Na conversa, o artista relembra sua história, fala da relação com o público e explica como a palhaçaria transforma o cotidiano em cena
Por Mary Carvalho sob supervisão de Bertrand Morais
Os palhaços são figuras que atravessam gerações e, de algum modo, acabam marcando a infância – ou ao menos algum momento da vida – de quase todo mundo. Presentes em festas, escolas, praças e eventos culturais, são facilmente reconhecidos pelo nariz vermelho, pela maquiagem branca e pelos traços coloridos que ampliam o sorriso. Mas além disso, eles trazem uma crítica social por trás de cada “palhaçada”, que se manifesta nos gestos exagerados e que transformam os absurdos em reflexão.
Nesta semana do Dia Mundial do Palhaço, a Revista Alagoana entrevistou Henrique Nagope, graduado em Licenciatura de Teatro pela Universidade Federal de Alagoas, viu na palhaçaria uma forma de falar coisas sérias ao mesmo tempo que divertia as pessoas com sua persona: o Alfinete. Ele é membro e idealizador do Coletivo No Vermelho, grupo voltado para as artes circenses de rua. Também faz parte do Bora Circar, um encontro que acontece toda semana entre os malabaristas e artistas de rua de Maceió. Na entrevista, Nagope traz um pouco de sua história na palhaçaria, além de enfatizar a importância da arte, não só como ferramenta artística, mas social também.

R.A: Henrique, antes de qualquer coisa, nós gostaríamos de saber qual foi o momento da sua vida que você se apaixonou pela palhaçaria?
Henrique Nagope: Não consigo pontuar um momento específico. Sempre gostei de brincar e rir, acho que como todo mundo. Eu era a criança que queria se entrosar e frequentemente fazia piadas fora de tom ou fora de hora. Também tinha um humor muito particular e não me comunicava muito bem, a ponto de as pessoas nem sempre identificarem o que era brincadeira ou não. Quando entro para o teatro, oficialmente em 2011, começo a estudar e vivenciar muito as relações humanas, em exercícios nas salas de ensaios e a partir da observação cotidiana. Algo muda no olhar.
Em 2013, me mudo para Maceió para cursar Licenciatura em Teatro e vou me aproximando cada vez mais das artes circenses, especialmente do malabarismo e palhaçaria. Acredito que sempre houve uma tendência à cena e à comicidade, eu fui aprendendo a tornar isso um bem social. Divertir as pessoas e falar coisas sérias de maneira leve.
R.A: Você é especialista em Artes Visuais e graduado em Teatro pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Como a formação nessas duas áreas dialoga com a palhaçaria que você pratica hoje?
Henrique Nagope: Eu sempre tive uma relação muito íntima com as artes. São áreas que eu tenho interesse. Eu ensino as duas coisas, assim como também toco e ensino meus alunos a tocar alguns instrumentos. Inevitavelmente, essas áreas se complementam, e o teatro, a cena, bebe muito dessa fonte. Da junção de diversas artes. Os espetáculos do Coletivo têm muita musicalidade, com músicas autorais. Há um longo percurso na evolução de figurinos, cenários, adereços, marcações e movimentações em cena. Tudo isso é pensado esteticamente, além das intenções da cena, da mensagem, assim como o ritmo das falas e das movimentações. Eu acredito nessas habilidades e conhecimentos como ferramentas. E, com essas ferramentas, nós vamos resolver as questões que se apresentam (que são os problemas que nós mesmos, artistas, criamos).
R.A: Você tem raízes pernambucanas, mas sua formação e grande parte da sua prática se desenvolveram em Alagoas. Como esse trânsito entre estados que possuem culturas próximas e, ao mesmo tempo, diferentes, aparece no seu trabalho?
Henrique Nagope: É fantástico porque, hoje em dia, eu consigo ser rejeitado nos dois estados. Eu tive uma infância pacata e, apesar do interesse pelas artes, não podia participar de muitos eventos. Lembro que, quando criança, sempre que ia ao circo, montava com irmãos, primos e amigos apresentações na sala de casa. Isso em Pernambuco.
Quando venho para Alagoas, começo a conhecer mais eventos diversos, tanto aqui quanto nas idas ao meu estado de origem, e também em eventuais viagens a outros estados. Volta aqui o ponto da observação: as diferenças de linguagem, mas que, pela distância, a gente entende. Já quando se vai para São Paulo, por exemplo, eles ficam perdidinhos. Em algum momento, eu comecei a achar graça em causar essa reação de não entender, também. Mas isso não aparece muito no trabalho (mas aparece).
