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Cícera Efigenia Dias: professora do Sertão de Alagoas utiliza a literatura de cordel como ferramenta pedagógica

Natural de Cacimbinhas/AL, ela também é dona da Cordelaria Flor do Sertão, onde incentiva outros cordelistas a publicarem seus livros.

Texto do jornalista-colaborador João Vitor Ferreira

 

“Perceba que o cordel 

É rica literatura 

                                   Em sua forma e modelo                                   

Pitoresca estrutura

Rimada, metrificada

E na capa uma figura

A arte de esculpir

Numa chapa de madeira 

Um desenho invertido

Parece até brincadeira

Cruzou todo oceano

Para a terra brasileira.”

A missão de educar crianças e adolescentes tornou-se mais leve e divertida para Cícera Efigenia Dias, uma professora e poetisa de 44 anos. Descobrindo na literatura de cordel uma poderosa ferramenta de ensino, ela passou a disseminar a cultura do Nordeste brasileiro dentro e fora da sala de aula. Natural de Cacimbinhas, município no Sertão de Alagoas, Efigenia se destaca pela diversidade que carrega consigo: mulher, sertaneja e homossexual. Em suas palavras, ela compartilha: “Venci muitas barreiras para chegar onde estou”.  

Efigenia utiliza a literatura de cordel como um instrumento pedagógico para despertar nos outros a mesma paixão que nutre por esse gênero literário. No ensino médio, ela chegou a escrever poemas para o jornal da escola. Em 2016, já como educadora, lançou com seus alunos do ensino fundamental um livro intitulado “Velho Chico”, trabalho que narra a riqueza econômica, social e cultural do Rio São Francisco. 

“Eu comecei a escrever cordel traduzindo conteúdos que deveria trabalhar em sala de aula para essa linguagem poética. Com isso, eu trazia a turma para perto de mim, e encontrei uma maneira mais prazerosa para eles aprenderem o conteúdo. Já incentivei meus alunos a cantarem no ritmo de forró, vaquejada, tuada; surpreendentemente, eles já exploraram o cordel em ritmos como funk e rap”, informa a professora. 

Segundo Efigenia, a literatura de cordel possui um texto com melodia e estrutura que encanta a todos. Dentro da sala de aula, se revela como uma literatura dinâmica, permitindo sua aplicação de maneira criativa. O método de ensino baseado nesse gênero facilita a aprendizagem e foi amplamente abraçado por seus alunos, resultando em um crescente interesse pela cultura popular, além de entusiastas apaixonados e cordelistas talentosos. 

“Eles abraçam a proposta, escrevem, se envolvem. A literatura de cordel é envolvente e com texto acessível à compreensão. Não tem como você não se apaixonar. Hoje, eu posso dizer que tenho alunos e ex-alunos cordelistas que já ganharam concursos de cordel nas escolas e nos locais por onde passam. Para mim, é um orgulho saber que essa sementinha que eu plantei e debulhei floresceu em algum lugar. São diante dessas conquistas que eu reflito sobre o quão valioso é ser professor, apesar de toda dificuldade”, afirma. 

Para tornar a literatura de cordel um instrumento de educação, resgate cultural e celebração da diversidade, no entanto, foi preciso transformar alguns obstáculos em degraus. A professora recorda que enfrentou alguns desafios significativos para concluir os estudos. Criada na zona rural, ela trabalhou na roça com a mãe, andava quilômetros a pé até chegar na escola e vendia doces para comprar o próprio material escolar e contribuir financeiramente com o sustento de casa. 

“Como eu venho de uma família pobre, a gente sempre enfrentou muita dificuldade e tinha que trabalhar duro. Um horário eu ia para a roça, o outro horário para a escola. Então a minha vida foi de lutas, mas também de superações. Depois de passar por tanta coisa, eu fui coroada com um concurso público para professora, tenho vários livros publicados, então só posso agradecer, porque hoje eu olho para trás e vejo que todo esforço valeu a pena”. 

