Texto de Nathália Bezerra
Nathália – Te escrevo e mando um abraço apertado junto antes da gente começar, gi. foi essa a sensação que tive nas várias vezes em que te li, e pude sentir a forma como a escrita vira um aconchego e esse lugar apertado pra onde a gente volta. vejo tua escrita com muito amor, em todos os cantos. quando não amor por algo, por alguém ou por uma saudade, é amor pela palavra ou pela escrita. me conta um pouquinho de como é pra tu que se desenham os escritos, os amores, o amor à escrita?
Giovanna – Recebo esse teu abraço apertado em momento tão oportuno, Nath. custei a te entregar uma resposta, mas, vindo aqui agora, prestes a te entregar qualquer coisa que eu não calculei num roteiro antes, venho te entregar meu coração e as palavras dele animadas em conversar com as suas. obrigada por me lembrar, através de uma curiosidade tão carinhosa, desse querer-mergulhar nos meus processos, sobre a coisa mais importante que eu tenho, que é esse romance inacabável com as palavras. é assim que se desenham os meus escritos, Nath, como você está lendo acontecer. hoje era o dia que eu tinha para fazer mais coisa e eu me assustei com o tanto de coisa que eu esqueci de incluir nessa lista. chorei que só agora à noite, parei há pouco. e me lembrei de você, e vim caminhando devagar até tu. cheguei aqui e você me convidou a ir contigo; a vir comigo. e cá estou eu. desenhando a minha escrita, derramando nela as lágrimas do que não consigo resolver tão veloz quanto gostaria. e me encantando com o seu carinho, com esse abraço apertado que você me deu logo na primeira frase e que parece que eu ainda estou sentindo.
Ai, Nath. acho que as palavras se desenham quando soltamos o lápis (também). como se desenham os amores, o amor à escrita? para mim, eles se desenham nos tropeços que eu dou com os espinhos que me machucam na vida, com as dores que eu não calculei ter no caminho, com minha coragem em encarar a ferida rasgada, com o que foge dos meus planos, que me encanta os olhos e eu preciso fazer alguma coisa. preciso sangrar, preciso traduzir meu corpo, preciso desenhar esse desejo que virou palpitação, então eu escrevo. os desenhos disso tudo cabem na palma das minhas mãos, na força dos meus dedos, na minha caligrafia, no meu conhecimento gramatical. cabem no texto que eu não imaginei escrever (e que, agora, eu escrevo, e só agora eu sei como está sendo importante escrevê-lo). e isso serve sobre a saudade. os amores. a poesia. a gente faz acontecer. e, também, sutilmente, ali acontece. aí a gente fica bestinha e sente. e deixa a vida desenhar (na gente, pela gente, por ela) também.
Nathália – É bonito tu dizer da tua relação das palavras como sendo um romance inacabável. por aqui começou a chover quando sentei pra te escrever. acho que a história das paixões são quase todas assim: renascendo, encontrando canto no peito pra continuar existindo. penso que é nessa poética dos encontros que a gente vive. e por falar em escrever como sendo esse romance inacabável, imagino que teu enamoramento pela escrita também tenha tido um início. me conta um pouquinho de como foi a hora que tu se deu conta de que havia, na palavra, um lugar teu pra amar? ou ainda, quando tu percebe que é a primeira hora em que tu sente o amor, seja por uma coisa, por uma sensação, por um lugar, por uma pessoa?
Giovanna – Difícil lembrar do começo desse romance com a escrita, Nath, difícil mesmo. acho que tem tudo a ver com a dificuldade com a qual eu me deparo toda vez em que alguém me pergunta quando comecei a gostar de meninas. eu não sei. lembro das sensações, de algumas meninas e que, em algumas épocas iniciais, eu não fazia ideia de que fosse paixão, eu nem pensava em beijá-las, tudo meio nebuloso (até ficar tudo nítido demais). na escrita, pelo menos, eu me lembro de começar a escrever sobre o cotidiano, sobre a fantasia do amor, eu me achava meio filósofa quando era mais novinha. pensava que eu sabia demais, mas sem qualquer teor ganancioso, sabe? eu acho que fiz de mim uma menina melhor a partir disso, e sei que, de alguma forma, isso se refletia nos textos que eu escrevia e lançava no Facebook (tudo começou por lá). sempre fui muito apaixonada. pela vida, pelas minhas amizades, pelo mundo, por conhecer mais de mim, e eu percebo que minha escrita foi se construindo a partir disso, do meu amor no peito e no resto do corpo. tanto é que, hoje, eu percebo que amo quando, em alguma nota do celular, algum verso de um poema, numa inspiração que vem para escrever, eu reconheço o rostinho de alguém, ou algo que eu adoro fazer.
