Rapper alagoano transforma suas letras em ato de resistência e aborda a juventude periférica e suas lutas internas
Por Maryana Carvalho sob supervisão de Bertrand Morais
O rap é poesia. Como o próprio nome já diz: Ritmo e Poesia. Mas poucos falam disso, porque como cultura e estilo musical, ele ainda é muito marginalizado. Longe dos palcos da elite, o rap ressoa nas veias da periferia, onde vozes são silenciadas e vivem a dor da perda e da falta. A denúncia pela arte, então, se torna uma forma de segurança, além de dar forma e vida aos seus sonhos.
É nesse cenário que surge Marcos Oliver Guedes. Sua identidade é moldada pelos bairros da Ponta Grossa, Vergel do Lago, Prado e Trapiche da Barra, e principalmente pela Praça Guedes de Miranda. Por meio de notas de WhatsApp, ele rima o retrato cru da juventude periférica, com suas lutas internas, familiares e sociais. E assim nasce Guedxs, que encontra nas letras a forma de expressar não apenas a dor, mas também sonhos. Então, ele encontra sua alma e lança seu primeiro álbum: “Entre Almas Perdidas”.
R.A: Por que o nome Guedxs, que história carrega seu nome?
Guedxs: Desde quando decidi soltar minha primeira prévia, eu queria um vulgo que me representasse e também de onde eu venho. Eu não queria algo como “Lil alguma coisa” ou algo parecido, então optei por colocar meu próprio sobrenome: Marcos Oliver Guedes Sabino. Sinto que representa tudo o que imaginei.
R.A: O que te fez se interessar pelo rap?
Guedxs: Eu tive o primeiro contato com o hip hop através de um projeto muito antigo de break dance no Conjunto Luiz Pedro quando eu era bem novo, acho que tinha entre 10 e 13 anos. O rap foi me apresentado nessa idade também, pelo meu irmão mais velho, Luís Victor, que ouvia junto com os amigos NSC – Língua de Lagartixa, Racionais, entre outros clássicos.
Eu e meu irmão gêmeo, Olisson, sempre ficávamos mais de canto ouvindo, mas com aquela inocência de criança: entrava por um ouvido e saía pelo outro, até o momento em que ele falou que não era para a gente ouvir aquelas músicas. Com o tempo, fomos ouvindo e nos identificando, porque as letras relatavam tudo que acontecia ao nosso redor – desde o crime, a hostilidade e até a alegria de ter fartura em casa.
R.A: Você cresceu em bairros como Ponta Grossa, Vergel do Lago, Prado e Trapiche da Barra, lugares marcados por contrastes e resistências. Como essas vivências moldaram sua visão de mundo e se refletem no que você escreve e canta?
Guedxs: Me moldaram e mudaram por completo. Da pré-adolescência, adolescência até a vida adulta, foi uma grande montanha-russa de acontecimentos. Quando pré-adolescente, eu não tinha maturidade para digerir situações – como a separação dos meus pais que fiquei revoltado – e a partir disso concentrei minha vida e energia nas ruas, comecei a fumar maconha, fiz amizades erradas e estive constantemente rodeado pelo tráfico. Isso gerou desgosto na minha família e muita preocupação.
Mas parece que Deus foi mexendo na minha vida de uma forma que eu não sei explicar. As coisas foram acontecendo e, quando vi, já tinha passado esse tempo sombrio. E a minha única forma de expressar tudo que estava sentindo foi através da escrita.
R.A: Suas primeiras rimas nasceram em áudios de WhatsApp, muitas vezes com tom de desabafo ou conversa íntima. Hoje, essas rimas estão em seu novo álbum Entre Almas Perdidas, que levou três anos para ser produzido. O que mudou nesse processo de você como pessoa e seu olhar sobre a música?
Guedxs: O álbum fala por si só. A ordem em que as faixas foram montadas segue as fases que passei conforme fui crescendo. Se você ouvir com atenção, vai sentir que existe uma cronologia e muito sentimento em cada momento. Dá para sentir se eu ainda sou um pivete, se estou bem, se estou amadurecendo. É muito sobre sentir o que se passa.
