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E se o corpo numa escrita que nada

Nathalia – uma maravilha tão grande te ver e te ler por aqui, sara. acredito que há algo nos encontros que os fazem acontecer num tempo muito próprio e muito nosso, e talvez tenha isso acontecido agora e aconteça tanto nessa vida. acho que talvez é falando de tempo que a gente poderia começar: me conta um pouquinho da tua relação com teu tempo na escrita, em como te aparece os intervalos e os tempos no teu texto. tu percebe se ou como teu passado, presente e futuro acontecem quando se escreve? 

Sara – O tempo. É ele que me tem refeito as amostras, desde os ossos trincados às nuvens dos olhos, estas que embaçam: por isso me demorei, querida Nath, me demorei a te responder porque o corpo não é outro estado senão esse poço de grandes despertadores e eu que, há tão pouco, tenho encontrado no silêncio a força do alarme, preciso ponderar o incêndio da palavra ou só me restarão cinzas, porque eu me envolvo, querida Nath, eu me deixo ficar no papel como se esquecesse que a vida tem esse mar de conchas. 

E a poesia, sabemos, não para de se parir: você já viu o nascimento de cavalos-marinhos? Vidas primárias por todos os lados e o coração, tal qual Diego pedindo ao pai, “me ajuda a olhar?”. É a ternura do espanto, que não nos deixa as poetas dormirmos tampouco: nos sonhos, os versos ainda mais livres, desafetados da trilha sonora das lâmpadas. Por vezes, desperto até vermelha, o cheiro de mel. 

Se não escrevo, a anestesia condena todos os meus outros gestos. A escrita-chama, querida Nath. 

Nathalia – pouco sei de cavalos-marinhos e outras impressões do passado, mas tem alguma coisa nesse teu jeito de quem fala da palavra ou de um desejo ardendo que me faz lembrar do quanto ainda dá tempo de fazer esse sussurro, esse grito, esse silêncio, virar uma outra coisa nessa nossa pele. e por falar em pele, fiquei pensando no que tu falou da vida como um mar de conchas. me animam as imagens marítimas e esses sonhos de colisão com azul, essa coisa muito profunda e muito rasa. encontrei um vídeo de cavalos-marinhos nascendo: vários ao mesmo tempo, novas vidas nascidas como quem já soubesse nadar, uma sucessão quase infinita de espantos. e isso, do espanto, parece que tu também sabe. parece que a poesia por vezes também consegue ser esse parto meio abrupto e contínuo, essa coisa que carrega a gente como se já soubesse o caminho das águas. como te aparece tua relação da escrita e da palavra com essas imagens marítimas? é uma imagem e uma sensação que te busca de alguma forma? 

Você os viu, os cavalos-marinhos em êxodo, o primeiro galope nunca será enxuto. E eu me demorei, querida Nath, porque eu me demoro, eu me demoro, e eu me demorei a me apropriar dos meus passos de água: nasci em 7 de novembro, emocionada, escorpiana. Passei da hora de me subir aos pântanos e foi mainha quem contou que quase me afoguei com o líquido amniótico, o que provavelmente lhe serviu de estímulo para me matricular nas aulas de natação durante toda a infância. Só mergulha bem quem sabe tomar fôlego; mainha sabia que eu só aprenderia a nadar nadando.

Não à toa minha relação com a escrita se tornou este alagadiço: o mar na palma e eu não abro mão. Mas me surpreendi com a maestria das artérias, pois, apenas depois de começar a me pensar os processos criativos de forma mais atenta, notei o quanto minha literatura já era molhada até ali, o corpo-orgânico antes mesmo da consciência: imagens como o rio mundaú, o mar de Maragogi, a sereia, os peixes-bois, tudo isso já rondava o imaginário das minhas histórias infantis (quando comecei a publicar há mais de dez anos). Com o tempo, na medida que passei a me dedicar à escrita de poemas e do meu primeiro romance (ainda inédito), a água se abrigou no meu big bang, inteiriça, robusta, com sede também dos túneis e dos buracos. É como me apresento. Seca não será a experiência de me ver dançar. 

