No Dia Nacional do Escritor, nomes alagoanos celebram a escrita como identidade, ofício e território.
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Lícia Souto
A literatura alagoana carrega uma força antiga. Ecoa dos clássicos modernistas ao cordel popular, das crônicas urbanas às narrativas do sertão. Escritores alagoanos sempre ocuparam a cena literária nacional, mesmo que, muitas vezes, à margem dos grandes centros e das vitrines editoriais.
Em 25 de julho, Dia Nacional do Escritor, celebramos não apenas quem publica livros, mas quem transforma vivência em linguagem, memória e narrativa. Antes de ser livro, a escrita foi voz. Antes de ser carreira, foi necessidade. Em Alagoas, terra de Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Jorge de Lima e tantos outros, a palavra sempre foi instrumento do mundo.
Essa tradição segue viva por meio de novas vozes que escrevem a partir de suas realidades, territórios e memórias. Em tempos de dispersão digital e acesso desigual ao livro, valorizar quem escreve a partir de Alagoas é também um gesto político de afirmação, resistência e pertencimento.
Nesta reportagem, conversamos com quatro nomes que ajudam a manter a literatura em movimento. Sara Albuquerque apresenta às crianças o encantamento da leitura em O Segredo do Rio Mundaú. José Minervino finca os pés na terra para escrever sua poesia em Terra Cercada. Cícero Manoel carrega o cordel como instrumento de identidade e oralidade popular. E Suellen Ketellen, à frente do Leia Mulheres Arapiraca, movimenta leitores e autoras em encontros que ampliam o acesso e a escuta literária no agreste alagoano.
A literatura infantil de Sara Albuquerque que faz Alagoas sonhar
No coração do Nordeste, entre os manguezais do Mundaú e as memórias de um povo que nunca deixou de lutar, brota uma literatura feita de resistência, beleza e pertencimento. Em Alagoas, a escritora Sara Albuquerque fincou as raízes de sua escrita, uma literatura infantil que não se esquiva das urgências do presente, mas as transforma em histórias acessíveis às pequenas mãos e aos grandes futuros.
Foi aos 19 anos, movida pela dor e pela indignação diante do racismo estrutural, que Sara escreveu O Segredo do Rio Mundaú. Ainda não havia Instagram ou mercado editorial voltado à diversidade, mas já havia uma jovem escritora disposta a escrever o livro que nunca pôde ler na infância. Um livro que disse às crianças negras, e a todas as outras, que a liberdade é um direito, que a ancestralidade é força, que a identidade não precisa caber em estereótipos.
“Não lembro de ter tido acesso, na infância, a narrativas que combatessem o racismo em sua essência. O que se via era o contrário: uma literatura escolarizada que reproduzia preconceitos, como as obras de Monteiro Lobato”, afirma. A ausência de representações positivas a feriu desde cedo, ainda mais em um corpo multirracial como o seu, que enfrentou violências simbólicas, explícitas e silenciosas. A partir dessas dores, surgiu a urgência de escrever. E ela escreveu.
A história de O Segredo do Rio Mundaú é uma ode à força cultural de Alagoas. Em meio a personagens como a sereia Iara, o indígena Piatã e o líder negro Zumbi dos Palmares, o livro cria pontes entre o imaginário infantil e a história do Quilombo dos Palmares, recontada com respeito e encantamento. Publicado há catorze anos, o livro segue circulando em escolas de diferentes estados, sempre levando consigo o nome de Alagoas, não como cenário decorativo, mas como território ancestral, político e poético. “Ele anda por aí contando aos quatro ventos que a Terra da Liberdade fica em Alagoas”, diz Sara, com orgulho.
A escolha de situar suas histórias no território alagoano é também um gesto de afirmação frente à invisibilidade histórica da produção cultural do estado. “A literatura infantil que se ancora na nossa terra é uma ferramenta poderosa de construção de identidade e combate à xenofobia. Nossas crianças precisam conhecer e valorizar a riqueza do lugar de onde vêm”, defende. E esse compromisso se fortalece com a participação da autora na coleção Coco de Roda, da Imprensa Oficial Graciliano Ramos, que reúne escritores alagoanos em obras voltadas ao público infantil.
Ao escrever para crianças, Sara não busca apenas entreter. Ela acredita que a literatura infantil é capaz de formar cidadãos críticos, conscientes e sensíveis às desigualdades. “O desafio de escrever para esse público é, ao mesmo tempo, o que mais me inspira. A criança é o futuro, mas também o agora. É preciso tratá-la com inteligência narrativa, oferecer textos que a façam imaginar, refletir, agir.”
Numa sociedade onde o racismo, a desigualdade e o preconceito se disfarçam de piada ou desinformação, Sara reafirma seu papel como autora que escreve com e para a liberdade. Sua literatura, nascida em Alagoas e alimentada pelas dores e delícias de pertencer, é uma semente plantada no presente para florescer em cada leitor do futuro. Porque, como ela mesma diz, “a palavra cria e aproxima mundos. E a leitura é, antes de tudo, um ato de libertação”.
