Expressões como o Côco de Roda e blocos de carnaval do Bebedouro sofrem com as consequências da mineração da Braskem em Maceió (AL); Ministério Público Estadual e Federal atuam na frente contra o desamparo aos artistas
A cultura folclórica de Alagoas é repleta de variedades culturais, são inúmeras manifestações, ritmos, cores vibrantes, comidas, tradições que formam uma história rica, transmitida pelos antepassados. Entre essas expressões que atravessam gerações, está o coco de roda, a quadrilha e o carnaval.
Com suas músicas cativantes e letras simples, a dança do coco é genuinamente alagoana. Entretanto, o Grupo Cultural do Côco de Roda Reviver, em Maceió (AL), vem enfrentando dificuldades para continuar levando a arte ao público.
O coletivo encara as consequências do afundamento do solo, causado pela mineração da Braskem no local. O Bebedouro, bairro sede do Coco de Roda Reviver, foi um dos cinco bairros atingidos pela atuação da multinacional.
Originado em 2000, o Côco Reviver é ligado à Paróquia Santo Antônio de Pádua e conta com 70 integrantes. Em 2018, perderam sua casa, precisando deixar o lugar às pressas, fazendo parte do processo de realocação das vítimas do desastre ambiental.
Sem o ponto de encontro oficial, o Grupo Reviver utiliza locais emprestados, no bairro de Ouro Preto, a 30 minutos da antiga sede.
Roberto Calheiros, presidente do grupo, explicou as dificuldades, especialmente em relação ao deslocamento de integrantes carentes, que enfrentam obstáculos financeiros para participar dos ensaios.
“O grupo é um pessoal carente, a gente tem muita dificuldade em relação à parte financeira porque eles não têm como ajudar, eles não têm como pagar a passagem do bolso deles. Então a minha maior dificuldade em relação a isso é trazer o pessoal para os ensaios”, relatou.
Apesar de receber convites de outros bairros para que a equipe se torne representante de suas comunidades, o Grupo Reviver deseja manter suas raízes e permanecer representando o Bebedouro, mantendo a relevância histórica do lugar viva.
O presidente tem intenção de preservar a identidade e as conquistas do grupo, mesmo diante da angústia vivida pelas vítimas da mineradora.
“Apesar de ter vários bairros que querem acolher o Grupo Reviver, fazem convites pra gente se tornar um grupo do bairro, pelo fato de a gente ser multi campeão alagoano. Mas eu não quero sair, eu quero manter no meu bairro”, disse.
Acordo Socioambiental
Após reunião com representantes dos grupos culturais do bairro Bebedouro, o Ministério Público de Alagoas (MP/AL) e Federal (MPF), acionaram judicialmente a Braskem, buscando medidas para preservar o patrimônio cultural afetado pela desocupação de imóveis.
O acordo socioambiental, firmado em dezembro de 2020, defende, além de outros impactos diretos e indiretos, a preservação do patrimônio histórico-cultural e de grupos culturais que estão à beira do colapso e/ou passando por dificuldades.
Ao concordar com o documento, a Braskem, de acordo com o texto, “se obrigou” a financiar investimentos para preservar e restaurar bens e imóveis, além de celebrar a cultura popular.
Com isso, o MPF afirmou o compromisso de criar e fomentar editais públicos de apoio à cultura e incentivo a grupos vítimas da mineração.
Os grupos são contemplados por meio de um Plano de Ações Sócio-Urbanísticas (PAS) – também garantido pelo acordo socioambiental com a Braskem, do qual é conduzido pela Fundação Municipal de Ação Cultural (FMAC) e pela Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SEMCE) custeado pela empresa.
Roberto Calheiros salientou a importância desse apoio, mesmo considerando que é pequeno, diante das necessidades do grupo.
“Depois de três anos na luta, muitas dificuldades, mas a gente conseguiu um apoio. Pra agora, um pouco resolve a nossa vida, mas a gente se preocupa com o futuro”, justifica.
O presidente expressou o desejo de manter o coletivo unido, a fim de superar as dificuldades, sonhando com um retorno às glórias passadas. O Grupo Reviver pretende continuar representando Alagoas em eventos culturais, mantendo viva a tradição do Côco de Roda e enfrentando os desafios com esperança de dias melhores para os artistas envolvidos.
“A gente precisa realmente se manter e depois voltar a ser o grande grupo que a gente era. Um grupo que conseguiu conquistar o alagoano. Um grupo que agora, em agosto de 2023, a gente foi representar Alagoas no Festival do Folclore. Inclusive, a gente vai voltar agora em 2024 para lá. Meu maior plano é tentar manter, não deixar esse grupo acabar”, comentou.