Nathalia – é bonito o jeito como daqui parece que a gente se encontra, sara. tu me conta a tua história de nascer e de vir ao mundo e se tu viveu o quase-afogamento no líquido amniótico, comigo foi como se tudo ali houvesse pressa e nasci antes do tempo, mais de dois meses antes. nasci pisciana e com os pulmões quase colados, e desconfio que talvez haja algo nesses signos aquáticos em aprender a respirar debaixo d’água. é lindo te ver dizer como tua literatura até ali já era molhada, já ensaiava essa respiração há tempos. orgânica, é essa a palavra que me lembra. parece que vem de dentro essa coisa gestante da palavra antes de nascer, em mim e em você. me lembrou de um vídeo que assisti em que uma artista faz uma dança muito bonita e silenciosa em estado de apneia, submersa. o vídeo é esse: https://www.youtube.com/watch?v=bdBuDg7mrT8, ontem mesmo eu li um trecho da mar becker que dizia: 

“em mim a escrita leva a descoberta de um traço de consanguinidade entre a paixão da língua e a da água: ambas quase não suportam o toque, ambas cumprem-se pela marca da finitude (do que desaparece quando tocado bruscamente, e portanto pede mãos breves, que alcancem o texto certo ponto de estremecimento, nem mais nem menos). esse parentesco entre água e vocabulário, esse afeiçoar-se dos dois a mesma ocasião do tremor, é isso o que neles parece dizer: 

aqui apenas o rastro sobrevive”

acho que tem muito, na escrita, desses rastros nossos de sobrevivência. correr o risco de procurar um resto nosso, essa busca meio infinita da palavra que falta na gente. tem alguma palavra que tu procura e ainda não encontrou? aquela coisa ainda sem fundo e sem fim, alguma sensação ou alguma história que tu tentou escrever e ainda não achou jeito? (ainda pergunto: é preciso que se encontre jeito de dizer tudo? acho uma boniteza tão grande, também, disso que só se escreve no silêncio. me conta o que te vier?)

Que lindo o vídeo. Que lindo o poema de Mar. Que bom nos sabermos sobreviventes do alagadiço, querida.

Sabe como eu sinto daqui? Que o meu silêncio está cheio de palavra. São os dedos que decidem não gritar. E eu dou corda. Nem tudo precisa ser escrito: tenho selecionado bem o que quero ver se materializar à frente como um iceberg, o que quero lembrar, o que prefiro que fique no submundo dos poemas que não vingaram. Mas só a maturidade da distração me trouxe isso: antes, eu vivia para escrever; hoje, quando não escrevo também é para continuar vivendo. A gente vai entendendo melhor as raízes, onde vamos nos plantar e crescer e deixar que nos caiam os frutos porque eu sou uma espécie de jamelão, Nath, vou me deslanchando em direção ao céu, mas, ao redor dos pés, você vê: o tapete roxo de brincos-de-viúva.

Sua pergunta, porém, se existe uma palavra que ainda não encontrei, essa pergunta me abraçou o corpo. Ainda me falta uma palavra à textura de profundidade para me descrever o órgão genital enquanto mulher. Na infância, fui ensinada a chamar de “Chiquinho” e, só anos mais tarde, atentei que a expressão fazia referência a chiqueiro: uma mulher menstruada era uma “mulher que estava de chico”, “suja”. Algumas tias eram mais explícitas no aconselhamento: “lavou direito a perseguida?”. Já na fase da adolescência, entre amigas, compartilhei palavras como chocolate, florzinha e perereca, mas, ainda assim, sinto que elas não conseguem dar conta da imensidão do nosso sexo. Não quero uma palavra de origem anatômica, como vagina ou vulva. Não uma palavra popular como xoxota, buceta ou priquita. 

Essa é a minha palavra que ainda não existe: a que me conte do corpo por onde latejam os meus desejos, sem asco, sem violência, com tranquilidade. Quando eu descobrir essa palavra, Nath, a inundação que vai ser.

