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Messias Souza: a reverberação de uma inquietude interior

Atualizado: 31 de dez. de 2022

Usando o chamado das imagens e sua corpa, o artista visual LBGT+ e afroindígena alagoano fala sobre suas memórias e ancestralidades

por Anna Sales

Uma ONG na cidade de Canapi, interior alagoano. Ainda adolescente, Messias Souza fez parte dela e lá teve a oportunidade de fazer vários cursos, dentre eles o de fotografia e teatro popular. Em troca, realizava apresentações teatrais para as crianças de comunidades carentes na zona rural e fazia os registros fotográficos de eventos que a ONG realizava nas comunidades rurais e quilombolas do sertão de Alagoas.

Uma das atribuições desse projeto também era ser interlocutor entre essas crianças e pessoas de outros países que as apadrinharam. Ele era responsável por mediar essa relação de afeto através de cartas e fotografias entre as famílias das crianças e seus padrinhos. “E talvez seja justamente isso, que representa hoje a minha fotografia: uma ligação afetuosa entre dois mundos, uma ponte em espiral que nos transporta ao universo da saudade e do sagrado. Uma intimidade”, enfatiza Messias.

Ainda na adolescência, Messias começou a desenvolver um olhar mais autoral e sensível, que lhe levou a contemplar as paisagens naturais da caatinga ao seu redor. Houve um tempo em que gostava de fazer fotos de paisagens e do bioma da caatinga. Aquilo lhe fascinava, ver a beleza originária da caatinga florescendo, “o milho para o céu apontando, o feijão pelo chão enramando”, como cantou Luiz Gonzaga.

Aos 21 anos de idade, Messias se mudou para São Paulo. A paisagem da cidade, a arquitetura dos prédios imensos e luminosos na Avenida Paulista, não lhe atraíam. Ele parou de fazer fotos de paisagens naturais e começou a olhar para si mesmo, buscando encontrar algo valioso que pudesse ofertar para o mundo.

O fluxo de pessoas na cidade, esse sim, lhe atraiu, onde ele realizava ensaios urbanos de pessoas desconhecidas. Mas em 2014, o artista visual começou a trabalhar com idosos em instituições. Lá, conheceu pessoas que compartilharam com ele suas histórias de vida e o momento de sua passagem de volta para a matéria primordial.

“Com essas pessoas eu amei, aprendi a olhar para trás e saborear lembranças. Essa experiência me marcou tão profundamente, que despertou em mim o desejo em pesquisar sobre as velhices e, posteriormente, sobre velhices LGBTIA50+, o tema da ancestralidade. O resultado dessa minha curiosidade e admiração inicial por essas pessoas foi a minha primeira exposição fotográfica em parceria com a instituição. Ao me descobrir obcecado pela ‘gerontografia’ e o desejo de fazer registro de pessoas idosas e desconhecidas na rua, eu entro em crise criativa ao perceber que nesse processo de registro dos “anônimos”, eu estava fetichizando os corpos de pessoas em situação de vulnerabilidade. Comecei então a refletir sobre minha ética dentro da fotografia, me fazendo questionamentos como “em que situação as pessoas que eu fotografo se encontram e como essas imagens serão contextualizadas?”, conta.

Como resultado dessas  inquietações e reflexões acerca do uso das imagens, Messias decide então se colocar mais à frente das suas lentes, olhando para si mesmo e suas memórias, teorizando sobre os álbuns de família, usando sua corpa como suporte e substrato poético na criação dos ensaios. É nessa fase que ele se encontra agora: no campo mais teórico, pensando a fotografia expandida.

Encontro com o seu interior

Atualmente, o artista visual pesquisa seus álbuns de família. Ele cita que não foi bem ele que decidiu fazer a pesquisa, mas pelo contrário, aceitou o chamado dessas imagens, de memórias ancestrais que querem ser revisitadas, trazidas de volta para o momento presente e continuarem vivas. Em algumas culturas orais, como é o caso dos povos iorubás, ser lembrado é tão importante por que pressupõe a única salvaguarda de uma existência no futuro. Ou como diz o velho ditado “quem não é visto, não é lembrado”.

