A cantora e compositora alagoana faz da música um ato de cura, denúncia e reempoderamento.
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais
A arte é um instrumento de denúncia, memória e reconstrução. Em meio aos retrocessos políticos, à violência estrutural e à negação de identidades, artistas têm usado a música como ferramenta de resistência e cura coletiva. Nesse contexto, o tambor vira grito, a letra vira afirmação, e o palco, território de reexistência.
É nesse contexto que caminha Mary Alves, cantora e compositora alagoana que transforma suas vivências enquanto mulher negra, periférica e LGBTQIAPN+ em canções que evocam ancestralidade, afeto e luta. Desde 2013, ela ocupa os espaços com a força do coco, do pandeiro e de uma poesia que não se dobra. Sua trajetória é atravessada pela política, mas também pelo amor: à sua comunidade, às mulheres negras que a cercam e à arte como ferramenta de transformação.
A Revista Alagoana entrevistou Mary, que falou sobre música, reempoderamento, desafios e a potência de cantar do lado de cá do sistema. Confira a entrevista:
R.A.: Sua música nasce de um lugar de resistência e ancestralidade. Como você enxerga o papel da arte, especialmente da música, na luta antirracista e no fortalecimento da identidade negra em Alagoas?
Mary: Minha música nasce da vivência no corpo, na pele e no território. Sempre foi um ato de cura e resistência. Em um estado com raízes afro-brasileiras tão profundas quanto as ausências de políticas para o povo negro, como Alagoas, a arte é grito quando tentam nos silenciar. A música é tambor, é quilombo, é travessia, fortalece nossa identidade e nos permite contar nossa própria história.
Com ela, celebro as mulheres da minha família, reverencio Exu e toda nossa ancestralidade, enquanto denuncio o racismo, o apagamento e as desigualdades que nos atravessam. A arte tem esse poder de mover, ensinar e conectar. Em cada apresentação, carrego minha história, o nome das minhas ancestrais e a juventude preta do meu Quilombo Urbano, o Jacintinho. É nesse encontro que o amor preto cura e a esperança vira movimento coletivo.
R.A.: Desde 2013, sua trajetória tem sido marcada por uma voz potente. Quais foram os principais desafios e conquistas que você enfrentou enquanto mulher negra artista nesse cenário local?
Mary: Ser uma mulher negra, periférica e LGBTQIAPN+ artista em Alagoas é encarar muitos “nãos” antes mesmo de falar. Desde 2013, venho quebrando barreiras que tentam nos manter invisíveis. Um dos maiores desafios tem sido ocupar espaços onde historicamente fomos negadas. Muitas vezes, fui a única mulher negra na programação ou precisei justificar a relevância da minha arte. A solidão e o racismo estrutural ainda são obstáculos constantes.
Mas também há conquistas potentes: ver outras mulheres negras e indígenas se inspirando no meu trabalho, lançar projetos como Amor Preto Cura e Os Quilombos Somos Nós, participar de festivais que valorizam nossa cultura e construir em rede com outras artistas periféricas, como no Coco das Aqualtunes e com Arielly Oliveira.
A maior vitória é continuar criando com verdade, mesmo quando o sistema tenta nos empurrar pra margem. Cada vez que uma de nós sobe ao palco, abre caminho pra muitas outras. E isso, pra mim, é revolução.
R.A.: A arte também é uma forma de reempoderar mulheres negras. Como suas composições dialogam com esse processo de reconstrução da autoestima e da valorização das nossas raízes?
Minhas composições nascem das vivências das mulheres negras que me cercam: minha mãe, minhas irmãs de caminhada, minha companheira, minhas ancestrais. Escrevo pensando na menina preta que fui e na mulher negra que me tornei, em meio a uma sociedade que tenta nos convencer de que não somos suficientes. A música, pra mim, é uma ferramenta de reempoderamento: ela nomeia nossas dores, mas também celebra nossas potências.
Quando canto versos como “Amor Preto Cura, não podem nos calar”, estou afirmando que merecemos afeto, liberdade e dignidade. Trago o tambor, o pandeiro, o coco, sons que nos conectam com nossa raiz, com uma identidade que fortalece o corpo e a autoestima.