Durante esse processo, amadureci muito. A música deixou de ser hobby e se transformou em trabalho. Fiz alguns shows pela cidade, abri apresentações importantes como a do SAIN-KTTZOO (Rex Jazz Bar), obtive algumas respostas que me fazem refletir até hoje e fui me encontrando nesse caminho. EAP é o relato da minha vida inteira; eu tive que virar homem mais cedo e as circunstâncias em que vivi muito novo me obrigaram a isso. Minha mãe teve um quadro de depressão profunda após a separação, tentou su!cíd!o – isso foi um baque muito grande para mim. Meu pai fez sua parte até certo ponto, mas quase não tenho lembranças.
Arrumei um bom emprego de jovem aprendiz, o que também me transformou – a forma de falar, agir, observar e me comportar de forma empresarial. Atualmente, trabalho no mesmo local, em um cargo legal.
R.A: Qual foi o maior desafio nesse processo criativo e o que você acredita que esse álbum comunica para quem vive realidades parecidas com a sua?
Guedxs: O processo em si foi o mais difícil. Eu não decidi nada, tipo “ah, vou gravar um álbum esse ano”. Eu vivi o álbum e fui compondo simultaneamente, sem saber. Não tinha decidido fazer um álbum, entende?
Mas um ponto muito difícil foi a partir do momento em que juntei as faixas e comecei a desenvolver a ideia. Passei alguns meses na pilha: gravando, mixando, masterizando, criando artes, fazendo divulgação. É muito sofrido quando não se tem uma rede ou equipe para dar suporte. Mas acredito que tudo o que passei foi necessário para o álbum ser o que é.
O álbum comunica identificação, acolhimento, resiliência e também a hostilidade da nossa capital – seja lá onde for. É um grande abraço para todxs jovens pretos e periféricos de Alagoas. É difícil ouvir o álbum e não se identificar com algum momento ali. Eu garanto essa identificação, acredito que é o que mais importa.
R.A: Você fala da importância do seu irmão gêmeo, Marcos Olisson, e de amigos como PH na sua caminhada. O quanto essa rede de apoio foi determinante para que você continuasse acreditando na sua arte?
Guedxs: Olisson foi fundamental para nascer o Guedxs. Eu tinha muita prévia guardada como áudio de WhatsApp, fazia o upload no YouTube e ficávamos ouvindo por horas. Ele sempre me incentivava a soltar no Instagram. Eu tinha muita vergonha, mas no fundo sabia que minhas músicas eram boas e originais. Não tinha como impedir esse evento canônico. Até que um dia eu cheguei a deixar uma prévia arquivada no Instagram, e ele me deu a ideia final: “mano, solta logo essa música, isso tá muito bom! Se não fosse, eu não estaria aqui ouvindo. Pode soltar, faça isso por mim”. Então eu soltei a prévia de “Dúvidas” e bateu muito forte.
O PH foi indescritivelmente fundamental para que o Guedxs fosse quem é hoje. Desde a primeira vez que fui no estúdio dele e gravei “Dúvidas”, ele sempre me instruiu e guiou para que eu evoluísse. Chegou um momento em que ele só observava e admirava o que eu fazia no estúdio. Ele me deu muita luz, caminhos para seguir, atalhos que nem todo mundo recebe no começo.
Eu o considero como um padrinho no rap. O cara produziu as pessoas que cresci ouvindo – Alex NSC, F33, Invasor. Tenho uma dívida eterna com o PH. Pretendo voltar futuramente muito rico, comprar o estúdio e fazer um projeto para que as quebradas tenham acesso à cultura, música, poesia, o que for.
R.A: Canções como Por Nada e Fluxo Natural tratam de violência urbana, escolhas e caminhos difíceis. Quando você escreve sobre essas experiências, você sente que está registrando a memória coletiva das periferias?
Guedxs: Sem dúvida alguma! “Por Nada” retrata a hostilidade no bairro, a forma como uma vida pode ser tirada como se não fosse nada – e, às vezes, por nada.
“Fluxo Natural” retrata o fluxo do crime no bairro e a vida de dois amigos que estavam envolvidos. Eles traficavam muito até que um deles se foi na covardia. O outro, aos poucos, foi se afastando e hoje é um cara do bem, totalmente diferente do passado. Então, de fato, sim: sempre estive registrando a memória e a história das periferias.
R.A: Muitas vezes, o rap não é reconhecido . Para você, o que significa transformar a vivência periférica em poesia e como isso se relaciona com a resistência cultural?
Guedxs: É uma válvula de escape: dizer o que sente, o que acha, fazer denúncia, resistir. Não precisamos ser reconhecidos pelos espaços da elite, precisamos ser reconhecidos pelos nossos. Precisamos cultivar os nossos, para que esse tipo de negação passe a não significar nada para nós.