Atualmente, Efigenia é membro efetivo da Academia Alagoana de Literatura de Cordel (AALC). Ao longo de sua carreira, ela já produziu 16 livros em cordel, destacando-se obras como “Velho Chico”, “Bom Conselho Forte e Bela” e “À Sombra do Limoeiro”. É também a cordelista responsável pela Cordelaria Flor do Sertão, onde faz trabalhos de diagramação, revisão e impressão. 

 

Herança ancestral 

A primeira cantiga de ninar que Efigenia recorda é “A chegada de Lampião no inferno”, obra clássica escrita por José Pacheco. Para ela, manter viva a cultura popular de seus ancestrais é o que traz significado à sua jornada. Com brilho nos olhos, a professora compartilha memórias da infância, época em que se reunia com a família ao redor da mesa de jantar. Sob a luz do candeeiro, seu avô, Simão Alves Dias, encantava a todos com a declamação envolvente dos versos de córdeis que colecionava.

“Meu avô, embora nunca tenha escrito, sempre foi um entusiasta da literatura de cordel. Ele adquiria e colecionava inúmeros exemplares, dos quais alguns se tornaram meu tesouro mais precioso. Esses cordéis amarelados pelo tempo representam a maior herança que meu avô me deixou, guardados com extremo carinho”, destaca com afeto. 

Inspirada por essa tradição familiar, Efigenia se apaixonou pelo gênero literário ainda menina, iniciando logo depois suas próprias recitações para a família. Esse costume era o jornal e a novela do povo sertanejo. Mas afinal, o que é literatura de cordel? 

De acordo com o livro “Cartilha do Cordel Nordestino”, coescrito por Efigenia em parceria com o poeta Diógenes Pereira, o termo teve suas raízes no continente europeu durante o século XVI. Com a chegada da colonização portuguesa, tornou-se bastante popular no Nordeste do Brasil. 

De linguagem simples, os córdeis são compostos por seis a 10 versos rimados e ritmados. As obras abordam uma gama ampla de temas, incluindo o foclore brasileiro, a religiosidade e o contexto social. Os livros eram impressos em folhas volantes, e expostas ao público em barbantes nas feiras livres. A tradição ainda é mantida, mas apresenta algumas variações, com ilustrações coloridas e formatos de diversos tamanhos. 

Cultivando suas raízes tanto na vida cotidiana quanto na sala de aula, ela completa: “As memórias que eu tenho do meu avô são as melhores possíveis, porque ele não foi só um avô, foi um pai, um amigo, e uma fonte de inspiração”, afirma. 

As realizações de Efigenia, entretanto, não teriam florescido sem o estímulo de sua mãe, Josefa Alves Dias. Mesmo em meio às adversidades, encontrou no apoio materno a força necessária para trilhar o caminho da educação e da literatura. Como a maior admiradora, Josefa não apenas aplaude, mas também acompanha a filha nos recitais e eventos literários. “Ela é minha maior fã, sempre torcendo por mim”, ressalta Efigenia, revelando o alicerce emocional que motiva seu trabalho. 

 

Visibilidade feminina e diversidade

Ao longo da história, diversas formas de expressão perpetuaram representações femininas sob a ótica masculina, sendo impregnadas por uma cultura misógina e machista. Na literatura de cordel, por exemplo, muitos textos favoreciam a figura do homem, seja como autor ou como protagonista das narrativas impressas nos folhetos.

Segundo pesquisadores, a paraibana Maria das Neves Baptista Pimentel foi reconhecida como a primeira mulher a publicar um cordel entre os anos de 1935 e 1938. No entanto, para viabilizar essa publicação, Maria das Neves teve que assinar sob o pseudônimo do marido, o comerciante alagoano Altino Pimentel.

Como mulher, sertaneja e homossexual, Efigenia figura um verdadeiro “balaio de diversidade”, representando uma “quebra de barreiras” dentro do movimento. Apesar de persistir como um ambiente predominantemente masculino, ela observa com otimismo o crescente número de mulheres conquistando espaço na literatura de cordel.