Aqui também comecei a entender os bastidores das artes, a aprender como sobreviver com essas habilidades muitas vezes desvalorizadas. Fiz muito malabares em farol, perna de pau em porta de loja, cuspi fogo em evento, executei trilha sonora de peça de teatro. Sempre observando as relações das pessoas, rindo do que ninguém mais via. Essas situações sempre aparecem em ensaios, ficam nas cenas. Por mais distinta da arte que seja a situação, a gente aproveita, representa, exagera. Muitas das cenas que o Coletivo já apresentou em festivais e eventos surgiram de intervenções de menos de um minuto, enquanto um farol não abria.

R.A: Você é idealizador e membro do Coletivo No Vermelho, criado em meio ao crescimento das artes de rua em Maceió. O que levou ao nascimento do grupo e o que ele busca fortalecer dentro das artes circenses e de rua em Alagoas?
Henrique Nagope: O Coletivo surgiu antes do nome. Eu já era estudante de Teatro e praticava artes circenses e José cursava Geografia, era estagiário do IBGE e eventualmente passava de bicicleta pelo farol da AV. Comendador Leão, em Maceió, onde eu costumava ir para treinar malabares enquanto conseguia um troco. Nas paradas para conversar, quando eu estava com outra pessoa, colocávamos José entre os dois malabaristas para trocar claves – os famosos passes. Por frequentar a casa que eu dividia com outros estudantes, todos de artes, ele foi aprendendo malabares, música. Certa vez eu estava indo para Recife fazer um curso de uma semana e chamei José para acompanhar, que respondeu que não tinha dinheiro. A solução foi irmos e consegui o dinheiro da passagem lá, no Semáforo. Ele sabia tocar a música Anunciação, de Alceu Valença, na escaleta, e sobre esse fundo musical, eu me apresentei. Arranjamos um figurino para ele e nas repetições começamos a inserir movimentações, piadas físicas.
Nessa época ele sabia fazer malabares com três bolinhas e o número que executamos com a escaleta “estragava” o instrumento, ao que de tempos em tempos precisávamos comprar outra. A ´última durou apenas o tempo de arrecadar o dinheiro investido e foi quando convenci José a entrar com um número de bolinhas, mesmo sem truques. Ele foi, relutante, mas deu muito certo e depois algum tempo esse número de trinta segundos era apresentado em eventos, com cerca de dez a quinze minutos. Criamos diversas cenas, no sinal, montamos outras de coletâneas de circo, clássicas. Estreamos o número “Nozes Caramelizadas” no V Balaio Circense em João Pessoa-PB, que depois se transformou no Espetáculo Frutas Tropicais Gourmetizadas. Pouco antes da Pandemia estávamos nos apresentando todo sábado no Corredor Vera Arruda (Maceió).
Em 2022/2023 aprovamos nossos primeiros projetos em editais públicos e começamos a levar espetáculos para regiões periféricas, especialmente de Maceió e região metropolitana (uma vez que resido em Rio Largo). Nossa ideia é levar apresentações artísticas a regiões onde não existem teatros, museus, nas proximidades e onde a incidência de pessoas que não tem condições de se deslocar para usufruir desses bens é bem maior que nas regiões nobres e centrais, ainda que existam eventos gratuitos. Buscamos, através de editais que usam verbas públicas, democratizar o acesso à arte.
R.A: Como professor de Educação Artística (no EJAI/Pestalozzi) e Monitor na Escola Biribinha, qual é a importância de levar a arte da palhaçaria e do circo para a sala de aula ou para contextos inclusivos?
Henrique Nagope: Na Pestalozzi, eu trabalhava muito mais as artes visuais e era perceptível o envolvimento dos alunos, o protagonismo que a arte trazia para as pessoas. Na Escola de Circo também havia isso. As crianças encontravam propósito nas atividades, desenvolviam o trabalho em equipe, disciplina, se envolviam num projeto a longo prazo, sabendo que, ao final do ano, teria a apresentação de encerramento. Na apresentação, apesar do nervoso, eles se sentiam vistos e reconhecidos. Foi muito lindo, no ano em que participei desse processo.
Eu dava aula de malabares e equilibrismo; não ensinava palhaçaria, lá. Mas os meninos percebem no jeito, nas brincadeiras. Teve três dos meus alunos que cismaram que queriam apresentar os malabares vestidos de palhaços. Aí lá fui eu arrumar a roupa e eles apresentaram, todos felizes.
