Boi Anaconda: Uma história de resistência cultural da periferia à tela do cinema

Fundado por adolescentes, incluindo Durval Neto, em Maceió, o grupo mantém viva a tradição do bumba meu boi há mais de duas décadas na capital alagoana

 

Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais

O bumba meu boi é uma das expressões mais potentes da cultura popular nordestina, reunindo música, dança, teatro e ancestralidade em uma festa de cores e resistência. Em Alagoas, a manifestação pulsa especialmente no interior e na periferia das cidades, onde grupos mantêm viva a tradição com criatividade, esforço coletivo e amor pela cultura. Em meio aos desafios de fazer arte popular em um país que pouco valoriza seus fazedores, o boi resiste e dança.

Fundado em 2002 por um grupo de adolescentes da periferia de Maceió, o Boi Anaconda nasceu do desejo de ocupar as ruas com arte e pertencimento. A iniciativa liderada por Durval Neto, no auge da pré-adolescência, transformou um pano vermelho e preto, guardado para uma bandeira, em símbolo de identidade e transformação comunitária. Mais de duas décadas depois, o grupo segue ativo com a mesma essência, fortalecendo laços, formando gerações e inspirando produções cinematográficas brasileiras.

A Revista Alagoana conversou com Durval Neto, idealizador do Boi Anaconda, que relembra as origens do grupo, comenta os desafios de manter a brincadeira viva e fala sobre o filme Coração do Boi, inspirado em sua trajetória. Confira a entrevista:

R.A.: Queria começar perguntando: como nasceu o Boi Anaconda e o que motivou você a fundar o grupo?

Durval Neto: O Boi Anaconda surgiu em 2002, através de um grupo de crianças da rua. A gente sempre gostou muito da brincadeira de boi, mas, como a gente era criança, não podia fundar oficialmente um grupo, né? Tinha que ter uma pessoa maior de idade.

Aí um amigo nosso, que já era maior, entrou com a gente. Eu tinha um tecido guardado, que era pra fazer uma bandeira, pois sou torcedor do São Paulo, então tinha vermelho e preto. A gente aproveitou esse material e começou a montar nosso próprio boi. A cabeça a gente fazia com tronco de coqueiro ou com ponta de jangada, como se fazia antigamente.

A ideia foi surgindo e a gente teve vontade de fazer algo remetendo à serpente, outro grupo de boi aqui da região. Então demos o nome de Anaconda. Foi daí que nasceu o Boi Anaconda.

R.A.: O Boi Anaconda possui alguma característica que o diferencia dos outros bois em Alagoas?

Durval Neto: Sim. Eu acho que o diferencial é que a gente é formado por uma mesma equipe desde o início. Como éramos menores de idade, não podíamos entrar em concurso nem participar oficialmente de festivais. Então colocamos no nome de um amigo nosso, que era maior.

O Boi completou 23 anos agora, e durante muito tempo a gente só saía na rua, sem competir. Depois de uns 10 anos parados, decidimos voltar com a mesma equipe, os mesmos amigos, todo mundo da comunidade. E o apoio da nossa comunidade foi essencial.

Acho que o diferencial é esse: a resistência e a união. É um grupo que nasceu da amizade, da rua, e que continua junto até hoje.

R.A.: E qual a importância do Boi Anaconda para a preservação do bumba meu boi em Alagoas?

Durval Neto: Eu acho que é muito importante. Não só pra mim, mas principalmente pros jovens de hoje. Porque a gente sabe que fazer cultura no Brasil, e aqui em Alagoas também, não é fácil.

A gente tenta tirar os adolescentes das ruas, das drogas, e trazer pro grupo. Através do boi, eles aprendem percussão, cenografia, a fazer figurino, a se apresentar. O que antes era só uma brincadeira de rua, hoje virou uma formação. A gente forma músicos, artistas, pessoas que querem aprender e crescer.

R.A.: E como o grupo lida com o reconhecimento por parte do poder público e da mídia local?

Durval Neto: Hoje em dia a gente tem um pouco mais de apoio. Mas é tudo muito caro. Fazer boi hoje virou uma coisa muito profissional. A gente paga a pessoa que fica embaixo do boi, paga os músicos, paga quem trabalha na estrutura, na decoração. É um investimento grande.

Só pra colocar um boi razoável na arena, você gasta no mínimo uns 20, 30 mil reais. Então a gente corre atrás: faz rifa, evento, conta com ajuda de amigos. Temos o reconhecimento político de um vereador amigo que sempre nos ajudou, sou muito grato. Também temos apoio da Liga dos Bois, que é muito importante, porque hoje temos dois festivais, o estadual e o alagoano, e isso movimenta muito.

Os editais também estão ajudando. Quando abrem, a gente corre atrás. E isso é o que ainda mantém tudo de pé.

R.A.: Recentemente foi gravado o filme Coração de Boi, que convidou o Boi Anaconda para fazer participação especial. Como surgiu essa ideia? Você esteve envolvido? E como foi sua reação ao participar do projeto?

Durval Neto: Foi uma coisa muito boa. Fiquei muito feliz mesmo. Tantos grupos bons por aí, e o nosso foi escolhido… só gratidão.

Agradeço ao Erom e ao Zé Ricardo, que nos convidaram pra participar. Eu atuei, minha equipe também, nosso boi aparece no filme. Foi uma experiência linda. Acredito que vai dar mais visibilidade pro nosso trabalho e pra cultura popular daqui. Só gratidão mesmo por esse reconhecimento.

R.A.: E você acredita que o filme contribui para ampliar a visibilidade do bumba meu boi e da cultura popular alagoana?

Durval Neto: Com certeza. Vai dar visibilidade sim. Mostrar o que a gente faz, o que é a cultura daqui. Isso é muito importante, mostrar pro estado e pro Brasil o valor do bumba meu boi.

R.A.: O que você sonha para o futuro do Boi Anaconda? E qual legado você espera deixar para as próximas gerações?

Durval Neto: Meu sonho é que o Boi continue, sabe? Sei que um dia vou parar, né? Mas graças a Deus hoje tenho meu filho, Davi, que tem 12 anos. Já está comigo, participa das apresentações, está começando a entender esse mundo.

Espero que ele goste tanto quanto eu e que, junto com os amigos dele, dê continuidade. Que o Boi Anaconda continue vivo por muitas gerações.

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