Então, depois de me dar conta de que minhas palavras se moviam, especialmente, pelo amor e pelos afetos todos, eu me senti muito à vontade para colocar em palavras como eu sentia meu coração. esses começos, essas constatações são uma mistura de tudo, Nath, que eu sei que você sabe como é, tu, que sentes o mundo, que vive pelos pulmões. agora, é mais fácil perceber o amor de primeira hora: eu escrevo e, quando paro para ler o que estou escrevendo ou o que eu acabo de escrever, penso “eita, olha aí’’.
Nathália – Também me pego reparando em como as pessoas se tornam presentes nos textos antes mesmo que se pronuncie um nome. no cotidiano, no jeito de falar sobre algo que gosta, na voz, nos tons preferidos. acho que escrever tem dessas secretas lembranças sobre os detalhes de alguém e eu gosto de prestar atenção. agora, te lendo, vejo como na gente existe esse espanto e essa forma de olhar as coisas como se fosse a primeira vez, e sempre é. tem vezes que eu gosto de ir buscar cadernos e arquivos antigos, e a sensação de se reconhecer e desconhecer pela escrita é muito diferente de tudo. porque parece que mesmo em tempos diferentes, a escrita abriga a possibilidade de que eu me veja. tu costuma se surpreender com algo que escreveu, ou reencontrar algum texto não visitado há muito tempo e reparar em coisas que ainda não havia reparado?
Giovanna – Eu acho que, nesse meu exercício de observar a minha escrita ao longo dos processos e das fases da minha vida, eu tenho muito isso de não me reconhecer mais ali, naquela ideia que eu parecia ter defendido com unhas e dentes, naquele verso. uma coisa que eu acho muito curiosa é perceber que, antes, especialmente, antes de 2020, por aí, eu não tinha uma escrita tão fluida quanto agora, eu mais criava sensações do que conseguia sentir de fato, o desejo pelo sentir, a curiosidade por viver os cenários que eu criava. hoje, eu me reconheço, na minha atual escrita, pela visceralidade, acho que tenho uma relação mais íntima com o desejo, com o tato, sabe? eu reparo muito também que, antes, as coisas não dançavam muito sozinhas, eu meio que inventava uma coreografia na minha cabeça e escrevia a partir disso, como uma forma de direção, um norte.
Eu faço isso de um outro jeito, sinto que teve alguma virada de chave na minha vida, conforme o tempo, que foi esse divisor de águas, de poesia. percebo uns moldes, uns entraves, alguma tentativa de seguir daquele jeitinho sem fugir muito, uma vontade de projetar a beleza, sei lá. é doideira e é gostoso perceber que minha escrita se transformou no que ela é hoje, no jeito próprio dela de dançar (cada vez mais). é isso o que eu quero manter e que, principalmente, me surpreende quando eu revisito um texto passado falando sobre amor, por exemplo. o que o amor, de fato, faz com a gente é incrível. tira a gente do molde, né?
Nathália – Também acho que o amor mora no despreparo, nessa coisa que pega a gente de surpresa. ver o outro com esses olhos é uma escolha por esse desconhecido, tão íntimo. eu gosto da palavra intimidade. o jeito como ela passa nos lábios me faz lembrar de uma palavra grande, mas que se aloja num cantinho pequeno do corpo. sabe que enquanto te lia achei tão precioso isso do amor tirar a gente do molde. acho que amar a escrita é coisa parecida: se ama o movimento, esse ímpeto. também percebo como minha escrita muda ao longo do tempo, e como antes manias que pareciam necessárias hoje já não são. tu falou em outra palavra que eu gosto muito, que é visceralidade. é uma coisa que parece meio bruto, isso que vem das vísceras. ao mesmo tempo que é exatamente por isso que parece ser mais cru. veja só a coincidência: talvez mais perto das vísceras seja mais íntimo. explorar essa intimidade na face de um texto e entregar a um outro é também um ato de amor. tu já entregou um texto a alguém que tinha sido feito, especificamente, pra aquela pessoa? me conta desse ato (literal) de que se entregue um texto, de que se envie a um destino?
