Em meio à batida cadenciada do reggae, mulheres como Myrra mostram que criar filhos e arte, ao mesmo tempo, é mais do que sobrevivência — é resistência
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais
O reggae nasce em um contexto de instabilidade social, pobreza e desigualdade no século XX, tornando-se uma forma de expressão popular, especialmente entre as camadas mais pobres da população jamaicana. Com uma batida marcada pelo ritmo sincopado e pelas linhas de baixo profundas, o gênero rapidamente se destacou por seu estilo único e envolvente. Mais do que música, o reggae passou a ser um veículo de mensagens políticas, espirituais e de resistência, fortemente influenciado pelo movimento rastafári.
À medida que o gênero se consolidava, as mulheres também passaram a ocupar espaços importantes no movimento regueiro — muitas vezes enfrentando barreiras dentro de um ambiente predominantemente masculino. Artistas como Marcia Griffiths, Judy Mowatt e Rita Marley, integrantes do trio vocal I Threes, não apenas acompanharam Bob Marley em suas apresentações, como também contribuíram significativamente para a identidade e a expansão do reggae. Ao ocuparem palcos, estúdios e espaços de produção cultural, essas mulheres reafirmam o reggae como um território de luta e de representatividade — no Brasil e no mundo.
Entre as múltiplas camadas do protagonismo feminino, a maternidade surge como uma dimensão poderosa e muitas vezes invisibilizada da trajetória das mulheres no reggae. Ela não apenas influencia o conteúdo das músicas — trazendo à tona temas como proteção, legado, força ancestral e amor incondicional — como também fortalece a conexão dessas artistas com suas comunidades. Em um gênero que sempre teve a missão de transmitir mensagens de consciência e transformação, a figura da mãe regueira ganha um papel simbólico: guardiã da cultura, multiplicadora de saberes e ponte entre gerações.
A Revista Alagoana conversou com a cantora e compositora Myrra, referência no reggae alagoano, sobre sua trajetória, maternidade e o papel das mulheres no cenário musical. Confira:
R.A.: Quando foi que você decidiu ser artista do reggae?
Myrra: Na verdade, meu primeiro convite para cantar veio de uma banda gospel, numa igreja batista do bairro Pinheiro. Eu era do Novo Ouro, mas o reggae já fazia parte da minha vida desde a infância. Cresci ouvindo Jimmy Cliff com meus pais, que dançavam reggae em casa antes mesmo da minha mãe se converter. Então sempre tive essas duas influências: o reggae e a igreja. Na igreja, montamos uma banda de louvor com pegada reggae, chamada Restauração do Sistema — e foi ali que tudo começou profissionalmente.
R.A.: Pensando na sua maternidade dentro do mundo artístico: como foi viver a maternidade praticamente sozinha, sendo artista do reggae?
Myrra: Olha, se eu tivesse contado só com a arte pra sustentar meu filho, teríamos passado necessidade. A música sempre foi parte de mim, mas precisei ser versátil: também sou cabeleireira, gerente de salão, dei cursos… Tudo isso pra manter meu filho e continuar fazendo arte. Só agora, depois de 25 anos, consigo tirar algum retorno da música. No começo era só gasto, só investimento. Eu ia pro estúdio, depois voltava pro salão, fazia cabelo, dava um jeito. E assim, mesmo sendo mãe solo, consegui educar meu filho, vê-lo se formar, e ainda assim nunca abandonei minha arte. Resistir foi necessário — e contínuo.
R.A.: Você sente que o fato de ser mulher influencia na forma como sua arte é recebida no reggae?
Myrra: Com certeza. A gente vira militante sem querer. Ser mulher e liderar uma banda é um ato de coragem. Depois de cantar em várias, comecei a montar minha própria banda, escolher meus músicos. Nunca tive produtor, sempre foi na garra. E ainda assim, era preciso cuidar da casa, trabalhar fora, dar conta da arte, ser respeitada. Tudo isso sendo vista com desconfiança, porque o reggae ainda é marginalizado — e mais ainda quando vem de uma mulher preta, mãe solo. Mas eu insisto, porque sei que o reggae é ferramenta de cura, de denúncia, de espiritualidade. Como dizia Edson Gomes: “Mesmo que o rádio não toque, mesmo que a TV não mostre, aqui vamos nós cantando reggae.” E assim seguimos.
