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Gênero, raça e patriarcado no Brasil sob uma perspectiva anticolonial

Coluna de Madson Costa

Refletir raça, gênero e patriarcado, considerando suas nuanças e diferenças históricas é base fundamental para compreensão do nascimento da sociedade brasileira. Dentro de uma perspectiva anticolonialista, repensar as estruturas do patriarcado, em escalas transcendentais, representa a introdução de um novo entendimento sobre as relações socioeconômicas, de gênero e raça como arranjos do colonialismo, ao passo que se prova fator chave para também entender as estruturas e relações sociais dentro da contemporaneidade no Brasil, além de sua essencialidade na concretização de um futuro humanista anticolonial. O passado colonial se integra na atualidade em forma de amarras pós-coloniais, do mesmo modo imperialistas, manifestando-se diretamente na formação das esferas de poder.

Nesse sentido, o fenômeno colonizador assume aparições divergentes em relação a outrora, assim, apesar de evidente, a manutenção do seu poder se dá por vias implícitas, ou seja, a imoralidade mercantil e política,  ou através dos resultados advindos de acontecimentos históricos que marcaram a formação do Brasil: a divisão de terras em grandes latifúndios, para beneficiar poucos, o enriquecimento oriundo da mercantilização dos povos escravizados, além da manutenção do poder político enquanto algo hereditário,  esses são todos fenômenos que partilham de uma mesma similaridade — são traços que privilegiaram limitadamente a construção da branquitude da elite colonial, que, hodiernamente, se constitui em três grupos principais: os coronéis do meio rural, a elite política e a burguesia urbana.

Nesse contexto, o patriarcado, fruto da herança luso-ibérica, domina as funções de liderança política, autoridade cultural e moral e o controle de terras. No entanto, quando se reflete acerca dessa problemática, não apenas se engloba erroneamente, ou apenas por mau-caráter, qualquer qualidade fenomenológica e fisiológica masculina, como também se esquece e rejeita a historicidade que constitui o homem negro. Esquece-se, muito em virtude da desatenção para com o debate anticolonial e a ausência de vozes representativas, que os corpos dos homens negros escravizados pertenciam aos seus donos (caucasianos senhores de escravo), como se fossem animais, até todo o processo de coisificação, desumanização — buck breaking, em um contexto mais amplo — e animalização da existência negra aparentam ser desconsiderados nesse debate. Ora, pois somente há uma única história: a história do patriarcado branco. Esquece-se que não há privilegio patriarcal enquanto sujeito-coisificado condicionado à escravidão.

Não há matriarcado nem patriarcado quando se refere a população escravizada, já que tanto homens quanto mulheres estavam submetidos à tortura, trabalho pesado, infinitas formas de violência e a negação do bem mais básico da condição humana — o direito de ser considerado humano — Grada Kilomba, importante pensadora negra, elucida ainda que “o homem negro, que é homem, mas não é branco, não tem acesso ao patriarcado, pois está definido pela branquitude e torna-o outro.

A mulher negra, não sendo nem branca nem homem, neste esquema colonial representa uma dupla ausência que a torna absolutamente inexistente”, em seu prefácio para “Pele Negra, Mascaras Brancas”, de Frantz Fanon, na versão da editora Ubu. Consequentemente, torna-se necessário refletir sobre o papel e condição da mulher branca diante disso, ao mesmo tempo que se deve questionar o quanto o identitarismo feminista consegue englobar a pluralidade de mulheres, e não somente as dores da femme de le 15e arrondissement. Refletir a posição que a mulher branca ocupou na sociedade colonial também é um passo inevitável para o anticolonialismo.

Quando se fala em desigualdade de gênero, que mulheres ganham menos que homem, há um equívoco nessa proposição, pois se imagina mulheres em sua totalidade, mas, na realidade, exclui-se que mulheres brancas ganham 27% a mais que homens negros, e, no geral, brancos ganham 78% a mais que negrxs e pardxs, como indicam os dados da pesquisa de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, publicada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2019. É necessário que se leve em consideração que há mulheres brancas em posições de poder na sociedade, por exemplo, no judiciário, com o STF (Supremo Tribunal Federal), no legislativo e até houve no executivo.

