Do cabo da enxada às telas: o olhar de Adilson Laranjeira sobre o sertão

Autodidata, artista convive com a disfemia e retrata as raízes do sertão nordestino em telas e murais

 

Por João Vitor Ferreira 

Adilson Laranjeira, de 43 anos, mora em Carneiros, AL

Adilson Laranjeira vive na zona rural de Carneiros, município do Sertão alagoano. Sua casa, rodeada por cactos e arbustos que moldam o semiárido, também guarda o barulho da madeira sendo cortada. Ao lado da residência, na pequena marcenaria que construiu, ele transforma troncos em móveis e objetos. Mas é nos fundos da oficina, entre telas prontas e outras ainda úmidas, que Adilson cultiva o talento e a sensibilidade herdados de berço. 

No modesto ateliê, um lugar quase sagrado, tudo carrega a delicadeza do seu trabalho manual. As molduras e cavaletes, produzidos na própria marcenaria, sustentam pinturas que retratam a simplicidade do homem do campo — paisagens rurais, carroças de burro e carros de boi, um varal de roupas ao sol, uma casinha no meio do mato ou uma mulher alimentando galinhas no quintal. 

Vive com a esposa, Elielsa, e as duas filhas. É artista plástico e visual, marceneiro, artesão, designer e pintor residencial. Concluiu o ensino médio, mas nunca frequentou uma universidade, nem mesmo realizou um curso técnico. Autodidata, ele ergueu a própria escola no silêncio, movido por uma sede inesgotável de saber. 

Quando criança, o artista gostava de desenhar pessoas e animais. De tanto rabiscar a carteira da escola, acabava levando bronca dos professores. Começou a monetizar a própria arte em 2002, aos 20 anos. Até então, nunca havia tido contato direto com tela e pincéis — apenas com papel e caneta. A iniciativa o levou a trocar o trabalho braçal da roça pela invenção criativa. “O único trabalho que eu tinha era segurar no cabo da enxada, recorda Adilson.

 

Entre o trabalho árduo e o sonho: uma infância de superação 

Aquele garoto tímido, que rabiscava a carteira da escola, mas tinha dificuldade de se expressar oralmente, nem imaginava que um dia receberia encomendas e convites para exposições. Aos poucos, seu sonho deixou de ser silêncio e começou a ganhar cor, forma e destaque — como nas artes que cria. 

Quem um dia lavrou a terra com a enxada hoje pinta um sertão vivo, presente no imaginário popular. O ritmo é quase o mesmo: o corpo inclinado, a persistência e a fé de que semeará bons frutos. Mas nem sempre foi assim. Apesar do incentivo da mãe e dos irmãos, o pai, a princípio, não aprovou a troca do trabalho braçal pelo gesto artístico.

A realidade de quem vem de uma família humilde, criada na zona rural de uma cidadezinha, é bastante diferente. Eu não tive infância. Precisava trabalhar na roça com o meu pai para ajudá-lo. Sempre que tinha um pequeno intervalo, pegava lápis e papel e fazia uns rabiscos, mas ele dizia que aquilo não me traria futuro algum e me mandava voltar ao batente”, afirma. 

Mas Adilson, mesmo sem saber se tinha talento, decidiu seguir o sonho. Depois de pintar a primeira tela, buscou aprender técnicas em livros doados por amigos e recebeu conselhos do pintor sertanejo Silvio César. 

Adilson Laranjeira, que se descreve como um “homem humilde”, tem como fonte de inspiração o sertão, lugar onde vive desde que nasceu. É nas paisagens do clima semiárido que ele encontra elementos essenciais para sua arte, além de utilizar fotografias e vídeos para comunicar ideias e conceitos. Admira a obra de Tarsilla do Amaral (1886-1973), Candido Portinari (1903-1962) e artistas regionais. 

Com a família que construiu, a esposa Elielsa e as duas filhas, o artista se sente ainda mais acolhido. “Todas elas gostam do meu trabalho. As meninas já até pintaram suas primeiras telas. Sou feliz por conseguir me expressar sendo quem sou e da forma como enxergo a simplicidade do dia a dia”, disse. 

Disfemia e arte como cura

A alagoana Nise da Silveira (1905-1999) utilizava a arteterapia como poderosa ferramenta no tratamento de seus pacientes. Para Adilson, ser artista plástico e visual, designer, artesão e marceneiro — profissões que, segundo ele, se complementam — é mais do que um trabalho manual. Nas palavras dele: “A arte é a cura da alma”.

Ateliê do artista fica nos fundos da marcenaria que construiu ao lado de sua casa .

O artista convive desde a infância com a disfemia, também conhecida como gagueira — distúrbio que compromete a fluência da fala. Ao tentar se expressar oralmente, repete sons, sílabas e palavras, trava por segundos — e enfrenta a ansiedade que acompanha o esforço da fala. Durante anos, foi alvo de bullying na escola e na sociedade.

Mas quem tem algo a dizer ao mundo sempre encontra um caminho. Desde que se reconheceu como artista, a trajetória de Adilson tem sido florida. É no modesto ateliê, nos fundos de sua marcenaria, que ele possui liberdade para se expressar.

“Muitas vezes, a arte já cumpriu um papel terapêutico em minha vida. Seja pintando uma tela ou cortando um pedaço de madeira para fazer algum objeto, quando entro aqui [no ateliê] esqueço de todos os problemas. Esqueço de tudo, até do mundo lá fora.” 

Na época em que era alvo de preconceito por causa da disfemia, Adilson também usava os desenhos e pinturas como válvula de escape. “Ser uma pessoa com gagueira é só um detalhe”, reflete. 

 

Resgate da memória do lugar onde vive

Uma das muitas telas encontradas no ateliê do artista.

A representação do sertão nordestino na arte de Adilson Laranjeira, especialmente a partir de seu olhar sobre Carneiros, despertou o interesse de admiradores e gestores culturais. O artista foi convidado a resgatar a memória e a identidade da cidade entre as décadas de 1980 e 1990.  Inspirado em fotografias, traduziu em telas as transformações que o lugar atravessou. A iniciativa também contribui para a valorização do contexto histórico, social e cultural do município.

Em uma proposta inovadora, Adilson foi convidado a transformar os muros de uma escola do ensino fundamental em verdadeiras telas a céu aberto. Com pinturas inspiradas na Xilogravura, ele dissemina as raízes da arte popular nordestina, destacando elementos da vida sertaneja e aproximando a comunidade e os estudantes de sua própria identidade. 

Feliz pelo reconhecimento caloroso que vem recebendo no lugar onde vive, o menino que rabiscava a carteira e hoje pinta muros inteiros — faz apenas um pedido: Como todo artista, desejo que o meu trabalho alcance mais pessoas e se espalhe por outros territórios”, conclui.

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