Nathalia – que bonito isso, sara. parece que ter/habitar esse corpo de mulher carrega com a gente um mistério, um segredo, uma coisa da qual se desconhece. me faz pensar no desejo como essa coisa cujo nome e cuja descoberta impulsiona a vida. desejo não se acaba numa coisa só e é por esse movimento incessante de tentar descobrir que a gente tenta, arrisca, pulsa. e acredito que inventar uma palavra que ainda não existe pra dizer desse corpo que sente, goza e deseja tem sim sua marca e efeito poético na vida. essa pergunta, sobre a palavra, me faz pensar também no ato de nomear, no gesto de dar nome às coisas. no teu exercício de escrita, como é escolher o nome dos teus textos, de personagens, de sensações? como tu vai escolhendo o nome das coisas que te atravessam? 

Nath, minha querida, antes de seguir respondendo, apenas um registro: estou amando conversar com você porque, nesta partilha tão generosa entre duas escritoras aguadas, suas perguntas (tão interessadas e interessantes) têm me potencializado bastante a criação e isso é um mérito seu. Obrigada pela entrega. Pelo cuidado. Pela oportunidade da dança.

Vamos.

Pensar a escrita criativa é, muitas vezes, dar-se conta com surpresa do próprio processo: envolvida com os recursos técnicos, demorei a dar o devido valor ao elemento da intuição, embora tenha bebido em sua fonte, inevitavelmente, a cada escolha de palavra, de quebra de verso e/ou estrofe, de narradores, de estrutura de parágrafo. Mas é que a intuição, compreendida como tal, quase chega a nos exigir um certo nível de coragem: é preciso bancar o texto a partir desta semente nebulosa, inexplicável à racionalização. Ela nos aponta o que entende ser o caminho mais amadurecido na escritura e, se a questionamos pisando em ovos, a resposta é no estilo Chicó, “não sei, só sei que vai ficar melhor assim”.

Sobre o assunto, por exemplo, a criação do nome “Bartolomeia” surgiu nesta pirueta intuitiva: eu queria construir um conto centrado em uma personagem “que preferia dizer sim” (em contraponto ao personagem Bartleby, de Melville, que dizia “I would prefer not to…”). Do mesmo modo, “Sete centímetros de língua” (nome do meu primeiro livro de poemas) também nasceu de um processo ludicamente intuitivo: entusiasmada pela retomada do meu próprio corpo de mulher, depois de terminar um livro no qual as poesias carregavam essa potência da leitura em voz alta, tive o impulso de pegar uma régua e medir o tamanho da minha língua (tal qual, num cenário falocêntrico, os homens medem suas “pompas”). Sete centímetros, conferi. Acabou virando o título.

Por isso, a intuição para a criação e escolha dos nomes talvez brote aí: na conexão, na fluidez, no envolvimento com o texto, este contato entre a palavra escrita e o olho de dentro. Os nomes nascem desse flerte.

Nathalia – é bonito dizer isso, que o nome nasce de um flerte. é quase como dizer que o nome nasce de um apaixonamento, de um amor à palavra. me sinto muito capturada pela ideia de que os títulos das coisas nascem antes da gente saber. a história que tu me contou do nome do teu primeiro livro, sete centímetros de língua, me traz essa sensação quase tátil de que esse envolvimento entre corpo e texto, palavra e som. reparei muito no jeito como tua escrita provoca esse ato de estar atenta: ao próprio corpo, ao mundo. parece que tua escrita desenha esse desejo de vida, essa pulsação. como tu sente a relação da tua escrita com teu nome? 

Antes de entrar nesta resposta, sugiro nadar: Alice está chorando. 

É muito generosa sua partilha ao me dizer que sente esse “desejo de vida, de pulsação” no desenho da minha escrita. Eu que, neste momento, vejo buraco em tudo, de repente, me lembro com muita presença de como escrever tem sido esse gancho com esta eternidade do agora, a que nos mantém em pé. Lembro que é importante lembrar. E, por isso, assumo: a relação com meu nome não foi uma via de mão única.  