Nesse contexto, raça está ante ao gênero, o que demonstra a extrema desigualdade racial em relação aos salários, ao nível de escolaridade e cargos de poder. É necessário também refletir o racismo no feminismo, em um sentido que se haja tanto consciência de gênero quanto de raça e classe, ou seja, um feminismo anticolonial interseccional. Nesse ínterim, há uma relação de antagonismo dialético, em que a mulher negra se vê enclausurada na branquitude, formando-se em sua psique uma alienação que se manifesta em forma de inferioridade, onde se rejeita o ser-negra em prol de embranquecer-se, pois apenas assim se é amada e aceita. Essa relação histórico-afetiva se materializa como um método de defesa, como método para evitar a dor da autoestima roubada durante a escravidão. Cria-se a preferência pelo branco, para enfrentar a realidade, projetando-se no negro o ruim, enquanto se realiza um processo de introjeção de aspectos da branquitude.

Contudo, essa alienação do real é nociva para a ontologia negra, já que é acreditado que a única porta de saída é aderir ao branco. Deve-se desconstruir as amarras coloniais, assim, edificando a aceitação do eu. Quando não se ocorre o processo de alienação da psique negra, há outro fenômeno recorrente, em virtude dos padrões estéticos hierárquicos e afetivos, vê-se a mulher negra como objeto não passível de amor ou feição, em um processo que gera uma solidão coletiva dessa especifica categoria humana.

Mulheres negras são vistas como seres lascivos, apenas para a diversão, mas, apesar disso, quando não se atinge o padrão de negra voluptuosa, aquela que satisfaz os impulsos sexuais do homem branco, impõe-se uma exclusão afetiva, consequentemente, gerando uma solidão coletiva. Em vista disso, necessita-se almejar a transcendência da miserabilidade negra, para atingir a condição de consciência de si, de modo que se construa relacionamentos antirracistas, onde negrxs e brancxs tenham em mente o papel que cada um ocupa dentro das estruturas pós-coloniais. Portanto, para o branco, é fundamental que se pratique a reflexão acerca da experiência do racismo, por consequência, levando-o a sair do véu que faz com que esse fenômeno seja tão subjetivo para si e incompreensível para sua realidade. Nesse ciclo, para negrxs, o exercício da autoestima e a anulação de qualquer sentimento de inferioridade perante o que é branco surge como o processo objetivo para essa transcendência.

Em termos mais amplos, a questão de classe também é fundamental para o debate anticolonial, esquecem-se que o marxismo deve ser descolonizado, que, por muitas vezes, privilegiou o branco em detrimento da libertação dos oprimidos, apenas veja a atuação de Guy Mollet, ex primeiro-ministro francês e um dos principais nomes do socialismo francês, na guerra da Argélia. Mollet, contradizendo a tudo que prega o marxismo, com apoio da maioria esmagadora do partido comunista francês, autorizou a barbárie e massacre contra o povo argelino, que apenas buscavam libertação.

O ex primeiro-ministro socialista não somente corroborou com a barbárie em continente africano, como também, nesse entremeio, viu suas tropas conduzindo métodos de tortura contra os revolucionários argelinos. O resultado da Batalha de Argel foi a barbárie europeia praticada mais uma vez na África, em um processo desumanizante. Sim, os marxistas se contradizem, pois partem de experiências brancas.

Por isso, deve-se descolonizá-lo, de forma que luta de classes e luta anticolonial sejam uma só, pois os comunistas brasileiros teriam feito a mesma coisa que os franceses. O fato de grandes mestres como Aime Cesaire, Patrice Lumumba, Frantz Fanon, Du Bois, Léon-Gontran, Jacques Dessalines, Solano Trindade, Conceição Evaristo, Bells Hooks, Angela Davis, e Léopold Sédar não serem tão considerados como deveriam demonstra todo um projeto ideológico de esquecimento.

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