No Dia da Música e do Compositor, o artista delmirense reflete sobre sua trajetória, a cena cultural do Alto Sertão e a importância de fortalecer a cultura de quem vive e cria arte em Alagoas
Por Maryana Carvalho sob supervisão de Bertrand Morais
Criar músicas vem da habilidade de interpretar momentos e situações da vida e transformá-los em palavras escritas. A partir daí, nascem melodias, e o som transmite a sensação de imersão nas histórias contadas pelas letras. Para Caio Praças, nascido e criado em Delmiro Gouveia, compor também é um ato de “descaricaturar” as regiões do sertão alagoano. Dessa visão surgiram álbuns como Jardim das Delícias e Delírio Gouveia. Ele também foi finalista quatro vezes do prêmio de melhor videoclipe na Mostra Sururu de Cinema de Alagoas, conquistando a edição de 2021.
Além de compor e produzir suas canções, Caio assina todos os seus clipes. Neles, desenvolve uma estética diferente do que costuma ser visto em Delmiro ou em outras partes do sertão alagoano, geralmente retratadas como estéreis e “inóspitas”. Em comemoração ao Dia da Música e ao Dia do Compositor, a Revista Alagoana conversou com o artista para falar não apenas sobre seu processo criativo, mas também sobre os desdobramentos sociais em torno da cena musical alagoana. Caio atua na mobilização cultural do Alto Sertão e representa a região no projeto Agentes Territoriais de Cultura, do Ministério da Cultura.
R.A: Antes de tudo, quem é Caio Praças e como surgiu esse nome?
Caio Praças: Em 2013, eu procurava bater firme o martelo em um nome artístico. Na época, já era a quarta vez que eu mudava. Minha primeira sacada para essa missão foi: “quero que, quando alguém der um Google atrás do que eu faço, só exista eu”. Então, nenhum dos meus sobrenomes reais funcionava — já havia muitas pessoas referenciadas como “Caio Vinicius”, “Caio Cavalcante” ou “Caio Queiroz”. Então, eu pensei “de onde posso tirar um sobrenome legal?”. De um livro de História.
Na verdade, de qualquer livro da rede pública de ensino, pois, ao fundo da capa, havia o Hino Nacional e, logo acima, em letras miúdas, o nome de seus compositores. Um deles tinha o sobrenome “Estrada”. Essa ideia de ter um espaço físico no nome – um lugar por onde tantas pessoas passam, pela estrada – me tocou bastante. Daí, pensando e pensando, me veio a ideia equivalente de usar “Praça”. Gostei muito e contei para uma amiga que meu sobrenome artístico seria “Praça”, no singular, e ela sugeriu levar para o plural. Assim nasceu Caio Praças.
E é com isso que esse Caio Praças que vos fala se apresenta: um artista inconstante e inquieto, que insiste em trabalhar com uma linha autoral e acredita ter força suficiente para mudar, para melhor, a estrutura cultural vigente no Sertão e no Estado. Um artista que nunca desacredita dessa força, e que tem muita sorte de encontrar, pelo caminho, diversas pessoas que acreditam nela também.
R.A: Você pode contar como você se apaixonou pela música? Teve algum ponto de partida?
Caio Praças: Toda criança perto de mim ou queria ser jogadora de futebol ou ter uma banda. Eu sempre fui o “café com leite” do futebol, era péssimo, e só me aceitavam porque as mães obrigavam. Até mesmo na escolinha de futebol, meu único talento era saber imitar o apito do treinador, o que me fez, como zagueiro, levar uma pedrada muito forte quando fui driblado pelo atacante e imitei o apito, fazendo-o parar um provável gol que faria. Quando ele percebeu que fui eu, e não o técnico, quem apitou, pegou a primeira pedra que viu – infelizmente, uma pedra generosa – e lançou como quem malhava Judas. Futebol não era mesmo pra mim.