O Bloco dos Amigos também foi afetado. Com 17 anos de existência, os carnavalescos passeavam pelo bairro do Pinheiro. Devido às rachaduras que surgiram em imóveis do bairro, o organizador deixou sua residência e paralisou o bloco por alguns anos. Pouco tempo depois, o bloco chegou a fazer parte da principal prévia do feriado da cidade, o Jaraguá Folia.
As perdas das referências culturais vão além do patrimônio construído que pode desaparecer pelas rachaduras ou, como já vem acontecendo, por abandono. O chamado “patrimônio imaterial”, conjunto cultural, que inclui àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; além de lugares históricos.
Com o deslocamento da população dos bairros afetados, há um enfraquecimento dessas tradições locais, com existência relacionada diretamente com a territorialidade e proximidade geográfica da comunidade, já que os grupos eram formados por parentes e vizinhos, os quais foram realocados distantes uns dos outros, inviabilizando a continuação dessas tradições.
Em entrevista à Revista Alagoana (R.A), Paulo Jorge, organizador do bloco, contou que faziam o trabalho cultural com pessoas do bairro e dos bairros vizinhos.
“Tínhamos os comerciantes como parceiros e patrocinadores a qual nos ajudaram em todas as atividades do nosso bloco. Nossos integrantes e participantes das atividades estão morando em outros bairros e não é fácil fazer eventos para juntar as mesmas pessoas. Onde moramos atualmente a gente tenta fazer cultura, mas não temos a credibilidade que tínhamos no nosso bairro”, detalhou.
O bloco hoje tem a missão de ajudar moradores a seguir em frente com a vida e de manter os laços criados ao longo de toda a sua história. O bloco está marcado para desfilar este ano, 25 de fevereiro, onde pretende passar no Pinheiro mesmo estando em área de risco.
“O motivo é que nossos foliões pediram para ser lá para ser uma data onde possamos nos reencontrar e matar a saudades um dos outros”, finalizou.
Força Tarefa – Caso Braskem
No dia 17 de janeiro deste ano, uma reunião do Observatório de Causas de Grande Repercussão, formado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), reconheceu o esforço do MP/AL desde a instauração do caso Braskem, em 2018.
Desde que todos tomaram conhecimento da questão do bairro do Pinheiro, ainda em 2018, o Ministério Público de Alagoas criou uma força-tarefa para apurar a extensão do dano e tomar medidas de proteção não apenas à sociedade, aquelas pessoas que residiam, mas também ao patrimônio histórico e cultural.
Composta pelos promotores de Justiça José Antônio Malta, Jorge Dória, Max Martins, Jomar Amorim e Adriano Jorge, a iniciativa foi elogiada por atuar em ações preventivas diante do desastre.
A Promotora de Justiça e Coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos, Marluce Falcão, também conversou com a R.A e relembrou a abertura de um processo, mediante ao inquérito da Polícia Civil de Alagoas, para investigar os crimes contra os direitos humanos cometidos pela mineradora.
“Enquanto Promotora Criminal, ainda em 2019 eu requisitei a instauração de um inquérito policial para apurar os crimes de dano ao patrimônio público histórico e cultural mas também ao patrimônio de todos em particular, por ser um dano qualificado.”
Ela informa que houve uma reunião entre a Promotoria de Justiça e a liderança da Polícia Civil de Alagoas, para finalizar o trabalho, que também inclui a investigação de gestores da Braskem nos últimos 8 anos.
“Eu estive com o delegado geral da Polícia Civíl e ele já destinou uma comissão para finalizarmos essa apuração, para apontar todos os gestores dos últimos 8 anos da Braskem, que deram condição para que o crime viesse a acontecer, porque tivemos danos permanentes na sociedade, isso não pode ficar assim”, cobrou.
Lamentando toda a situação presenciada por grupos como o Côco Reviver, Marluce reforça a grandeza do problema. Ela relembra casos de familiares que deixaram o seio da sua cultura diária e que passaram a viver longe de vizinhos e amigos próximos, prejudicando a saúde mental de muitos.
“Aqueles que buscavam exatamente cultivar a cultura alagoana tiveram alocado os seus locais de manifestações culturais para diversos bairros e muitos deles perderam aquele vínculo que possuía com a sua terra de origem.”, relembrou Marluce.
Ela reconhece a dificuldade de transpor as barreiras de um bairro inteiro e reimaginar a vivência de uma comunidade que já não existe mais. Porém, a Coordenadora do núcleo de Direitos Humanos do MP/AL não perde a esperança de que com trabalho duro, as lembranças permanecerão vivas no imaginário coletivo dos maceioenses.
“Então, não podemos deixar essa história morrer. Trabalhar essa história vai ser um desafio para o Ministério Público mas que já foi instaurado pelo Poder Público para que medidas sejam adotadas de forma a que nós possamos reviver, restaurar todo esse consciente coletivo que é a cultura dos alagoanos”, finalizou representante do MP/AL.
*Por Gabriely Castelo, Rafaella Ramos e Raphael Medeiros