R.A: Você vai se apresentar na segunda edição do Jaça Cria, um evento que dá voz à cultura periférica de Maceió. O que significa levar suas músicas para esse espaço e o que o público pode esperar da sua performance?
Guedxs: É muito significativo apresentar meu álbum em uma das principais quebradas que vivi durante a criação dele. É como voltar no tempo em que fiz as faixas. É viver o álbum. Podem esperar uma performance digna de futuros prêmios: original, real e sincera.
R.A: Depois de Entre Almas Perdidas, quais são os próximos passos? Você já pensa em novos projetos, colaborações ou até em outras formas de expressar sua arte além da música?
Guedxs: Estou focado em extrair o máximo de Entre Almas Perdidas. Estou preparando um merchandising, algum evento comemorativo, entre outras coisas. Mas de uma coisa tenho certeza: estou sempre criando músicas novas. É questão de tempo até chegar a hora. Estou no projeto do minidoc do CLICKNIGGAS, responsável pela trilha sonora do documentário. É uma nova forma de expressar minha arte, mas ainda com música.
R.A: Se você pudesse deixar uma mensagem para os jovens da periferia que sonham em transformar suas vivências em arte, qual seria?
Guedxs: Comece, apenas comece. Seja dançando, compondo músicas, poesias, pichando, grafitando, rimando – apenas comece. Comece, evolua, aperfeiçoe, não pare.
R.A: Você falou sobre o processo de criação de EAP, mas quem é o Guedxs depois do lançamento? Como tem sido ver pessoas escutando suas músicas e se identificando com as memórias e histórias rimadas no álbum?
Guedxs: É um artista mais seguro em relação à própria arte, tem mais consciência e percebe que alcançou um dos objetivos traçados no álbum: a identificação dos próximos, de outros jovens. Eu me sinto orgulhoso quando alguém me relata algo sobre o álbum, que gostou de um verso, de um beat, de uma faixa ou até do álbum inteiro. É muito forte esse misto de sentimentos.
R.A: Você destaca muito a rede de apoio de irmãos e amigos. Fora esse círculo, você acha que em Alagoas existe apoio para rappers? Como foi essa experiência para você?
Guedxs: Existe e não existe. Depende do que você – rapper, MC, artista – considera apoio. Se for apoio do Estado/governo de Alagoas, há a possibilidade de se inscrever em editais através do seu projeto, mas é necessário um certo conhecimento que nem todas as pessoas têm – ou simplesmente não estão dispostas a ajudar nesse processo.
Wilson Smith e Karla Dias foram duas pessoas que me ajudaram muito no quesito profissional da música. Wil fez uma matéria sobre o álbum no seu blog e, junto com Roger Dias, me disponibilizou um ensaio especial do álbum EAP. Karla Dias sempre correu atrás de oportunidades para mim: shows, conexões com produtoras, eventos pelo bairro. Sinto que tenho uma eterna dívida com ela, porque sempre me ajuda muito. Tenho uma eterna gratidão por eles. Essas pessoas que citei durante a entrevista fazem parte da rede de apoio que o Estado de Alagoas não oferece e nem disponibiliza de forma acessível para todos.
R.A: Como nasceu a ideia de criar EAP?
No começo desse período de três anos, em que fui criando várias faixas, meu canal foi derrubado por denúncia. Eu já estava chegando a quase mil inscritos, com dez lançamentos – um por mês. Isso me frustrou de uma forma que acabei me afastando da música. Parei de lançar, mas continuei produzindo, sem expectativa de voltar tão cedo. Com o tempo, senti que precisava fazer um projeto grande, nem que fosse uma mixtape, um EP ou uma tape. Eu precisava voltar, para provar a mim mesmo que era capaz de não deixar aquilo me abalar.
Comecei a estruturar a tracklist. A primeira que montei não fazia sentido: as músicas não se conectavam, era uma bagunça total. Depois adaptei para uma ordem cronológica, e a coisa começou a ficar especial. Foi assim que nasceu EAP.
O nome Entre Almas Perdidas veio do bairro, dos amigos que perdi, da hostilidade que sofri, de tudo que vivenciei. Eu sempre estive entre almas perdidas, só encontrei uma forma de registrar isso para que outras pessoas pudessem se sentir acolhidas.