“Há ainda nos álbuns de minha família, uma lacuna quando procuro imagens de familiares mais antigos, como meus bisavós ou até mesmo meu avô. Ausência sobre a narrativa da memória de pessoas LGBTIA50+ e indígena nesses álbuns fotográficos. Pergunto: onde estão as imagens e memórias de pessoas afro indígenas e LGBTIA50+ dissidentes de gênero nos álbuns de sua família? Quais lugares são reservados para guardar essas memórias? Então o que eu faço com meu trabalho é denunciar essa lacuna e tentar preenchê-la com minhas ficções. Ora, restaurando a memória sobre a identidade étnica afroindígena de minha família, noutra, construindo novas imagens como uma garantia de continuarmos vivas.”, relata.

No início, Messias relata que sentiu um pouco de insegurança, por conta dos tabus  acerca do gênero, sexualidade e identidade étnica em sua família. Ele cita que alguns familiares carregam muitas cicatrizes coloniais, não querendo falar sobre e negando a origem indígena e a memória dissidente do avô, que era uma pessoas LGBTIA50+ afroindígena, falecido no ano de 2002.

“Raras são as fotos e memórias que consigo ter acesso em nossa família sobre ele. Como consequência de ser quem era, algumas de suas imagens, assim como suas memórias, foram rasuradas e silenciadas entre nós. Isso me causou um profundo medo de também ser esquecida pelas futuras gerações de minha família, de não ter um lugar para dançar na memória de minha ancestralidade. Medo desse apagamento reverberar em mim. Por isso eu comecei a perguntar, a falar sobre meu avô com os meus familiares, a mostrar suas pouquíssimas e raras fotografias para os meus sobrinhos e primos mais novos. Também trouxe de volta a memória e única imagem de minha bisavó Regina, mãe de meu avô, mulher indigíena cuja sua etnia, assim como outras informações, ainda é desconhecida por nós.”, conta.

“Bixancestral”

Messias vem desenvolvendo um conceito no campo da fotografia e das artes visuais intitulado “Bixancestral”,  a respeito da memória de pessoas idosas LGBTIA50+ e afroindígenas, mapeando memórias que foram eleitas para ficar de fora desses arquivos privados que são os álbuns de fotografia. A partir desse trabalho, ele quer que essas identidades e memórias que estiveram escondidas pela vergonha e esquecimento, ganhem protagonismo e o direito básico de continuarem existindo.

Esse  trabalho é fruto também do encontro com a ONG EternamenteSOU, primeira instituição do país voltada para a luta em prol das pessoas idosas LGBTIA50+ na cidade de São Paulo. Nessa ONG, Messias pôde conhecer muitas pessoas que, assim como seu avô, de alguma  forma também compartilham da exclusão de suas famílias e consequentemente, da mesma perda de pertencimento a sua ancestralidade e grupo de origem.

“Quando penso em álbum de família, me vem à mente muito mais que apenas um simples amontoado de fotografias antigas. Percebemos muito mais que aquilo que as imagens nos evidenciam, vou além: penso em tudo que o álbum deixou de nos mostrar. Penso na traumática experiência do não pertencimento para nós pessoas LGBTIA+ e afroindígenas quando estamos diante desses arquivos brancos. O Brasil é o país com o maior índice de violência e assassinato de pessoas dissidentes de gênero no mundo. Para os iorubás, a morte não é algo que acontece apenas no desencante e desmaterialização do corpo, por outro lado, para essa sociedade, a morte também se dá através da perda da memória que nos liga ao nosso grupo de pertencimento ancestral.”

Bixancestral é, portanto, um segredo desenterrado e ofertado. Uma plantação de novas memórias. Um eco Bixancestral que teima em retornar para o bailar das lembranças em meu corpo. Um risco que assumo nesta busca pela reinvenção, pela ruptura e pela produção de novas memórias e forças vitais que possibilitem a sobrevivência da identidade étnica afroindígena de minha família. A produção de uma nova página repleta de imagens, identidades e memórias diversas que honram a história das Bixancestrais, garantindo a existência de nosso legado para as gerações futuras.

