Texto de Esmeralda Donato supervisionado por Bertrand Morais
Em um cenário cada vez mais plural, os quadrinhos brasileiros têm se destacado não apenas pelo talento artístico, mas também pelo compromisso com narrativas que representam identidades frequentemente invisibilizadas. Dentro desse movimento, a produção independente tem ganhado força, abrindo espaço para criadores que abordam temas como identidade, ancestralidade e resistência. É nesse universo que se destaca Jean Lins, quadrinista alagoano cuja obra busca resgatar raízes, provocar reflexões e ampliar o repertório de quem lê.
Em meio a esse contexto, a Revista Alagoana entrevistou Jean e mergulhou na sua trajetória — da formação em Design Gráfico ao lançamento do seu primeiro quadrinho Dandara. Ele compartilha suas motivações, referências, desafios e a importância de contar histórias que dialoguem com a vivência negra no Brasil. Com sensibilidade e firmeza, Jean revela como os quadrinhos podem ser ferramentas de transformação social, reconstrução histórica e expressão pessoal. Confira:
R.A: Como você começou a trabalhar com quadrinhos e o que te motivou?
JEAN: Sou formado em Design Gráfico desde 2013 e, ainda na faculdade, já me interessava por ilustração. Trabalhei com isso por um bom tempo, mas foi entre 2016 e 2017 que voltei a ler quadrinhos com mais intensidade e me encantei, principalmente, com as produções brasileiras. Percebi o quanto eram ricas em estilo e narrativa. Foi aí que decidi tirar da gaveta um projeto antigo: Dandara. Produzi de forma totalmente artesanal, com muito esforço e aprendizado, e publiquei em 2019. A motivação maior foi a falta de representatividade negra nas histórias que li na infância. Eu queria criar algo que me fazia falta naquela época e que pudesse tocar outras pessoas também.
R.A: Você fala muito sobre identidade e reconhecimento. Por que escolheu trabalhar com ancestralidade e protagonismo negro?
JEAN: Acredito que toda pessoa que conta histórias, em algum momento, olha para o passado. E, quando esse passado vem com dor, é necessário transformar essa dor em algo poético. Vivemos num país que mal conhece sua própria história — e muito menos a história do povo negro e dos estados mais marginalizados, como Alagoas. Resgatar contos africanos e valorizar a ancestralidade é uma forma de reconstruir essa identidade, entender nossa cultura e pensar no futuro com consciência. Minhas obras tentam preencher esse vazio histórico, trazendo elementos reais dentro de narrativas ficcionais, como em Dandara, que, embora seja uma fantasia, aborda temas reais como a escravidão.
R.A: De que forma suas vivências influenciam o seu processo criativo?
JEAN: Minhas vivências estão em tudo o que crio. A gente carrega uma “mochila cultural” desde a infância, cheia de referências que moldam nossa forma de ver o mundo. Eu reconheço meus privilégios, como ter acesso à educação, e isso me traz um senso de responsabilidade: usar minha voz para alcançar quem não teve as mesmas oportunidades. As experiências, especialmente as mais dolorosas, acabam virando combustível para criar algo bonito e reflexivo. Dandara, por exemplo, nasceu durante um luto pessoal. No fim, acredito que toda obra tem algo de autobiográfico e só faz sentido quando encontra um leitor para completar esse ciclo.
R.A: Quais são suas maiores referências na hora de criar?
JEAN: Minhas referências são bem variadas. No cinema, por exemplo, gosto muito de Kleber Mendonça, pelos filmes que provocam reflexão sobre passado e identidade. Na arte visual, admiro artistas como Gerson Costa, Eduardo Medeiros, Raquel (do Amazonas), Rafael Calça e Felipe Melo. A música também me inspira muito — escuto trilhas que combinam com a energia do projeto em que estou trabalhando. Quando criei Dandara, ouvia bastante a trilha de Django Livre. Até as fachadas antigas do bairro Jaraguá me inspiram. Qualquer coisa pode virar referência: um filme, uma conversa, uma cena do cotidiano.
R.A: Qual o papel dos quadrinhos na construção da identidade e resistência, na sua visão?
JEAN: Os quadrinhos têm um enorme poder pedagógico, mesmo quando não são didáticos. Muitas pessoas aprenderam a ler com Turma da Mônica, por exemplo. É uma arte acessível, que mistura texto e imagem, e que pode tocar diferentes faixas etárias de formas distintas. Um mesmo quadrinho pode entreter uma criança e emocionar um adulto. Obras como as do Laerte mostram como os quadrinhos podem burlar censuras e educar sutilmente. No Brasil, o quadrinho independente é ainda mais potente por ser livre de grandes editoras, trazendo visões cruas e autênticas dos autores.
R.A: Quais foram os principais desafios que você enfrentou como quadrinista?
JEAN: Os maiores desafios são a distribuição e o acesso. O Brasil é enorme e descentralizado, o que dificulta fazer com que os quadrinhos cheguem ao público. Mesmo sendo uma linguagem acessível, ainda existe muito preconceito — muitos acham que o quadrinho é só para crianças. Além disso, há uma grande desvalorização da cultura e da arte como um todo. A produção é custosa e pouco reconhecida. Mesmo com boas parcerias e participações em eventos, como Bienais e feiras literárias, é difícil garantir uma presença nacional.
R.A: Como você enxerga o mercado de quadrinhos independentes na era da inteligência artificial?
JEAN: O mercado independente está, de certa forma, blindado. A maioria das pessoas que fazem quadrinhos independentes ama o processo, não apenas o produto final. As inteligências artificiais impactam mais quem está nas grandes editoras ou agências. No independente, muita gente faz quadrinho como segunda atividade, por paixão. O que mais preocupa é a desvalorização do processo artístico como um todo. Hoje, muitas pessoas preferem consumir o que é rápido e barato, esquecendo que arte também está nas ruas, na música popular, nos grafites. A arte é democrática por natureza, mas o sistema capitalista distorce essa relação.
R.A: Você participou do Circuito Amazônico de Quadrinhos em 2025. O que representou essa experiência para você?
JEAN: Foi uma das experiências mais marcantes da minha trajetória. Eu já participava de eventos em outras cidades, mas estar em Manaus foi especial. Além da organização impecável, foi uma troca cultural muito rica. Conhecer outras pessoas que compartilham da mesma paixão, visitar lugares incríveis como o Rio Negro, foi inesquecível. Me apaixonei pela cidade e pelas pessoas. Quero muito voltar e conhecer outros estados do Norte. Esses encontros reforçam nosso propósito, fortalecem a rede e mostram que nossa arte pode ir longe.
R.A: Para finalizar, que conselho você daria a jovens, especialmente negros, que querem entrar no universo dos quadrinhos?
JEAN: Não espere por permissão. Produza com o que você tem hoje — mesmo que seja papel e caneta. Compartilhe sua visão do mundo, sua história, sua identidade. O mais importante é começar, se conectar com outras pessoas, trocar experiências. O mercado é difícil, mas a arte tem o poder de abrir caminhos, transformar realidades e criar pertencimento. E o mundo precisa ouvir mais vozes como a sua.