Por muito tempo, na adolescência, ouvir as pessoas me chamarem de “Sara” era sinônimo de desconexão, de distância, até de atrevimento. O rosto logo se contrariava, como se “Sara” fosse quase uma ofensa. Gostava de “Sarinha”, esse apelido carregado de afeto que tanto me construiu as narrativas de uma infância saudosa. “Sarinha pequena”, “Sarinha feliz”, “Sarinha sorriso”. O mundo da Sara adulta sempre me pareceu mais duro, mais hostil, cumprindo agendas. Pelo menos, ser chamada de “Sarinha” servia de ponte àquele universo de pequenas alegrias, descobertas e proteção maternal.  

Porém, a hora do chá: a gente sempre acorda. 

Foi ali pelos vinte e um, no final da graduação, que, ao me chamarem “Sara”, não havia mais qualquer estranhamento. Já nessa fase, também, é que me dei por conta da força da sua simbologia, esta expectativa que se carimbou em mim a vida toda: Sara, do hebraico, significa “princesa” (não vou nem entrar na história do meu segundo prenome: Regina, do latim, “rainha”). E, fazendo jus ao peso do nome, aprendi a falar delicado, a ter os gestos contidos e a sorrir bastante, sorrir ainda que doendo, sorrir como se sempre houvesse amanhã, ao que também me tornei a filha educada, a estudante CDF, a trabalhadora “exemplar”, sem, muitas vezes, a consciência dos comportamentos reprimidos a que me submeti para me fazer caber, para ser aceita, para ser amada.  

Abracei a “princesa” para me livrar dela anos depois: destrancamos a porta da palavra e descemos a torre pelas escadas (“giz morrendo”, meu livro de poemas contemplado no Edital para Publicações de Obras da Graciliano, em 2018, conta muito dessa fase aqui e, talvez por isso, eu lhe retorne pouco: “verdade demais confunde / assusta”). 

Não faz muito, Nath, que entendi “Sara” como esse verbo no presente do indicativo: veja esse corpo, essa deixa. A verdade é que você não tem como dizer meu nome, sem me emanar um desejo de cura. Já quando sou eu que assumo “Sara”, meu nome é “Sara”, coloco-me nessa condição de ser verbo em constante ensaio.  

E as palavras têm uma força misteriosa, vindas de mim ou de você, a gente sabe.  

As palavras cicatrizam. Alice agora ri. 

 

Nathalia – das coisas que mais gosto nessa vida uma delas é essa, de viver me assustando com as coisas, com a vida, com as pessoas. escuto uma palavra diferente, um jeito de dizer, uma história roubada de alguém desconhecido no meio da rua. uma vez me disseram que quando eu tô fotografando, pareço estar muito presente e atenta. acredito que talvez tenha muito de uma mania muito de tornar grandes coisas pequenas: quase a mesma coisa acontece com esse exercício da escrita, esse acontecimento minúsculo que sai do corpo. me conta, de como tu sente tua escrita no teu corpo? 

Sua presença é incontornável na poética pela qual sussurram sua fotografia e literatura, Nath. Dá mesmo pra te ver (imagino quem te contempla durante o processo, deve ser lindo). E alcançar o corpo da artista a partir da sua obra é também nos lembrar: somos igualmente corpos, por quais lugares temos nos deixado ficar?

Eu me sinto cheia de palavra. A sensação é tão corpórea que talvez sejam elas as culpadas destas dores crônicas que me arrebentam o corpo ano após ano após ano, os músculos apertados, as agulhas invisíveis, as mãos trêmulas que enrijecem numa fisgada e os médicos repetem os exames que apontam para uma janela obscura, mas não dizem nada, não dizem nada: quem sabe eu deva imprimir os meus poemas num raio-X, porque a escrita, Nath, embora não seja minha cura, é ela que tem dado alívio aos ossos, quem desobstrui a passagem do mar.

Eu me sinto cheia, cheia de palavra. Mas faz pouco que levei para o racional o quanto a escrita, em si, é um ato performático (no sentido de que ela nos pede o atravessamento pelo corpo para nos antecipar o efeito da comunicação): eu sinto cada palavra que escrevo e celebro, que escrevo e rasuro, que escrevo e condeno, e eu choro e eu suo e eu me molho, nenhuma palavra escapa sem antes me fazer navio. Foi na busca de potencializar ao grau máximo este ato performativo que também acontece a partir da leitura (ainda que silenciosa), aproximando os leitores dos seus próprios casulos, que tentei construir no meu segundo trabalho poético, “Sete centímetros de Língua”, publicado pela Patuá, em 2018, poemas que desafiassem o movimento das nossas impressões digitais, que trouxessem à consciência os impulsos deste corpo que lê. Esse corpo que veio antes. Está no ovo. Está na galinha.