“Considero-me extremamente abençoada. Mesmo em uma sociedade marcada pelo preconceito, sempre recebi respeito em todos os lugares que frequentei. Na sala de aula, tenho orgulho de afirmar que sempre fui tratada com grande consideração, assim como no universo do cordel. A acolhida calorosa que recebi nunca foi afetada pelo fato de ser mulher e homossexual; sempre fui recebida com carinho e respeito, em um ambiente de igualdade”, enfatiza. 

Sua união com Vitângela Tavares, em setembro de 2020, marcou o primeiro casamento homoafetivo registrado no cartório de Cacimbinhas. Ao lado da esposa, Efigenia encontrou a parceria ideal tanto no amor quanto na profissão. Antes do casamento, Vitângela não tinha grande familiaridade com a literatura de cordel; atualmente, ela desempenha um papel crucial na Cordelaria Flor do Sertão, empresa fundada em 2021. 

“Eu agradeço a Deus todos os dias pela mulher maravilhosa que Ele colocou em minha vida. Ela é a parceira que está sempre ao meu lado, me incentivando e colaborando diretamente para o sucesso da cordelaria. Trabalhamos em conjunto revisando a ortografia, montando livros, imprimindo. Minha esposa é verdadeiramente meu braço forte na profissão e na vida”.

 

Cordelaria Flor do Sertão 

Com o propósito de inspirar não apenas mulheres, mas todos que desejam ver suas histórias eternizadas em versos, Efigenia fundou em 2021 a Cordelaria Flor do Sertão, com o apoio de Vitângela Tavares, sua esposa, e do renomado cordelista Diógenes Pereira, então presidente da AALC. Nesse espaço dedicado à expressão artística, Efigenia publica suas próprias obras e as criações de outros cordelistas, engajando-se na impressão, diagramação e revisão meticulosa das métricas e rimas.

“Sinto-me honrada em ser dona da Cordelaria Flor do Sertão, prestando serviços a tantos homens e sendo respeitada por eles, de igual para igual. Nós oferecemos esse estímulo a outras pessoas, a todo o público fazedor de cultura, aqueles que pretendem colocar no papel suas ideias e trabalhos”. 

Natural de Santana do Ipanema, Diógenes também é psicólogo, e acredita que o cordel representa autenticidade e nordestinidade. Ao lado de Efigenia, o profissional compartilha a visão da literatura de cordel como uma ferramenta poderosa para a educação e preservação da cultura sertaneja. Ele utiliza os versos rimados para abordar temas de saúde mental, combinando sensibilidade e leveza para tratar do assunto.  

“O cordel encanta os espectadores e leitores, servindo para introduzir com leveza alguns assuntos que são rejeitados pelo senso comum. Assim, ele se apresenta como uma ferramenta de acesso eficaz para conquistar as pessoas”, informa o psicólogo e poeta. 

Segundo Diógenes, que carrega em seu repertório influências do repente e da toada, a cordelaria tornou-se uma multiplicadora de cultura no Sertão de Alagoas. “Ela representa uma terra fértil onde muitos cordelistas e livros nasceram e estão crescendo. São instituições como a Cordelaria Flor do Sertão que mantêm o cordel vivo. Ela é uma porta de acesso para muitos que querem publicar e ao mesmo tempo serve como referência para quem quer aprender a modalidade poética”, afirma. 

Com 51 anos, Charles César começou sua jornada como escritor aos 14, influenciado por seu avô. Ele ressalta a relevância da cordelaria para a preservação da cultura popular. “Um trabalho gigantesco em nome desta cultura tão importante não apenas no nosso estado, mas também no Brasil e até mesmo internacionalmente. O cordel tem conquistado vastos territórios através das redes sociais, ganhando espaços significativos”.  

Cientes da riqueza que essa expressão artística proporciona à cultura popular, os cordelistas continuam entusiasmados em divulgar seus valores e tradições. Para quem deseja explorar mais do universo do cordel e acompanhar o trabalho da Cordelaria Flor do Sertão, basta seguir os perfis Debulhando Cordel no YouTube e @efigenia_diaas no Instagram.

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