Mas, na verdade, me apaixonar pela música a ponto de trabalhar com isso foi algo que aconteceu na adolescência. Dois amigos – que conheci por meio das Cartas de Yu-Gi-Oh! – eram dois grandes talentos da música. Por sorte, eu, apaixonado por música, mas sem talento algum, fui aprendendo a cantar e tocar. E logo já estava como vocalista de uma banda nossa. Foi a prática da música que me fez acreditar que poderia realmente trabalhar com ela. Na época (2010–2012), houve a febre das bandas de garagem emo, e lá estávamos nós, no Alto Sertão de Alagoas, com franjas enormes, berrando músicas de dor de amor com guitarras distorcidas. Foi nesse processo que a música me escolheu.
R.A: Você nasceu e foi criado em Delmiro Gouveia. De que forma as sonoridades do Sertão, não apenas os gêneros musicais, mas o dia a dia, as conversas, as paisagens influenciam nas suas composições?
Caio Praças: Essa é uma ótima pergunta, pois sempre penso nessa região como algo intrínseco à minha existência e à minha experiência artística. Posso dividir essa vivência em dois momentos: o inconsciente e o consciente – que, no fim, sempre se misturam.
No inconsciente, está a força da convivência da infância e de como moldamos nossas percepções sem perceber. Cresci em uma família matriarcal, onde a palavra final era sempre da minha avó. Minhas tias e minha mãe, todas jovens, eram muito festivas e gostavam de músicas diversas – de Zezo a Alceu Valença. Os vizinhos também eram animados e cheios de vida. Talvez essa memória esteja um pouco idealizada, mas é muito marcante. Desde pequeno, eu era curioso e questionava tudo. Mais tarde, percebi que esses questionamentos estavam ligados a questões sociais. Cheguei a ouvir do orientador da Catequese que “Deus não gosta de quem pergunta muito”. Acabei desistindo das aulas, e minha avó apoiou a decisão.
Nas questões sociais, lembro com clareza do impacto das políticas públicas dos governos Lula 1 e Lula 2. Minha rua era rota de cortejos fúnebres, e os caixões dos “anjinhos” – crianças que morriam ainda no pós-natal – passavam com frequência. Era um evento que reunia todos na porta de casa para lamentar mais uma perda prematura. Com o tempo, vi isso desaparecer rapidamente, à medida que os postos de saúde e os atendimentos hospitalares se expandiram, junto com outras políticas de assistência.
Quando adquiri consciência para refletir sobre tudo isso, senti uma dor profunda ao perceber que, como sociedade distante dos grandes centros, nós mesmos nos subestimávamos – uma espécie de culpa coletiva difícil de digerir. Essa constatação me incomodou até eu aprender a organizar esses pensamentos e transformá-los em força criativa. Essa “paisagem” – tanto estrutural, das ruas e conversas, quanto espiritual, das fragilidades e memórias – está viva nas minhas composições, revisitadas com o meu olhar.
Esse mosaico molda o que faço hoje. Não vejo problema em misturar Brega, Rock ou MPB, porque cresci com todas essas referências. Minhas músicas falam de amor e de questões sociais porque nasci em um universo comum, mas muito específico – e ainda pouco explorado nas narrativas brasileiras.
R.A: Você costuma dizer que, em suas composições, busca “descaricaturar” as referências do sertão alagoano. Musicalmente e visualmente, nos seus clipes, como faz isso?
Caio Praças: “Descaricaturar” o sertão é, para mim, trazer novas perspectivas sobre uma região que, por muito tempo, foi representada de forma limitada – como um lugar de terra seca, carcaças de bois e miséria. Essa visão reforça a ideia de um “subterritório”, como se o sertão fosse sempre um espaço de falta. Por isso, experimentar novas sonoridades e incluir nas letras vivências pouco associadas ao sertão, reivindicando tudo isso como parte dele, é uma forma de provocar o público a lidar com esse contraste visual e simbólico. É importante dizer que não se trata de negar o sertão ancestral – ele existe, atravessa meu processo criativo e dialoga com as novas contrapartidas que proponho.