Nathalia – gosto de dizer de língua pra escrever: é a parte do corpo que mais se confunde com um outro idioma. parece que é possivel que se faça, corpo a corpo, palavra a palavra, um jeito de que invente um vocabulário muito nosso, uma textura com a qual se vê o mundo. quando tu me conta do alívio dos ossos te digo que sinto coisa parecida. me lembra de um pedacinho de um trecho do drummond quando ele diz das palavras em estado de dicionário: é como se as palavras já estivessem todas aqui, e que não estivessem ao mesmo tempo. como se escrever fosse achar esse rastro de uma palavra-primeira. tu lembra das tuas primeiras palavras, ou da primeira vez que uma palavra te tocou? tem alguma palavra em específico que te cause algum efeito?

Tenho ainda uma memória muito viva da minha formatura do ABC, ela me vem à mente a cada solstício, talvez para me resgatar o encantamento daquela compreensão súbita, no ginásio da escola, sentada sobre meus joelhos, num vestido branco com faixa verde na cintura, esperando para apresentar a coreografia da música Tô de bem com a vida, da Xuxa, quando eu me mantive olhando fixamente aquele anel do ABC no meu dedo por não sei quanto tempo e captei ali a potência da palavra, captei estar diante de um mistério que me sugava tal qual buraco negro, captei a vontade de me entregar de propósito àquela ideia de não saber tudo para poder, então, saber mais. Só não captei que o nome disso era amor, isso eu só entendi depois.

Daí pra frente, a relação com a escrita só foi se estreitando: meu primeiro blog, em meados de 2003/2004, chamava-se “Fábrica de Palavras”, espelhando muito a forma como aquela menina de treze/catorze anos se conectava com o mundo, um corpo em produção porque, na tentativa de me despedir daquelas timidezes que me silenciavam a existência, escrever na internet me possibilitou conhecer e trocar com muitas pessoas que prezavam pelo mesmo interesse em leitura e literatura. Fiz amizades que perduram até o presente, um acalanto.

Mas uma curiosidade sobre este assunto é que, em 2008, atualizei o blog de “Fábrica de palavras” para “Saralidade”: uma palavra nova (saboreada com meu nome) para dar vazão àquele espaço virtual que passei a chamar de casa por tanto tempo. Queria uma palavra que desse conta de toda aquela sede, aquela festa, aquela entrega, aquele estado de estar ali me desnudando como se o livro fosse eu. E “Saralidade” teve a força suficiente do amparo durante o período que lhe coube.

Só anos depois, em 2017, já sem a manutenção do blog, comecei a compartilhar meus escritos e performances por meio de um projeto chamado “Leitura que sara”, que não promete não tocar na ferida, mas propõe um caminho: a palavra como remédio. E, neste sentido, são muitas as palavras que me dão colo na ótica da língua portuguesa (você sabia, querida Nath, que cada língua tem uma impressão digital única, como os dedos das mãos?): mamulengo, chamego, belicuete, panturrilha, travesseiro. Em tupi-guarani, Massayó.

Nathalia – queria que tu soubesse que sorri lendo essas tuas histórias, esse momento de encantamento e de reparar nessa força da palavra, no jeito como se enlaça com tua vida, com as memórias que tem pra contar. acho bonito que teu nome é verbo e colocado desse jeito, como cura e remédio, traz as palavras para um lugar de quem estanca ferida. parece que tem outro mistério nisso de quando se aprende a decodificar essas combinações de vinte e sete símbolos e transformar lentamente em coisa nova. o jeito como cada palavra carrega essa marca da gente e de um corpo no mundo. como foi/é pra tu essa sensação de ser lida por outras pessoas, de compartilhar o texto pra além de si e deixar chegar em outros cantos? queria também te ler um pouquinho contando como te chegou esse lugar da escrita com a performance, com a leitura que sara. 