R.A: O encontro semanal de malabaristas e artistas de rua, o Bora Circar, acabou virando um espaço de convivência e criação. De que forma esse encontro tem influenciado a formação da comunidade circense em Maceió?
Henrique Nagope: O encontro foi se moldando de acordo com os participantes de cada época. Ainda hoje tem um pessoal que mantém os encontros. Estava sendo na Praça Centenário e migrou para a UFAL, onde a maioria dos participantes estuda. Quando iniciamos, e por cerca de uns dois anos depois, formaram-se duplas e grupos de trabalho; participamos com shows de variedades em diversos eventos de Maceió, feiras colaborativas e na Feira Literária de Marechal Deodoro – FLIMAR. Produzimos eventos próprios, de aniversário do encontro, de Natal. Muitas redes foram criadas.
Na Praça da Faculdade, no início, muitas crianças se aproximavam para aprender artes circenses. Os encontros, em si, estimulam participantes já praticantes a evoluírem, a treinar mais por treinar junto, a compartilhar truques e experiências. Criar e fortalecer amizades.
R.A: Como você percebe a função pedagógica e terapêutica da palhaçaria? De que maneira essa linguagem pode atuar como ferramenta de resgate social, de alfabetização emocional e de enfrentamento de tabus e invisibilidades?
Henrique Nagope: Através da palhaçaria pode-se falar de tudo, e a comédia tem um poder maior de prender a atenção das pessoas, mesmo quando trata de assuntos pesados. Um palhaço, em primeiro lugar, precisa se conhecer. O estudo da palhaçaria vai buscar sua origem individual, antes de qualquer coisa: sua história, seus gostos e desgostos, suas feridas, seus instintos. Depois que você liberta o seu palhaço interior (que todos têm, escondidinho), o mundo nunca mais volta a ser o mesmo. Tudo passa a ser visto com potencial cômico, e visto de maneira crítica também.
Coisas que antes lhe estressariam muitas vezes deixam de tirar a paz para arrancar uma risada, mesmo que engolindo seco. O palhaço é um ser à margem da sociedade, que tenta se encaixar. Um palhaço está sempre atento a esses movimentos da vida e de si próprio. Perde-se o medo de errar. O erro é o maior trunfo do palhaço, e isso leva a pessoa que se dedica à palhaçaria a tentar muito, num mundo em que, por medo de errar, as pessoas deixam de fazer o que querem, o que gostam.

R.A: A criação de um palhaço é um processo íntimo. No seu caso, como esse palhaço se manifesta e se diferencia do seu “eu” do dia a dia? Quais elementos – como gestos, voz, figurino – foram essenciais para dar vida e consistência a essa persona em cena?
Henrique Nagope: O Alfinete tá o tempo todo querendo falar. Eu tenho que ficar administrando quando e o quanto deixo ele sair. Meu palhaço tem muitos aspectos do meu “eu mais social” exagerados, sem freios. Algumas respostas um pouco desconcertantes que, na vida normal, eu evito, o Alfinete responde antes que se possa pensar em outra coisa. Henrique observa tudo e cala, Alfinete fala. Não só fala, como tempera o acontecido, exagera, brinca com a situação.
Para mim, o essencial é “jogo”. É estar conectado com a plateia, mesmo que seja apenas uma criança que para para lhe observar fazendo algo esquisito, treinando malabares. Estar conectado com parceiros de cena, com o ambiente. Brincar com quem tá pra brincadeira e saber respeitar o espaço de quem não quer. Corpo e voz ativam automaticamente, chega um momento. Mas é preciso sempre estar voltando para os processos criativos, treinos, salas de ensaio.
R.A: Neste Dia Mundial do Palhaço, que mensagem você gostaria de deixar para quem vive a palhaçaria ou para quem está começando a olhar para essa arte?
Henrique Nagope: Um conselho que eu mesmo estou precisando ouvir: Não leve a vida tão a sério! Brinque mais, ria mais, se conecte mais com as pessoas. Tente, se desafie! E se for pra errar, erre alto, com classe. Se divirta!
Outra coisa! Ouvi, há uns tempos, alguém perguntar quem é o melhor palhaço do mundo. Depois de várias respostas, na tentativa de eleger uma figura internacionalmente reconhecida, a resposta veio:
O MELHOR PALHAÇO DO MUNDO É AQUELE QUE TE FAZ RIR AGORA!