Coluna de Emmerson Duarte
Denúncia e protesto são duas das características veias do coração pulsante da arte. É possível observar exemplos disso na literatura brasileira através de obras satíricas, como as Cartas chilenas de Tomás Antônio Gonzaga ou com os versos de Gregório de Matos, que adotavam uma postura crítica perante a ordem vigente e a realidade que observavam. É quase como se as obras de tais poetas escancarassem que somente através da estética e da ficção era possível lidar com realidade tão absurda.
A ironia da sátira era uma das ferramentas por excelência de Lima Barreto, que fazia uso de tal técnica literária em suas obras para criticar os problemas sociais do Brasil. Um dos seus livros que isso aparece de modo mais explícito é Os Bruzundangas, escrito em 1917, mas publicado somente em 1922.
Nesse livro, Lima Barreto se coloca no papel de um correspondente estrangeiro que vive na fictícia República dos Estados Unidos da Bruzundanga, descrevendo as características, costumes e práticas da sociedade daquela nação. Contudo, desde o começo da leitura fica evidente ao leitor que a Bruzundanga é um arquétipo do Brasil, e que, ao relatar acerca da fantasiosa nação, Lima Barreto está criticando as hipocrisias da elite política e econômica brasileira, ao mesmo tempo em que retrata o absurdo da situação do país.
Seria um imperdoável equívoco reduzir a obra a somente uma crítica ao Brasil da primeira república. Afinal, um país que no dizer de todos é rico, mas cujo povo vive na miséria, ou uma sociedade que é assolada pela proliferação de ideias feitas, não questionadas, e que se reproduzem através de generalizações que se espalham de uma cabeça a outra, são apenas alguns aspectos que nos são demasiadamente próximos para restringi-los a determinado tempo e espaço. A Bruzundanga de Lima Barreto é assustadoramente ressonante com nossa própria realidade.
Isso fica ainda mais escancarado quando é relatada a realidade política da nação. O autor nos conta que, após ser eleito, um político da Bruzundanga passa a pensar que é de carne e sangue diferente do resto da população, criando um distanciamento entre ele e a população que, supostamente deveria representar.
Essa situação de distanciamento não nos é desconhecida. Pelo contrário, ela fica escancaradamente mais perceptível em ano de eleições municipais. Representantes que querem se manter no poder, ou postulantes a chegarem lá, milagrosamente ressurgem a cada 4 anos, parecendo enfim se recordar que a capital não se resume a orla, e circulam pela região da lagoa, pelas grotas, pelas periferias e pelos bairros que estão literalmente afundando.
É fato que o pluripartidarismo permite várias candidaturas, algumas com propostas bem interessantes e com olhar diferenciado, inclusive compostas por pessoas não advindas das elites. Contudo, a injustiça social nossa de cada dia se reflete na injustiça eleitoral que não permite que tais candidaturas exponham suas propostas e teçam suas críticas de forma igualitária das campanhas dos milionários, ocorrendo assim uma corrida eleitoral injusta, que, inclusive permite que haja candidatos que sequer tiveram direito de ter espaço nos meios de comunicação para poderem realizar sua propaganda eleitoral.
Não há como não pensar na Maceió de 2020 quando Lima Barreto escreve, em 1917, sobre o sistema eleitoral da Bruzundanga, dizendo que as províncias não podem escolher livremente os seus governantes e as populações tinham que os escolher entre certas e determinadas famílias, aparentadas pelo sangue ou por afinidade. Além disso, é de uma comicidade trágica constar que o aspecto em comum entre os candidatos das mesmas velhas famílias é que eles vendem suas imagens como sendo daqueles que vão trazer a mudança ou a renovação. Ou seja, eles que governam a cidade e o estado há décadas, apenas trocando eventualmente de mãos de uma elite para outra, mantém um pacto silencioso de concordância que a situação não está boa e que não pode continuar do jeito que está. Mas mesmo assim, os filhos e netos dessas mesmas linhagens se colocam como os candidatos da mudança da realidade que suas próprias famílias detentoras do poder sempre negligenciaram.
Quando se lê Os Bruzundangas observando a situação contemporânea percebemos não só que Lima Barreto já vivenciava uma realidade como a nossa, mas que, no fundo, o Brasil de 1917 não é muito diferente do de 2020.