Ah, querida Nath, graças à timidez que conto e reconto, a leitura foi a minha forma de conexão mais honesta com o mundo desde muito pequena: seja na forma silenciosa, como ali deitada no chão da varanda da minha casa no Salvador Lyra, lendo toda a saga de Harry Potter e me encontrando com os conflitos psicológicos de muitas das personagens; seja em voz alta, como na leitura contente de Pollyana, partilhada com minha prima Alanna (ela lia alto a página direita, e eu, a esquerda), ou como na leitura de passagens da bíblia, estimulada pelos meus colegas de catecismo; ou como na sala de aula, a pedido dos professores de língua portuguesa e literatura e história, que diziam “vai, Sara” e eu só ia lendo era tudo, palavras e mais palavras que, fora daquele ambiente de segurança e incentivo, morriam no calhamaço dos meus olhos em silêncio porque eu, querida Nath, durante muito tempo preferi não dizer. Preferi não dizer por mim. Era medo.

Foi muito a partir dos desafios da leitura em voz alta que passei a entrar em contato com as potências do meu corpo-voz, deixando-me ser barco das emoções mais singulares ao comer a palavra, sentir a palavra, deixar a palavra escorrer pelos poros. Por isso, penso que a “leitura-que-sara”, no seu gérmen, tenha nascido aqui nesse contexto de busca, de tentativa de construção de laços com o mundo, de autorização para se fazer existir. A leitura em voz alta me permitiu ser de verdade ao possibilitar que eu assumisse ali, num ato da língua, que eu tinha um corpo. E se esse corpo podia ler, ele também podia escrever: daí para me empolgar e querer me relacionar com o mundo a partir das minhas palavras (este ninho de ternura e fúria), foi um pulo de amarelinha.

Nathalia – te leio e tenho a sensação de como se a gente se conhecesse em algum canto muito íntimo, muito nosso. queria te dizer como a sensação de ler quem lê a gente antes é assim. acredito muito no jeito como a escrita vai cavando esses buracos na gente, como pela escrita do outro é possível conhecer um pouco da gente também, onde algo toca e nem se sabe. ainda hoje me pego pensando em algo que tu me contou por aqui, quando tu me disse que não escrever também é jeito de continuar vivendo. a falta da escrita às vezes é tão necessária quanto a presença. não consigo passar longos meses escrevendo o tempo inteiro, parece que o corpo cansa e tudo se estremece. o jeito como a escrita balança essas doses de prazer e de desprazer são dessas coisas raras em se existir. como é pra tu os momentos de não-escrita, e como tu sente que chegou a hora de voltar? aproveitando o ritmo dessa pergunta, me conta também se tem algum texto, escritora, escritor ou algo que te faz ter essa sensação, essa explosão, essa vontade de vida?  

Os momentos de não-escrita variam muito. O mais comum do impulso é buscar na palavra um tempo próprio, um aprofundamento das minhas reflexões, a poesia já vem rasgada de berço. Mas, como te falei antes, não-escrever também pode vir por escolha, uma manobra para driblar a memória das horas cinzas, para ampliar os focos de restauração a partir de outras linguagens (a dança também me é uma grande amiga); embora, por vezes, a não-escrita apenas costume se impor: o corpo pedindo espaço, antes de ser palavra e som. O livro “não escrevo porque” (Edipucrs, 2021) me trouxe muitas respostas neste sentido: em um dos textos, Harini Kanesiro me sabe dos poços: “não escrevo porque escrever me obriga a desvelar um gesto, a sair do ponto morto, e talvez eu não possa escrever se continuar persistindo na ideia da morte, mergulhando o olhar abismal nos frascos de Venlafaxina”.

Muitas vezes a não-escrita também é seletiva quanto ao gênero textual. Há tempos de poemas de três páginas, tempos de haicai. Há tempos de novela, tempos de contos. Há tempos de crônicas, tempos de literatura infantil. Há tempo para tudo debaixo do céu da literatura.