Visual, Alagoas e ancestralidades

Messias é formado em Artes Visuais, e decidiu cursar a faculdade quando percebeu que seu fazer artístico não se limitava somente à fotografia e ao teatro. Em 2022, ele participou de diversas residências artísticas, dentre elas a Mira Latina Lab, em São Miguel dos Milagres, um projeto de pesquisa e intercâmbio artístico sobre a produção fotográfica latino-americana, desenvolvido pela curadora e fotógrafa alagoana Maíra Gamarra.

Apesar de participar de algumas residências e premiações, ele comenta que sente falta da participação de Alagoanos. “Geralmente, eu era o único alagoano participando. Isso me fez sentir um pouco só, quando em comparação com outros estados da região nordeste, como Ceará, Pernambuco e Bahia que contam com duas ou mais pessoas representando seus estados. O que me fez perguntar: onde estão as/os artistas de Alagoas? Penso que se organizar em grupos e coletivos independentes seja uma das principais estratégias para romper com esse isolamento a nível estadual dos nossos artistas e fotógrafos. Há que se estar sempre em quilombo para ficar atento e forte.”, reforça.

Em dezembro de 2021, Messias visitou a aldeia Katokinn pela primeira vez, junto de sua mãe, para participar do ritual anual conhecido na cosmologia Pankararu como “flechada do imbu” e “puxada do cipó”. Na ocasião, teve a surpresa de reencontrar uma prima que fez parte da infância, mas havia perdido contato.

Ao retornar para São Paulo, ele manteve contato e estabeleceu vínculos com a prima, além das lideranças jovens dos Katokinn e o Cacique Daniel. Em 2022, retornou para uma visita, mas dessa vez com a proposta de realizar em 2023 uma residência entre jovens indígenas fotógrafos das  5 etnias do alto sertão alagoano. A proposta foi bem aceita pelo Cacique Daniel Soares e a fotógrafa da aldeia Anawê Valentim, que se mostraram bastante entusiasmados com a ideia. E esse é o grande desafio de Messias para 2023: realizar essa residência em parceria com os parente Katokinn, trazendo o olhar e talento desses jovens fotógrafos, como uma maneira de demarcar seu espaço no campo da fotografia.

Mata Grande, Canapi e São Paulo

Até os seus 13 anos de idade, o artista morou com seus pais na zona rural da cidade de Mata Grande, em uma pequena comunidade conhecida como sítio Caldeirão, que hoje ele reconhece como um quilombo de pessoas afroindígenas. Muito do seu imaginário e lembranças vem da vivência nesse lugar, das plantações de mandioca no pé da Serra da Onça,  da colheita de milho e feijão, das noites na casa de farinha com os parentes torrando beiju, das benzedeiras desenhando símbolos pelo ar com ramos sagrados da imburana, da vida simples em extensão com a caatinga.

Já na adolescência, ele migra para Canapi, onde permaneceu por poucos anos, mas atualmente, é onde  sua família reside. Na fase adulta, ele foi morar em São Paulo com sua irmã mais velha, Edvaneide Souza, na periferia da Brasilândia, o que ele considera um grande quilombo da cidade de São Paulo, por ser um dos lugares com o maior número de pessoas negras, indígenas e nordestinas vivendo em diáspora.

“Apesar de fazer 10 anos que eu migrei para São Paulo, ainda sinto que essa cidade não faz parte de mim. Quando estou no centro sinto que sou engolido pela correria frenética do cotidiano que me consome, que me cega, que me faz esquecer que também sou natureza. Quando estou em São Paulo, sinto que estou alheio à natureza, distanciado. Quando retorno para Alagoas, para visitar meus parentes, esse sentimento é outro. Sinto que estou de volta à natureza e volto a conversar com ela. No filme Orí (1988) a historiadora Beatriz Nascimento vai dizer que “se sente grande e larga na presença de uma serra” e posso dizer que é assim que também me sinto quando retorno para a minha cidade: grande e forte.”, finaliza.

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