Texto de Lícia Souto
“Não ser culpada, humilhada, crime por ser mulher, não ser chamada de safada ou de uma qualquer. […] Não ser mais encontrada morta no carnaval, nem difamada como puta na rede social, afinal, isso não é normal. Quero ser dona do meu corpo, isso que é natural!”. As palavras fortes que compõe a letra crítica de “ELA”, publicada no Youtube em 2016, impactam o ouvinte porque reflete a realidade de inúmeras mulheres brasileiras. Já foi até mesmo a realidade da própria autora dos versos.
Durante a infância e adolescência, Arielly Oliveira – que à época era apenas uma jovem com interesse pela música – morou em um bairro humilde da capital e marcado pela violência, o que, segundo a cantora, moldou uma criança com baixa autoestima e sem perspectivas. Essa realidade resultou em alguns traumas que ficariam marcados para sempre na história dela. Vítima de assedio e perdas prematuras, ela conta que não conseguia expressar os próprios sentimentos.
Ainda na infância, algumas lembranças são vívidas e marcantes na memória da artista, como a época em que ela saia para ajudar a mãe que tentava sustentar a família vendendo sururu. Ela recorda que nesse tempo uma lata de sururu custava em torno de R$ 1,20, e as duas tiravam em média 10 latas por dia. O esforço pouco recompensado e as aflições do trabalho mexiam muito com o emocional da mãe de Arielly. “Víamos nossa mãe chorando muito, porque era um sofrimento, era cansativo e o dinheiro era pouco. Mas para a gente, na verdade, acabou se tornando uma diversão. Para mim, por exemplo, era uma oportunidade de mostrar o meu talento, eu cantava muito e todo mundo gostava de ouvir.
O lado ruim de catar sururu era porque não conseguíamos ter a higiene das unhas em dia. O sururu tem muito a ver com o meu primeiro contato com a música profissional. Eu lembro que no quarto ano da escola que estudei, a própria professora de música/artes passava de banca em banca para fiscalizar as unhas das crianças e eu morria de vergonha de mostrar as minhas mãos, era muito constrangedor pra mim. Infelizmente esses episódios me fizeram perder muitas aulas no Coral da escola.
Até que em 2007 teve o primeiro contato com o rap. Dali por diante, ser backing vocal começou a não parecer suficiente para Arielly, que não seria mais diminuída, desrespeitada ou calada. Ela precisava falar, precisava denunciar.
“Entender que eu podia ser a protagonista da minha própria vida/rima, foi quebrar muitas barreiras. O preconceito de ser uma mulher preta, o machismo que vivia dentro da minha própria casa, o abuso que eu sofria a respeito do meu corpo e voz, foram muitos anos para perceber. Passei por alguns grupos de rap, o último foi o Biografia Rap, um grupo formado apenas por mulheres, daí veio o entendimento do feminismo, a vontade de criar. Ali estava se formando uma nova Arielly. Costumo dizer que o BR foi uma escola pra mim, quando me senti pronta, fui criar algo meu, único e com minha história, que é semelhante a muitas histórias de mulheres preta por aí. Hoje sou Arielly que tem mais consciência sobre meu corpo e sobre meu poder de fala.”, declara a cantora.
Há seis anos lançou o EP ‘Negra Soul’, foi quando de fato iniciou sua carreira independente, com o primeiro trabalho solo que rendeu convites para apresentar o trabalho em outras cidades e estados.
Hoje, aos 34 anos, mãe de duas crianças e uma artista completa, dona de uma voz forte e presente, não hesita em cantar o que pensa e em fazer da própria voz, a de muitas outras mulheres estado a fora. Em oposição ao que costuma-se reproduzir nas falas, de que “Alagoas não tem nada novo”, Arielly faz parte de um cenário musical alagoano que está em constante renovação, efervescente e entregando interpretações e produções excepcionais.
“O Rap me escolheu, veio assim de supetão, quando eu me dei conta já estava envolvida demais e 15 anos se passaram. Ele me dá possibilidades de falar sobre tudo, é livre, não tem restrição, é político, é denúncia e além de tudo é um elemento. O Rap faz parte de um movimento próprio, não é algo que tenta se encaixar, o Hip Hop sem o Rap não é Hip Hop… É completo! Por isso insisto!”, explica.
Uma das primeiras referencias de Arielly no rap veio aqui da terra alagoana mesmo: Negra Pyll. Ela se recorda de olhar para aquela mulher preta que subia nos palcos da capital e cantava muito, era ousada, forte e única. Arielly almejava se tornar tudo aquilo.
Apesar de se espelhar em uma referência local e de ter participado de alguns grupos na cidade, a cantora reflete que ainda assim a cidade desvaloriza demais o próprio artista, em qualquer gênero musical, mas isso fica mais nítido para a música preta.
“Tenho péssimas experiências de alguns eventos que participei aqui. Porta do camarim na cara, cachê que não dava nem pra pagar o Uber pra ir e voltar do evento, falta de respeito com rapper mulher, pessoas querendo pagar seu show com lanche. Para cantar rap em Alagoas tem que resistir e ser persistente.
A gente faz um show foda, e quem é aplaudido em lágrimas de emoção é o artista de fora. A gente como artista independente tem que se esforçar muito pra que sua música seja ouvida, entendida e respeitada.”, desabafa Arielly.
Um dos trabalhos mais recentes da artista foi no Festival Carambola, ao lado do músico Jonathan Ferr. O convite veio no momento certo para ela, que estava parada há quase dois anos devido a uma pausa na carreira que juntou com a pandemia. Arielly recorda com satisfação a apresentação, juntar o rap com o trabalho do pianista rendeu um resultado lindo e interessante para os artistas que não se conheciam e para o público que pôde prestigiar essa união ímpar.
“Não abro mão do que eu aprendi com o rap, não abro mão de levar o rap do jeito que ele é de verdade. Enquanto a favela sangrar, enquanto mulheres pretas estiverem sendo mortas, caladas, o rap tem que ser cantado do jeito que ele é. Pois rap é cura. De onde vim tem muito mais de mim, de meninas iguais a mim. Eu acredito na música como libertação. A música já falou muitas vezes por mim. Parece ser exagero, mas nós, por vezes, somos vistas como extremistas falando sobre a realidade da mulher preta, né?! Eu aprendi que agarrar as oportunidades é privilégio pra quem até um dia não tinha voz. E eu não falo só por mim!”, finaliza Arielly.
Arielly é a capa desta edição da Revista Alagoana, pelo olhar da nossa editora de fotografia, Anna Sales.