Minhas letras são afirmações, gritos de autonomia e convites ao autocuidado. A arte tem esse poder de devolver o espelho que o mundo quebrou e, nele, a imagem que vemos é de realeza, resistência e amor.
R.A.: Você faz parte de uma geração que não dissocia arte de política. Em tempos de avanço do conservadorismo, quais mensagens você considera urgentes de serem ditas, e cantadas hoje?
Mary: Pra mim, a arte nunca foi neutra. Minha existência já é política, e minha música reflete isso em cada batida e palavra. Diante do avanço do conservadorismo, do racismo institucional, da LGBTfobia e do apagamento das culturas populares, o silêncio não é opção. Precisamos cantar verdades que incomodam, enquanto houver injustiça, nossa voz precisa ecoar.
É urgente falar de vida, dignidade, bem viver e pertencimento. Afirmar que corpos negros, indígenas, quilombolas, ribeirinhos importam; que religiões de matriz africana merecem respeito; que mulheres negras e LGBTs não vão mais aceitar viver à margem. É urgente denunciar o genocídio da juventude negra, a fome, a destruição da cultura e dos territórios.
Mas também é urgente cantar o amor preto, a liberdade de ser, o direito ao prazer e à celebração. Porque resistir também é dançar, sorrir, fazer festa no caos. O conservadorismo tenta nos apagar pelo medo e a música é minha resposta: coragem e beleza. Canto pra lembrar que o futuro é nosso, é ancestral, e será construído com batuque, afeto e luta coletiva.
R.A.: Em 2023, durante o Festival Carambola, você falou sobre a importância de espaços como esse para visibilizar a arte local. Passado um tempo, como você avalia hoje o papel dos festivais culturais em Alagoas na valorização de artistas negros e periféricos?
Mary: No Festival Carambola de 2023, falei com o coração sobre a importância de ocupar palcos que historicamente não foram pensados pra corpos como os nossos. Sigo acreditando nisso. Os festivais culturais em Alagoas têm um papel fundamental na valorização da cena local, mas ainda falta protagonismo negro e periférico, especialmente de mulheres negras, gordas e LGBTs.
Muitas vezes, nossa presença é simbólica, marcada por convites para “cumprir cota”, sem estrutura, visibilidade real ou continuidade. Não basta abrir o palco: é preciso garantir condições dignas, cachês justos, respeito às nossas estéticas e narrativas completas. Valorização não pode ser pontual: precisa ser política de base. Ao mesmo tempo, vejo brotar iniciativas potentes que nascem da força coletiva de mulheres negras, artistas LGBTs e de quebrada, que criam seus próprios espaços e festivais. Esses movimentos têm sacudido as estruturas.
Sonho com festivais onde nossa presença não seja exceção, mas regra. Onde a curadoria veja a diversidade como potência, não como vitrine. A arte preta em Alagoas pulsa, inova, resiste, só precisa de caminhos abertos. E, se não abrirem, a gente segue criando os nossos.
R.A.: De lá pra cá, muita coisa mudou no cenário e também na sua trajetória. Como tem sido a sua relação com o público nesses últimos dois anos? Você sente que a escuta para o que você canta e representa também amadureceu?
Mary: Nos últimos dois anos, minha relação com o público se transformou de forma muito bonita. Sinto que, aos poucos, as pessoas compreendem que o que faço não é só música, é vivência, é luta, é cura coletiva. A escuta amadureceu. Quando canto “Os Quilombos Somos Nós, somos Vivos Ancestrais”, não é só um verso: é uma afirmação que vibra, conecta e emociona.
Percebo um público mais atento à complexidade de ser uma artista negra, periférica e LGBTQIAPN+ em Alagoas. Há mais troca, mais afeto, mais reconhecimento da nossa estética e da nossa narrativa como algo essencial. Ainda enfrentamos silenciamentos, mas também estamos formando uma audiência que quer ouvir, aprender e se reconhecer no que cantamos.
Esse processo caminha junto com meu próprio amadurecimento. Hoje me entendo como multiplicadora, semeando com outras artistas negras um chão fértil de resistência e beleza. A caminhada continua desafiadora, mas o retorno do público, os abraços, as mensagens, os olhos marejados é o que me move. Porque a escuta que nasce da verdade toca fundo. E é aí que mora a revolução.