Em relação a Alagoas, percebo que a distância entre a capital e essa imagem ainda distorcida do sertão é muito grande. Falta conhecimento sobre o interior dentro do próprio estado. Lembro de uma corrida de Uber em Maceió em que o motorista ficou surpreso ao ouvir como descrevi o sertão de outro modo. Em outra ocasião, para ser confirmado como concorrente ao prêmio de melhor videoclipe, precisei assegurar que os Cânions do São Francisco realmente ficam em Alagoas – algo que, pra nós, é óbvio.
Quando apresento esse “outro sertão”, com seus questionamentos e vivências contemporâneas, sem recorrer às caricaturas, e afirmo que esse também é um sertão legítimo, sinto que arranho essa imagem cristalizada que ainda persiste. Assim, acabo ajudando a ressignificar quantos e quais sertões cabem na imaginação de quem me ouve.
R.A: Você tem um álbum chamado “Delírio Gouveia” lançado em 2022, que faz uma referência clara a sua cidade natal com composições como “Nuvem Lilás” e “Dói”. Pode explicar de onde veio a ideia do “delírio” e falar um pouco sobre as músicas?
Caio Praças: A ideia de Delírio Gouveia surgiu em meio a um rolê. As músicas já estavam gravadas, o conceito estético e narrativo também, mas ainda faltava o mais difícil pra mim: o título do álbum. Numa noite de sábado, estávamos reunidos – eu e alguns amigos – e entre eles, uma amiga do Sul da Bahia que já estava quase se tornando delmirense. Conversa vai, conversa vem, ela começou a comentar sobre o quanto estava empolgada com Delmiro. Em meio ao papo, soltou: “Essa cidade é uma loucura, é tipo um inferninho, Hell-miro Gouveia (hell do inglês,”inferno” mesmo)”. Na hora, um amigo respondeu: “Hellmiro Gouveia, não… Delírio Gouveia”. Eu dei uma gargalhada, bati na mesa e decidi ali mesmo: esse seria o nome do álbum.
As músicas representam minha primeira tentativa de “descaricaturar” o sertão, mas também de mostrar que certas questões sociais ainda persistem – como na faixa Trecho. Na musicalidade, fiz questão de assumir o Forró e o Brega, que sempre fizeram parte da minha escuta, e ao mesmo tempo explorar novas sonoridades. Então, Delírio Gouveia tem Forró e Brega, mas também mistura Synthwave com Axé (Dói), e experimentações com triângulo e agogô (Nuvem Lilás).
Nas letras, eu queria falar sobre amor, mas também precisava abordar algo mais social. Foi assim que surgiu Trecho, uma música sobre o êxodo contemporâneo dos jovens da cidade, que migraram em busca de trabalho durante o boom das grandes obras de empreiteiras no Sudeste e no Sul, na década passada.
R.A: Como é o seu processo de composição? Você se inspira em algo específico para criar?
Caio Praças: Quando a inspiração vem, eu fico muito grato e feliz, porque são momentos únicos e é o momento mais prazeroso de compor. A inspiração é muito importante no início da trajetória como compositor. Ela provavelmente será seu único recurso potencializador de suas vontades. No entanto, com o tempo, muita prática e estudo, você desenvolve as competências necessárias para não ter que esperar por ela.
Portanto, hoje, se me pedirem para compor sobre qualquer tema, tenho capacidade para pesquisar e produzir. E isso também é inspirador.
R.A: Como agente territorial da cultura, o que você observou sobre a cena cultural do Alto Sertão? Quais são as principais potências e as dificuldades?
Caio Praças: Sempre digo que, aqui na região, desenvolvemos nosso próprio ecossistema cultural, com pouca ou nenhuma relação com as demais regiões do Estado. Sei que isso pode soar um tanto prepotente ou até ignorante da minha parte, mas é o que sinto e percebo. Creio que, na época da linha do trem e da chegada de diversas pessoas de todo o Nordeste para trabalhar na Fábrica da Pedra, no início e meados do século passado, muitos encontros aconteceram por aqui. Fora isso, é como falei mesmo. Acredito que nossa principal potência está em acreditarmos – quase que inconscientemente – nessa autonomia. E, a partir disso, desenvolvemos meios de resistir e manter a cultura ativa e dinâmica. As dificuldades são as de sempre, como em qualquer lugar, onde santos de casa não fazem milagres – mas, ainda assim, vejo milagres o tempo todo.
