Projeto de mestrado resgata histórias de pessoas afroindígenas LGBTQIAP+ apagadas dos registros familiares

“Escrevivência” é um conceito criado pela escritora Conceição Evaristo para nomear uma escrita atravessada pela experiência de vida. O termo está ligado a um fenômeno diaspórico e à forma como vivências étnicas e de gênero influenciam a produção narrativa de sujeitos historicamente marginalizados.
A partir dessa perspectiva, o alagoano, Messias Souza, desenvolveu o conceito de bixancestralidade, que investiga a memória de pessoas idosas LGBTQIAPN+ afroindígenas por meio da fotografia. A pesquisa teve início na análise dos apagamentos e silenciamentos que transformaram essas trajetórias em ausências nos álbuns de família. Com o avanço do estudo, o foco passou a ser o resgate dessas narrativas, em um movimento de enfrentamento ao conservadorismo e às estruturas da branquitude, reafirmando a identidade afroindígena como ponto de intersecção entre ancestralidades negras e originárias.
Nesse processo, a fotografia deixa de ser apenas registro e passa a atuar como ferramenta de reconstrução da memória. Tradicionalmente presentes no cotidiano familiar, os álbuns preservam imagens que ajudam a contar histórias para gerações que não viveram aqueles momentos. Souza articula esse recurso à oralidade para recompor essas trajetórias, partindo de sua terra natal, no Sítio Caldeirão, em Mata Grande (AL), e alcançando o contexto urbano de Ferraz de Vasconcelos (SP).

Utilizando a filosofia Sankofa, que propõe o retorno ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro, Souza investigou sua família. O estudo tem como base seu avô materno, Martinho Alves da Silva, dissidente de gênero, e sua bisavó, Regina Antônia da Conceição, uma mulher indígena. A pesquisa indica que o apagamento das fotos de Martinho ocorreu devido à sua etnia e à sua dissidência de gênero – termo que define identidades trans, travestis, não binárias e de pessoas que não seguem as normas de corpo e comportamento impostas pela sociedade.
O neologismo “bixancestral” surge como resposta à busca central da pesquisa: “onde estão as fotografias e narrativas de meu avô?”, pergunta feita por Messias Souza. A partir desse questionamento, ele buscou preencher as lacunas nos álbuns e resgatar as memórias familiares que permitiram reconstruir a identidade afroindígena e bixancestral de Martinho.
A intersecção entre narrativas orais de pessoas que conheceram Martinho e os registros fotográficos foi fundamental para a reconstrução de sua identidade. Os relatos convergem com os elementos presentes nas imagens, o que facilitou o processo de escrevivência do pesquisador.
Qual a relevância da pesquisa?
A pesquisa busca desenterrar histórias de pessoas que foram historicamente apagadas ou mantidas sob um véu de vergonha em razão do racismo, do conservadorismo e da discriminação de gênero. Para além do resgate familiar, o estudo também amplia o olhar para identidades dissidentes em territórios tradicionais. Souza demonstra como o apagamento começa na ausência dessas pessoas na fotografia e se estende à sociedade, em uma tentativa de torná-las inexistentes.
Ao nomear essa vivência como bixancestralidade, ressignificando o termo “bixa” e colocando-o ao lado de “ancestralidade”, o pesquisador defende que a existência LGBTQIAP+ vem do passado, das raízes brasileiras. Assim, restaura-se um direito historicamente negado: o direito à memória.
Conclusão

A pesquisa aponta uma lacuna: a escassez de estudos sobre pessoas indígenas LGBTQIAPN+ com mais de 50 anos. Essa ausência é um sinal de alerta, pois uma gerontologia desassociada dos recortes de raça, território e sexualidade opera sob uma lente embaçada, incapaz de captar a realidade desses sujeitos na estrutura social. Nesse contexto, a interseccionalidade surge como uma ferramenta necessária para enxergar o idoso não como um dado biológico isolado, mas como o resultado de uma trajetória moldada por múltiplos sistemas de opressão e resistência.
A ciência que desconsidera raça e sexualidade no envelhecimento contribui para o apagamento desses cidadãos. O estudo de Messias Souza estabelece que a gerontologia deve ser uma prática baseada em direitos humanos. Enxergar as pessoas idosas de forma integral é validar Martinho e Regina como figuras que mantêm viva a memória e a resistência de suas comunidades.
A partir disso, o ato de escreviver, proposto por Conceição Evaristo, reúne a arte e a vida real e preenche os “vazios” deixados pela ciência tradicional. Para Messias, narrar a história do avô foi uma forma de vencer a morte e o esquecimento.
Bixancestralidade rompe com narrativas hegemônicas que relegaram pessoas LGBTQIAPN+ afroindígenas ao esquecimento. A ancestralidade, que tradicionalmente centraliza apenas pessoas heterossexuais, passa a acolher outros corpos e experiências, ressignificando suas identidades culturais.
SOBRE O AUTOR

Messias Souza é indígena Pipipã, mestre em Artes pela UNESP, graduado em Artes Visuais pela FMU, professor na Rede Estadual de Educação de Pernambuco e pesquisador. Em seu trabalho investiga temas como álbuns de família, memória e ancestralidade LGBTI+ afroindígena. Em 2023, foi contemplado com a Bolsa de Pesquisa do Instituto de Arte Contemporânea/SP e, entre 2020 e 2022, atuou no Mapeamento de Terreiro de Matriz Bantu na cidade de São Paulo pela UNIFESP e o ILABANTU.