Autodidata, artista convive com a disfemia e retrata as raízes do sertão nordestino em telas e murais
Por João Vitor Ferreira
Adilson Laranjeira vive na zona rural de Carneiros, município do Sertão alagoano. Sua casa, rodeada por cactos e arbustos que moldam o semiárido, também guarda o barulho da madeira sendo cortada. Ao lado da residência, na pequena marcenaria que construiu, ele transforma troncos em móveis e objetos. Mas é nos fundos da oficina, entre telas prontas e outras ainda úmidas, que Adilson cultiva o talento e a sensibilidade herdados de berço.
No modesto ateliê, um lugar quase sagrado, tudo carrega a delicadeza do seu trabalho manual. As molduras e cavaletes, produzidos na própria marcenaria, sustentam pinturas que retratam a simplicidade do homem do campo — paisagens rurais, carroças de burro e carros de boi, um varal de roupas ao sol, uma casinha no meio do mato ou uma mulher alimentando galinhas no quintal.
Vive com a esposa, Elielsa, e as duas filhas. É artista plástico e visual, marceneiro, artesão, designer e pintor residencial. Concluiu o ensino médio, mas nunca frequentou uma universidade, nem mesmo realizou um curso técnico. Autodidata, ele ergueu a própria escola no silêncio, movido por uma sede inesgotável de saber.
Quando criança, o artista gostava de desenhar pessoas e animais. De tanto rabiscar a carteira da escola, acabava levando bronca dos professores. Começou a monetizar a própria arte em 2002, aos 20 anos. Até então, nunca havia tido contato direto com tela e pincéis — apenas com papel e caneta. A iniciativa o levou a trocar o trabalho braçal da roça pela invenção criativa. “O único trabalho que eu tinha era segurar no cabo da enxada”, recorda Adilson.
Entre o trabalho árduo e o sonho: uma infância de superação
Aquele garoto tímido, que rabiscava a carteira da escola, mas tinha dificuldade de se expressar oralmente, nem imaginava que um dia receberia encomendas e convites para exposições. Aos poucos, seu sonho deixou de ser silêncio e começou a ganhar cor, forma e destaque — como nas artes que cria.
Quem um dia lavrou a terra com a enxada hoje pinta um sertão vivo, presente no imaginário popular. O ritmo é quase o mesmo: o corpo inclinado, a persistência e a fé de que semeará bons frutos. Mas nem sempre foi assim. Apesar do incentivo da mãe e dos irmãos, o pai, a princípio, não aprovou a troca do trabalho braçal pelo gesto artístico.
“A realidade de quem vem de uma família humilde, criada na zona rural de uma cidadezinha, é bastante diferente. Eu não tive infância. Precisava trabalhar na roça com o meu pai para ajudá-lo. Sempre que tinha um pequeno intervalo, pegava lápis e papel e fazia uns rabiscos, mas ele dizia que aquilo não me traria futuro algum e me mandava voltar ao batente”, afirma.
Mas Adilson, mesmo sem saber se tinha talento, decidiu seguir o sonho. Depois de pintar a primeira tela, buscou aprender técnicas em livros doados por amigos e recebeu conselhos do pintor sertanejo Silvio César.
Adilson Laranjeira, que se descreve como um “homem humilde”, tem como fonte de inspiração o sertão, lugar onde vive desde que nasceu. É nas paisagens do clima semiárido que ele encontra elementos essenciais para sua arte, além de utilizar fotografias e vídeos para comunicar ideias e conceitos. Admira a obra de Tarsilla do Amaral (1886-1973), Candido Portinari (1903-1962) e artistas regionais.
Com a família que construiu, a esposa Elielsa e as duas filhas, o artista se sente ainda mais acolhido. “Todas elas gostam do meu trabalho. As meninas já até pintaram suas primeiras telas. Sou feliz por conseguir me expressar sendo quem sou e da forma como enxergo a simplicidade do dia a dia”, disse.
Disfemia e arte como cura
A alagoana Nise da Silveira (1905-1999) utilizava a arteterapia como poderosa ferramenta no tratamento de seus pacientes. Para Adilson, ser artista plástico e visual, designer, artesão e marceneiro — profissões que, segundo ele, se complementam — é mais do que um trabalho manual. Nas palavras dele: “A arte é a cura da alma”.
O artista convive desde a infância com a disfemia, também conhecida como gagueira — distúrbio que compromete a fluência da fala. Ao tentar se expressar oralmente, repete sons, sílabas e palavras, trava por segundos — e enfrenta a ansiedade que acompanha o esforço da fala. Durante anos, foi alvo de bullying na escola e na sociedade.
Mas quem tem algo a dizer ao mundo sempre encontra um caminho. Desde que se reconheceu como artista, a trajetória de Adilson tem sido florida. É no modesto ateliê, nos fundos de sua marcenaria, que ele possui liberdade para se expressar.
“Muitas vezes, a arte já cumpriu um papel terapêutico em minha vida. Seja pintando uma tela ou cortando um pedaço de madeira para fazer algum objeto, quando entro aqui [no ateliê] esqueço de todos os problemas. Esqueço de tudo, até do mundo lá fora.”
Na época em que era alvo de preconceito por causa da disfemia, Adilson também usava os desenhos e pinturas como válvula de escape. “Ser uma pessoa com gagueira é só um detalhe”, reflete.
Resgate da memória do lugar onde vive
A representação do sertão nordestino na arte de Adilson Laranjeira, especialmente a partir de seu olhar sobre Carneiros, despertou o interesse de admiradores e gestores culturais. O artista foi convidado a resgatar a memória e a identidade da cidade entre as décadas de 1980 e 1990. Inspirado em fotografias, traduziu em telas as transformações que o lugar atravessou. A iniciativa também contribui para a valorização do contexto histórico, social e cultural do município.
Em uma proposta inovadora, Adilson foi convidado a transformar os muros de uma escola do ensino fundamental em verdadeiras telas a céu aberto. Com pinturas inspiradas na Xilogravura, ele dissemina as raízes da arte popular nordestina, destacando elementos da vida sertaneja e aproximando a comunidade e os estudantes de sua própria identidade.
Feliz pelo reconhecimento caloroso que vem recebendo no lugar onde vive, o menino que rabiscava a carteira e hoje pinta muros inteiros — faz apenas um pedido: “Como todo artista, desejo que o meu trabalho alcance mais pessoas e se espalhe por outros territórios”, conclui.