião de fato, por medo, devido à perseguição que sofreram no passado. Nas escolas, fala-se muito sobre a Igreja Católica e a Igreja Evangélica, mas pouco ou nada se ensina sobre Candomblé, Umbanda e, principalmente, Jurema”. 

A natureza da Jurema 

Para os adeptos das religiões de matriz afro-ameríndia, contemplar a natureza  também é contemplar a árvore que brota no semiárido brasileiro: a Caatinga. Seu nome científico é Mimosa tenuiflora, mas o povo a chama de jurema-preta. Espinhosa, de casca escura e flores brancas em forma de espiga.

Edite Siqueira, bióloga e Mestra em Ciências da Saúde

Edite Siqueira, bióloga e Mestra em Ciências da Saúde, lembra que a palavra “jurema” pode se referir a várias espécies.

“Quando alguém fala em jurema, pode estar se referindo a árvores diferentes. O nome popular muda de região para região. Por isso, o nome científico é o que traz precisão. Entre as mais confundidas estão a jurema-sagrada (Mimosa tenuiflora), a jurema-branca (Piptadenia stipulacea) e a jurema-rosa (Mimosa verrucosa). Elas pertencem à mesma família botânica e compartilham características como porte, forma arbustiva e folhas bastante semelhantes”, explica.

No ambiente seco e quente da Caatinga, onde a chuva é rara e a estiagem prolongada, a Jurema aprendeu a resistir. Reduz as folhas para economizar água e, quando está sob estresse, produz compostos que funcionam como um “casaco químico”, protegendo-a das adversidades. Essa mesma química é o que a torna importante para usos medicinais: a casca concentra substâncias com efeitos cicatrizantes e anti-inflamatórios.

“No uso tradicional e na pesquisa científica, a casca da jurema-sagrada se destaca por ser rica em taninos e outros fenólicos, com efeitos cicatrizantes, anti-inflamatórios e antimicrobianos. Esses efeitos já foram observados em estudos in vitro, em modelos animais e também em pequenos ensaios clínicos com formulações tópicas para lesões de pele e queimaduras”, acrescenta Edite.

Assim, o que é sagrado para o povo da Jurema também desperta a curiosidade da ciência. O saber ancestral, guardado em rituais, atravessa agora as portas dos laboratórios. Pesquisadores buscam entender de que forma a árvore pode contribuir para tratamentos de saúde, especialmente a ansiedade e depressão.

Também especialista em Neurofisiologia, Edite destaca uma substância presente na casca da árvore: a N,N-dimetiltriptamina, mais conhecida como DMT. “Essa molécula já mostrou resultados promissores em pesquisas com depressão resistente a medicamentos”, explica.

Ela lembra que os estudos mais avançados hoje são com a ayahuasca (Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis) – uma bebida ritual amazônica que também contém DMT, em combinação com outras substâncias que permitem sua ação no corpo. Nessas pesquisas, a ayahuasca demonstrou efeitos rápidos no alívio de sintomas de depressão e ansiedade, o que ajuda a compreender o potencial da jurema-preta.

Mas, apesar das descobertas, Edite faz uma ressalva: “Ainda faltam estudos robustos e específicos com preparações padronizadas da jurema-sagrada que comprovem eficácia e segurança.”

Na ciência, a cannabis é utilizada para tratamento de doenças. Porém, por ser uma substância da maconha e estar associada a comportamentos considerados estranhos ou à loucura, ainda enfrenta estigmatização. Nesse sentido, a Jurema também entra nessa questão, mas com o acréscimo do contexto religioso e cultural e por ser utilizada em cultos, no catimbó e em práticas indígenas.

É importante ressaltar que, de acordo com a Resolução CONAD nº 1 de 2010, o Brasil reconhece o uso religioso da ayahuasca, que contém DMT. Nesse contexto, é vedada a comercialização e o uso terapêutico fora do ritualístico. Mas e a Jurema? Embora não seja proibida, por conter DMT, seu uso é controlado; por isso, não há norma federal que incrimine o uso do “vinho da Jurema”.

