Por Luís Laércio Gerônimo
No final do século XV, o escritor, poeta e humanista alemão Sebastian Brant, escreveu a obra “Nau dos Loucos”, uma sátira, que retratava de maneira irônica e crítica a forma como a sociedade do medievo enxergava os que eram considerados loucos ou desviantes dos padrões morais exigidos.
A “Nau dos loucos” era uma embarcação, lotada de pessoas que sofriam de transtornos mentais, que causava estranhamento e desordem na sociedade, por isso eram embarcadas e transportadas de um lugar para outro, sem destino certo, acreditando-se que o velejar nas águas e o balanço do barco, servissem de remédio para seus devaneios. Era uma forma que a sociedade encontrava para se eximir do cuidado e atenção, para com aqueles que
apresentavam comportamentos diferentes.
Entretanto,diferentemente do estigma e da marginalização da sociedade atual, no medievo, a loucura era considerada símbolo de sabedoria, mística e sagrada, e justamente por ser algo “do outro mundo”, não se ajustava a vida cotidiana, ordenada e comum – daí a necessidade de se viver errante e à margem da sociedade.
Mas a obra de Sebastian Brant é apenas uma metáfora, que séculos mais tarde foi revisitada pelo filósofo francês Michel Foucault, no seu livro “História da loucura” (1961), que nos provoca á reflexão – antes a loucura circulava pelos mares e oceanos, na Era clássica, foi aprisionada em hospícios e asilos. Para este filósofo, o aprisionamento nos
hospícios não foi um gesto humanitário, preocupado com o cuidado e atenção à saúde mental, mas sim um mecanismo de controle social, onde o Estado tinha total autonomia para controlar, vigiar e punir.
Recentemente no Brasil, no Estado da Paraíba, um caso chamou a atenção no tocante à prevenção e ao cuidado da saúde mental, onde o jovem Gerson de Melo Machado, 19 anos, com diagnóstico de esquizofrenia, mas ao que tudo parece sem estar em tratamento, adentrou numa jaula de uma leoa, em um zoológico, acreditando conseguir domá-la – e o desfecho foi trágico.
Gerson, apesar da pouca idade, carregou consigo uma história repleta de dramas, foi abandonado na infância, devido a problemas mentais da genitora e consequentemente acumulou diversas passagens em ambientes socioeducativos e presídios; o jovem foi assistido psicologicamente enquanto apenado, uma vez alcançado a maioridade e fora dessas instituições, foi largado à própria sorte.
A reforma psiquiátrica no Brasil tem avançado significativamente na área da saúde mental, através da Política Nacional de Saúde Mental e a rede territorializada dos CAPS, garantindo tratamento o mais próximo possível de quem necessita desse tipo de serviço, contudo, ainda há grandes lacunas que dificultam um cuidado contínuo, efetivo e extensivo para pessoas em condições extremas de vulnerabilidade, como o caso de Gerson de Melo
Machado.
“O jovem Gerson”, não foi apenas vítima de uma leoa, foi também de uma jaula invisível tecida por falhas sistêmicas, que se preocupa mais em punir do que cuidar; sua morte, evoca a “Nau dos loucos” contemporânea, onde a loucura é excluída sem o devido cuidado, perpetuando ciclos de prisões, ruas e tragédias anunciadas.
Urge, enquanto é tempo, entrelaçar saúde mental, justiça e assistência social para impedir que este naufrágio coletivo continue. Sem essa convergência, novos “Gersons” seguirão embarcando, involuntariamente, nesta Nau — condenados à deriva antes mesmo de terem a chance de ser salvos.
Diante de uma tragédia como essa, que causou uma catarse coletiva — deixo ao leitor a seguinte reflexão: o que dizer sobre nós, uma sociedade que permite que vidas tão frágeis naufraguem diante dos nossos olhos?
A tragédia de Gerson não é apenas um caso isolado, mas um espelho narcísico, e incômodo que reflete o nosso egoísmo; que nos devolve a imagem do nosso próprio abandono coletivo. Se a “Nau dos Loucos” ainda navega, é porque continuamos a permitir que a diferença, a dor e a vulnerabilidade sejam empurradas para longe de nós.
Convido-te, leitor, a pensar: que responsabilidade carregamos — individual e coletivamente — quando escolhemos não ver?
Somente, quando encararmos essa pergunta com coragem e altruísmo, é que poderemos, enfim, mudar o rumo desse barco.
Sobre o autor