R.A: Como você percebe a movimentação artística no Alto Sertão? Você acha que tem espaço, incentivo ou visibilidade?
Caio Praças: Sempre digo também que somos mais autônomos do que assistidos. Se tratando de Delmiro, há sim, nessa última gestão, um esforço facilmente reconhecível para atender as dinâmicas artísticas da cidade, mas ainda assim, estamos num ecossistema frágil de desenvolvimento cultural. Não conseguimos ainda desenvolver um ecossistema sustentável, e falo também da dificuldade de organização com outros setores que lucram com cultura como o comércio, a hotelaria e o turismo. Falta experimentar projetos, formas e, assim, chegarmos nesse tão esperado resultado.
R.A: Quais desafios você encontra ao produzir músicas e clipes independentes em Alagoas?
Caio Praças: São vários. Sinto que até os desafios geográficos e econômicos ainda são fatores que dificultam as produções independentes, que muitas vezes sobrevivem do intercâmbio cultural. Alagoas tem pouco mais de 3 milhões de habitantes e, fora da região metropolitana, há “cidades-ilhas”, onde quase não existe contato entre os fazeres culturais de uma e de outra. Isso acaba nos deixando à deriva dos próprios nichos e reduz a oportunidade de os próprios alagoanos se reconhecerem como parte de um Estado dinâmico e culturalmente rico.
R.A: Você venceu a Mostra Sururu de 2021. O que esse reconhecimento representou para o seu trabalho?
Caio Praças: Vencer o Sururu em 2021 foi uma reafirmação do sucesso do clipe Calçadão antes mesmo da premiação. Lembro o quanto ele impactou a cidade quando foi lançado. A resposta foi imediata: muita gente comentou o quanto se emocionou; pessoas que estavam fora da cidade há décadas agradeceram pela memória afetiva; houve muitos relatos comoventes, inclusive de lágrimas. Então, quando esse projeto – já tão celebrado localmente – venceu a Mostra Sururu e ganhou destaque nas mídias da cidade, foi mais uma camada de celebração e, acredito, também de autoestima para o próprio município.
Depois disso, houve um boom de produções audiovisuais. Muitos artistas me procuraram dizendo: “Caio, quero gravar um clipe, mas não quero um clipe meu cantando, quero com historinha, como o seu”.
Falando de mim e da minha carreira, foi nesse momento que o Estado – ou, pelo menos, o setor cultural mais ligado ao audiovisual – me descobriu. Isso abriu muitas portas, parcerias e contatos. Além disso, perceber na prática que era possível alcançar espaços que antes eu nem imaginava me deixou bastante inspirado a expandir meus horizontes.
R.A: Por fim, estamos celebrando o Dia Internacional da Música e, em breve, o Dia do Compositor. O que essas duas datas representam para você, que vive e respira a criação musical?
Caio Praças: Acho que essas datas são momentos para nos celebrarmos como artistas. São oportunidades de ocupar, no imaginário coletivo, nas mídias, nas escolas e em outros espaços, o nosso fazer artístico e nossas potências criativas.
A palavra que mais tenho usado ultimamente quando se trata de criação artística e musical é “autoestima”. Acredito que essas datas – e eu sou alguém que gosta e vê sentido nelas – são momentos de reconciliação e afirmação com o que fazemos, além de celebração da categoria musical.
Gosto dos efeitos que essas datas podem gerar, mesmo que para alguns pareçam ilusórios ou efêmeros. E gosto, principalmente, quando as mídias e os espaços de comunicação cultural se dedicam a aprofundar essas reflexões, ouvindo e celebrando os artistas locais, como é o caso da Revista Alagoana.