Edite ressalta: “Diferentemente da Cannabis (cujo cultivo e comércio são, em regra, proibidos sem autorização), as plantas usadas na ayahuasca (Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis) e a jurema-sagrada não são criminalizadas, e seu uso religioso é reconhecido. Quando ciência e ancestralidade caminham juntas, reduzem-se os preconceitos e aumenta a qualidade das evidências e das políticas públicas”.

A APA da Jurema e o sonho de Fátima de ter uma mata 

Dona Fátima, idealizadora e gestora do projeto Ecobrisa

Fátima tinha um sonho quando criança: “ter uma mata”. Nasceu em uma cidade com o nome de uma árvore: Arapiraca. Cresceu na casa dos avós, que tinham um sítio, e lá se encantou pelo verde das árvores e pela terra marrom. Maria Florzinha – personagem das histórias que seus avós contavam, que dizia que se você fosse uma pessoa boa, ela mostraria o caminho – a conduzia pelas matas.

“Fui crescendo e meu sonho de infância era possuir uma mata como a dos meus avós. Nunca tive a oportunidade de adquirir, por conta própria, um espaço onde pudesse construir ou preservar uma mata”, explica Fátima

Em 2012, ao chegar no residencial Brisa do Lago, se deparou com a falta de arborização em sua moradia. Foi então que decidiu agir para proteger aquilo que mais amava e via sendo destruído; começou a recolher lixo, podar árvores e plantar novas espécies. E a partir daí, suas ações só cresceram. “fui contemplada com o projeto Minha Casa Minha Vida e, no local, já existia um resquício de mata de caatinga, com o rio Perucaba e várias nascentes. Logo percebi a riqueza e a oportunidade de cuidar e recuperar toda a área, que havia sido bastante degradada em função da construção do residencial Brisa do Lago”, conta.

Em 2016, criou o primeiro Acampamento Raízes Culturais, com o objetivo de fazer com que as pessoas valorizassem o meio ambiente, preservando o local onde vivem e também a mata ainda existente no município de Arapiraca.

Hoje, o acampamento chega à sua 10ª edição, com um novo nome, Ecobrisa. Mas, afinal, por que estamos falando sobre Dona Fátima? Porque ela conseguiu não apenas realizar seu sonho, mas gerar impacto na realidade local. No ano passado, Arapiraca ganhou sua primeira Área de Proteção Ambiental, chamada “Jurema”. A APA abrange cerca de 245 hectares e é lá que hoje funciona a Ecobrisa, desenvolvendo ações sociais, culturais, turísticas e ambientais.

“O nome faz referência a tudo o que a árvore representa dentro do bioma Caatinga e à sua abrangência: pela resistência, por ser considerada sagrada nas religiões de matriz africana e medicinal para os povos tradicionais. A partir disso, buscamos valorizar seu potencial”, explica Dona Fátima. 

Juremas 

São tantas Juremas. A religiosa, que carrega tantos significados dentro do próprio contexto: vai das bebidas sagradas às Acácias sob as quais Jesus repousou e se protegeu. A árvore utilizada na medicina, que, assim como na religião, cura. Mas a Jurema também é a APA, onde habitam várias árvores que  sobrevivem e se adaptam ao tempo cada vez mais afetado pelas mudanças climáticas. 

“Eu acho de grande importância, porque já sofremos muito: já fomos discriminados, violentados, já perdemos muita gente que desistiu por causa da humilhação e de tantas outras coisas. Por isso, o reconhecimento da Jurema não só em Maceió, mas em todo o país, seria fundamental. Precisamos ter nosso espaço, mostrar que temos raiz, força, nossos dogmas e nossa tradição. Essa é a força do povo nordestino – e é isso que precisa ser valorizado”, conclui Leneker.

A Jurema não é única, se multiplicam aqui e se estendem até o outro mundo, onde cânticos são ouvidos e entoados para cultuar a ancestralidade, a natureza e a espiritualidade que cada Jurema carrega. Seu reconhecimento como Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil é de suma importância para desmistificar preconceitos e valorizar a sabedoria daqueles que vieram antes de nós. Antes de tudo, a ciência se origina nos saberes antigos – na medicina, na cura e no conhecimento transmitido de geração em geração.

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