Cícero Manoel e a poesia que veio no toca-fitas
Antes de saber que era cordelista, Cícero Manoel já rimava o mundo. Criado na zona rural de Santana do Mundaú, em uma casa de taipa sem energia elétrica, sua infância foi moldada por dois elementos: a roça e o rádio. O toca-fitas era o único aparelho que ligava sua casa ao mundo, e foi por ele que as palavras rimadas entraram e nunca mais saíram.
“Meu pai tinha duas fitas cassete: uma com dois repentistas emboladores e outra com dois violeiros. Aquilo foi minha primeira escola literária”, conta. E havia ainda os benditos que a mãe cantava, memórias vivas do Padre Cícero e das romarias do sertão. No repertório do rádio, também ecoavam toadas de vaqueiro, repentes e canções que contavam histórias, como o poema “A Triste Partida”, de Patativa do Assaré, na voz de Luiz Gonzaga.
Nesse ambiente onde a oralidade era soberana, o menino de dez anos que sonhava ser cantor escreveu sua primeira composição. “Saiu um poema escrito em quadras ABCB, bem rimado e metrificado.” Era a poesia popular brotando espontânea, mesmo sem nome.
Foi apenas anos mais tarde, já no ensino médio, que Cícero descobriu que aquilo que escrevia desde cedo era cordel. “Fui descoberto cordelista em uma aula de Língua Portuguesa”, relembra. “Imprimi minhas primeiras histórias e comecei a atuar em rádios e eventos culturais da região.” A revelação não foi uma ruptura, mas uma confirmação: ele já era poeta antes mesmo de saber.
De lá para cá, Cícero Manoel tem feito do cordel uma ferramenta de memória e resistência. Em seu livro Um Cordel Atrás do Outro, a paisagem, a fala e a cultura do interior ganham papel central. Sua poesia não se curva ao esquecimento, ao contrário, ela fixa no papel aquilo que o tempo, sozinho, não dá conta de guardar.
No Dia do Escritor, ele lembra que a literatura também nasce do chão e da fala. “A poesia estava a toda hora entrando e saindo dos meus ouvidos”, diz, como quem fala de um rio que nunca seca. No seu caso, a fonte está sempre ali: entre a lembrança do rádio ligado, a enxada no campo, e o papel em branco esperando pela próxima sextilha.
José Minervino e os versos que brotam da terra e da cheia
Branquinha é uma das menores cidades de Alagoas, mas, para José Minervino, carrega dentro de si o mundo. Um mundo de paisagens cobertas de cana-de-açúcar, caminhões de usina cruzando a estrada, cheiro de queimada no ar e histórias que não cabem em fotografia, só mesmo na poesia.
Foi esse território de terra fértil e de cheias violentas que moldou seu olhar e, mais tarde, sua escrita. “Até a cheia de 2010, os canaviais e o rio Mundaú eram a principal paisagem que eu presenciava no meu cotidiano”, relembra. “Vivi cercado pelo verde da cana, pelas pessoas que viviam dela, pelas rodovias ladeadas por ela.”
Esse cenário, repetido por décadas, germinou o livro Terra Cercada, uma obra construída com as mãos sujas de lembrança. “Guardei e remoí essas memórias por mais de trinta anos.”
Mas o solo da poesia de Minervino vai além da zona da mata. A infância também foi moldada pelas narrativas da mãe, que veio do sertão. “Ela nos criou contando histórias dela e das minhas tias em Mata Grande. Essa foi a forma literária mais antiga que conheci.” As histórias falavam de um lugar mágico e seco, onde se sobrevivia com tão pouca água. E, na contramão, a vida do menino Minervino se dava à beira do rio, enfrentando a força destruidora das águas.
Esse contraste entre secura e enchente, entre sertão e mata, está no poema “Águas”, do seu primeiro livro, Antes e Depois da Chuva. Ali, ele começa a consolidar sua escrita como um exercício de memória, mas também como um gesto de afeto: “Minha família é uma grande referência não só de afeto, mas de lições para a vida”, diz. Com o nascimento do filho Francisco, essa urgência de guardar as lembranças se intensificou. “Nem sempre os poemas saem bons. Aí guardo num canto, como quem guarda uma foto borrada pela lama da cheia.”
Para ele, escrever poesia em tempos de crise é um ato político e de cuidado. “A poesia deve continuar espalhando beleza no mundo”, afirma. E não fala apenas da beleza estética. Fala da beleza como resistência. “Eu escrevo com responsabilidade. Falo do meu povo, dos branquinhenses. Não digo que os represento, mas é com eles que me formei.”