R.A.: De que forma a maternidade influenciou sua música e sua visão como artista?
Myrra: Ser mãe me trouxe uma maturidade que eu não conhecia. A responsabilidade por uma vida me fez repensar meu comportamento e minha arte. Quis ser um bom exemplo — não só para meu filho, mas para toda uma geração. Depois da maternidade, minhas composições ganharam mais cuidado, mais acolhimento. As palavras ficaram mais acessíveis, mais conscientes. A maternidade extraiu o melhor de mim e me fez buscar novos conhecimentos. Ela me dignificou profundamente.
R.A.: Você tem alguma referência feminina no reggae?
Myrra: Sem dúvida, Rita Marley. Ela é a rainha. Se Bob Marley chegou onde chegou, foi porque teve ela ao lado. O filme não mostra tudo, mas quem pesquisa sabe. Além dela, admiro Dezarie, que conheci na adolescência, e hoje vejo talentos da nova geração da Jamaica como Lila Iké — mulheres com ancestralidade e muita força. No Brasil, destaco Marina Peralta, Filosofia Reggae… Tem muita mulher na cena, mas ainda enfrentamos o machismo que nos invisibiliza.
R.A.: Você acha que há espaço suficiente para mulheres no reggae brasileiro hoje?
Myrra: Ainda é uma luta. Muitos homens não aceitam ver uma mulher liderando uma banda, sendo produtora, gestora da própria carreira. Sempre tentam nos descredibilizar, nos perseguir. E isso cansa. Já pensei em desistir várias vezes. Mas sempre aparece alguém dizendo que minha música tocou sua vida — e isso me faz continuar. A perseguição não vem só dos homens, infelizmente; às vezes as próprias mulheres, por conta desse sistema, acabam se opondo umas às outras. Por isso é tão importante a sororidade. Precisamos nos fortalecer mutuamente pra ocupar nosso espaço.
R.A.: Comemoramos o Dia das Mães e o Dia Nacional do Reggae quase juntos. O que essa celebração representa para você?
Myrra: É muito emocionante. Quase perdi minha vida uma vez em um show de reggae, e meu filho tinha apenas três meses. Eu estava amamentando. Houve tiros, correria, caos. E eu pensei: “Meu filho vai crescer sem mãe?”. Deus me deu uma nova chance, mas naquele momento eu quis desistir da música. Enfrentei muito preconceito, inclusive do meu pai, que temia que eu me perdesse nesse caminho. Mas hoje ele se orgulha de mim, e celebrar essas duas datas juntas é uma vitória. É a prova que consegui criar meu filho com dignidade, cantando reggae, educando, sendo livre.
R.A.: Você hoje participa do projeto Ensaio Aberto. Como tem sido essa experiência?
Myrra: Desafiadora e transformadora. Nunca tinha dividido meu palco com tantos artistas diferentes, todas as quintas-feiras, por quase um ano. Conheci histórias, lutas, talentos. Dei espaço especialmente para mulheres. Mas as vontades nem sempre combinam com as condições. Em Maceió, ainda falta estrutura e apoio ao cenário musical. Mesmo assim, construímos uma rede: passamos a cantar nos shows uns dos outros, sem depender de contratantes. O palco virou coletivo. Isso é bonito demais. E embora eu tenha personalidade forte, não gosto de brigar por espaço. Acredito que o universo é vasto. Minha luta é contra o sistema, não contra meus irmãos e irmãs de caminhada.
R.A.: Como você enxerga o futuro do reggae no Brasil e o papel da mulher nesse processo?
Myrra: O reggae está passando por uma renovação. Personalidades influentes estão se aproximando do estilo. O filme do Bob Marley, por exemplo, reacendeu o interesse pelo gênero. As pessoas estão buscando mais ancestralidade, espiritualidade, estão voltando para casa — no sentido de se reconectarem com sua essência. E nisso o reggae tem muito a oferecer. A mulher, nesse contexto, é essencial: ela traz equilíbrio, sensibilidade, força. É guardiã da vida e da arte. O papel da mulher no reggae é enorme — e só tende a crescer.
Ao falar de mulheres no reggae, é fundamental reconhecer também a maternidade como um ato de resistência, um gesto político e uma extensão da arte. É nesse cruzamento entre música, maternidade e militância que muitas artistas brasileiras constroem suas trajetórias, provando que o reggae continua vivo, pulsante e profundamente humano.