No caso da novela que escrevi no Mestrado em Escrita Criativa (PUCRS), concluída a primeira versão em 2018, só agora em 2023 volto a retomá-la com mais amadurecimento: há tempos de inícios, há tempos de retornos e, no caso desta minha primeira prosa longa, essa volta se dá pela necessidade de fechamento deste ciclo, já que tenho muito mais nitidez do conflito-chave da minha personagem central e do como quero contar esta história. Caso passem ainda mais anos, tenho receio de me desconectar totalmente desta narrativa, de que evaporize o sentido (talvez, nesse exemplo, seja isso que dite o tempo de voltar). Então, para que o trabalho não se perca na gaveta, a reescrita agora tem sido um gerúndio árduo (embora delicioso!). 

Mas a hora de retornar à escrita não é como o pôr do sol, imponente. Às vezes, ela até se apresenta mais obstinada, mas há um corpo ali a decidir entre sair do banho para anotar uma ideia nas notas do celular ou correr o risco de perder o gérmen da palavra, como escrevi esses dias: “tenho perdido poemas / porque eu deixo / que vão/ às vezes / a caneta emplacada / o celular já na mão / mas eu deixo que passem / os poemas / em fila / pulam / sem paraquedas / gritam / deu a louca / no piloto / nunca / nunca / nunca / mandam lembranças”. 

Quando o corpo e a escrita se abraçam, o gozo é fácil. 

E são muitas as literaturas que me causam esse prazer, essa “explosão de vida” (adorei essa expressão, querida Nath). Hoje, citarei três poetas que me acompanham os espantos: a portuguesa Adília Lopes, a polonesa Wislawa Szymborska e a brasileira Ana Martins Marques. Mas também a compositora Adriana Calcanhotto (quando pequena, eu tinha mania de imprimir as letras da cantora para ir acompanhando; até hoje, as músicas de Adriana me dão abrigo). 

Nathalia – é tão afetivo te escrever, sara. sempre que venho e volto aqui neste espaço que a gente criou, é como se eu precisasse estar aberta, disposta e atenta para todas as várias sensações que tenho quando te leio, quando te vejo daqui. o jeito como tu se deixa entregar e se levar pelas palavras é algo que muito me comove e me deixa, de certa forma, até sem palavra pra dizer desse encontro contigo. parece que temos tanto a dizer ainda. tanto tempo, tanta gente dentro da gente, tanto que ainda não se conhece. gosto de sentir esse gosto, como quem escreve entregando nas mãos um segredo (e aqui, contamos tantos). não vou me esquecer dos cavalos-marinhos.

Tampouco eu esquecerei desta travessia, querida. Obrigada pelo espaço, pelo entusiasmo, por ser tão leve e verdadeiro, que se alongou no tempo, me fez querer ficar. 

Toma aqui meu abraço, chega mais perto. 

Nathalia – antes da gente ir, me conta aqui onde podemos encontrar mais do teu trabalho? (se tu tiver locais onde escreve/publica textos, se tiver livros à venda onde é possível adquirir, formas de te encontrar por aí, como instagram, site, etc) 

Tá. O convite não é para me seguir, é para dançarmos em coletivo que é mais gostoso, certo?

Tenho partilhado um pouco das minhas leituras e escrita no instagram @leituraquesara. Até o momento, é a plataforma que mais uso para fins de divulgação dos meus trabalhos, então, encontrar-me por lá é um caminho. Outro é pelas redes da Oxibá Casa da Escrita (@oxiba.casadaescrita), onde eu e o meu amado, o escritor Gabriel Bortulini, oferecemos serviços de escrita criativa, como leitura crítica e lapidação de texto, vem cá dar uma olhada: https://www.oxibaescrita.com.br/  

A quem se interessar por títulos de literatura infantil, O segredo do rio Mundaú (2011); O embrulho misterioso de Nina (2013, em coautoria com Kemesson Lemos) e Ei, você viu Luizinho? (2013), integrantes da Coleção Coco de Roda, organizada pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos, estão disponíveis no site da Editora. 

Em poesia, Caspas e Muriçocas (Urutau, 2021); Sete centímetros de língua (Patuá, 2018) e Giz Morrendo (Iogram, 2018) podem ser encontrados comigo ou diretamente nas respectivas Editoras.

Escrevam-me, vamos conversar.

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