Minervino reconhece em Graciliano Ramos um mestre da sinceridade narrativa. Como ele, também prefere escrever sobre o que viu, viveu, sentiu. “Não sei inventar como Jorge Amado. Minhas histórias vêm da infância, de um tempo com menos telas e mais presença. Trazer esse mundo de volta é político. Não quero que ele desapareça.”
Quando perguntado se se considera um escritor alagoano, a resposta vem sem hesitação: “Eu só sei escrever sobre as minhas Alagoas: da zona da mata, de Maceió, do sertão. Nasci aqui e desejo ser enterrado no mesmo lugar onde repousam meus avós. Alagoas é a grande metáfora da minha poesia.”
E se suas raízes estão fincadas nesse chão, seus galhos também tocam outros escritores locais. Entre os que admira, cita Carlos Moliterno e seu livro A Ilha, além de nomes vivos como Sidney Wanderley, Natália Agra (Noite de São João), Richard Plácido (Homem-Gaveta), Breno Airan (Meio Chá de Pólvora) e Luciano Serafim (Sururu com Coca-Cola). “São autores que seguem escrevendo a partir do nosso chão, mesmo que às vezes estejam distantes dele.”
Entre canas, cheias e versos, Minervino segue fazendo da escrita um caminho para não esquecer e para devolver ao seu povo, em forma de poesia, tudo aquilo que recebeu.
O Leia Mulheres Arapiraca e a força da palavra que floresce no interior
É impossível falar de literatura sem lembrar que, antes de qualquer obra existir, há sempre uma escuta atenta, uma leitura sensível, uma comunidade que acolhe a palavra. Seja ela nascida da dor, da alegria ou da luta. Em Arapiraca, no agreste alagoano, o clube de leitura Leia Mulheres é um desses lugares onde a palavra encontra espaço para florescer.
Fundado em 2017 por três alunas da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL), o Leia Mulheres Arapiraca se inspirou em um movimento nacional com uma missão clara: ampliar o acesso à leitura de autoras mulheres e fortalecer, em comunidade, os vínculos entre quem lê e quem escreve. Desde o início, o grupo tem sido um espaço de trocas literárias, mas também de incentivo à produção. A escrita emerge como possibilidade real para mulheres do interior que, muitas vezes, nunca haviam se visto como autoras em potencial.
“Todo bom escritor começa como um bom leitor”, lembra Suellen Ketellen, atual mediadora do projeto. Ao lado das participantes, ela constrói encontros mensais que não exigem currículo literário nem erudição. Apenas a vontade de estar junto, de ler, refletir e, quem sabe, escrever a própria história. “A leitura e a escrita caminham juntas. É uma relação de retroalimentação. Quanto mais a gente lê mulheres, mais surgem ideias, sentimentos e experiências que pedem para ser escritas.”
Com encontros gratuitos e abertos ao público, o projeto se afirma como um espaço de formação literária fora dos grandes centros. O acesso ao livro ainda enfrenta barreiras estruturais e simbólicas em muitas regiões. E se ler no Brasil já é, por si só, um ato político, no interior do estado, a leitura coletiva torna-se resistência. Resistência à elitização da literatura, à invisibilização da produção regional e à ausência de políticas públicas que incentivem a formação de leitores e escritores.
Ao longo dos anos, o clube já passou por mudanças nos locais de encontro e no perfil das participantes. Mas mantém viva sua essência: democratizar a leitura de autoras e visibilizar vozes que a história insiste em marginalizar. Entre os nomes que Suellen recomenda, estão autoras alagoanas como Isis Florescer, Natasha Tinet, Jaiane Beatriz e Lari Nolasco. São escritoras que falam do erótico, da identidade, da militância e da subjetividade com lirismo e coragem. Hoje, ocupam lugar de destaque nas estantes e nas rodas de conversa do clube.
Mas o Leia Mulheres Arapiraca vai além da leitura. Oficinas de escrita criativa realizadas em escolas públicas e espaços culturais têm apresentado a estudantes a possibilidade de escrever sobre si com liberdade. “Usamos textos de autoras como ponto de partida para que as alunas e os alunos escrevessem sobre suas vivências. Foi tão potente que alguns terminaram participando de slams interescolares”, conta Suellen. A escrita, nesse contexto, deixa de ser algo distante e torna-se uma ferramenta de expressão, cura e autoria.
Neste Dia do Escritor, o trabalho do Leia Mulheres nos lembra que escrever também é um processo coletivo. Cada livro publicado começa no silêncio da leitura, no calor de um debate, no brilho do olho de quem descobre, pela primeira vez, que a sua história também importa. No interior de Alagoas, entre encontros pequenos e potentes, o clube transforma leitoras em futuras autoras, amplia repertórios e reforça que a literatura não nasce apenas nos grandes centros. Ela brota onde há escuta, desejo e comunidade.