Giovanna – Vai ser lindo demais responder a essa pergunta aqui, Nath. inclusive, antes de tudo, queria dizer que eu fiz uma coisa… foi tão lindo o que você escreveu aqui em cima que eu precisei ler em voz alta para uma pessoa muito especial para mim (‘’você precisa ouvir isso’’). é para ela que eu tenho escrito grande parte dos meus textos. com certeza, no mundo, escrever e ler em voz alta para ela ouvir é uma das minhas coisas favoritas. eu sinto que ela é um presente, sabe? eu me emociono com cada verso que escrevo, cada poema que fica pronto. tem tanto dela, tanto dessa relação que é tão única, que se destaca tanto dentre todas as relações nas quais estive e que já vi. é um circuito lindo que a palavra percorre… nasce do que existe a partir do momento em que eu olho dentro do olho dela, surge como palavra, uma intimidade tão visceral (gostou? hahaha), foge do fôlego, vira um poema que me mareja o olho toda vez em que eu releio. eu gosto muito de escrever e presentear. das vezes que fiz isso com a minha mãe, no dia do aniversário dela ou para falar da nossa relação, foi lindo demais como aconteceu a resposta, a emoção em sentir que a pessoa se reconhece ali, que se sente amada, vista com carinho. é gostosa demais essa literalidade em entregar.
Nathália – (chega a hora em que conto segredos e quase sempre faço isso aos parênteses, tu vai ver ao longo dos dias como tenho essa mania. uso parênteses demais). eu costumo sentir essa primeira hora do amor em mim quando me vejo envolvida num frágil acolhimento. quando eu fico até não haver medo ou ainda quando eu fico, apesar do medo. com a escrita é a mesma coisa: me sinto frágil, mas me sinto abraçada na mesma medida. pra mim, acho que o amor talvez seja ter quem faça companhia aos nossos fracassos e acho que as palavras fazem aos meus. é bem como tu me falou ali: a coragem de encarar a ferida aberta. tem uns tempos que eu escrevi em algum lugar que um texto é feito fratura exposta e a gente, que escreve, vive só de carregar esses pedaços nossos. como tu sente essas tuas horas mais frágeis, na escrita?
Giovanna – Você escreve tão lindo que eu consigo entender quando insistem em perguntar pelo meu livro. eu te faço a mesma pergunta agora, moça, no começo de uma insistência que vai durar: E O TEU LIVRO? desde já, me reconheça no comecinho da fila para trazer um pouco de você nas minhas mãos para dentro da minha casa. eu me encontro nas tuas palavras como poucas vezes eu faço tão desse jeitinho assim. é muito bom. fico com vontade de copiar e colar grande parte das coisas que você diz, porque me identifico, eu me emociono, fico com vontade de ler em voz alta para as minhas amigas que têm um tato maior para a poesia. é brilhante a sua simplicidade dentro dessa grandeza toda com que você escreve, Nath. mas continuando. pensando direitinho, acho que, só depois de me conhecer mais, de me reconhecer dentro de um corpo social cheio de implicações e recortes, foi que eu fui entender melhor e me aproximar das minhas fraturas, das feridas abertas. a escrita como transcrição, como reconhecimento e abraço nas partes vulneráveis, no que existe em mim de mais difícil e doloroso, não reconheço como presente há tanto tempo assim. foi um caminho, um caminho cheio de muitas coisas, muitos atropelos, muitos remendos. mas me sinto muito feliz que, hoje, na escrita, eu consiga reconhecer espaço para visualizar e tratar desses cortes, dessas peles mais sensíveis, através do verbo, da poesia. é muito desse abraço que você falou ali em cima. é gostoso escrever para si, receber as palavras que vêm, reconhecer preciosidade nelas e, melhor ainda, perceber que elas vêm para você antes de tudo, então vem muito como um soro, como água que limpa. quando escrevo sobre essas fragilidades de alguma forma, eu busco encontrar conforto aqui dentro, alguma coisa que me dê um carinho, que me tire do desespero, que me abrace e me tranquilize para eu não tentar escapar das feridas passando por cima delas e me ferindo mais.
Nathália – Teu entusiasmo me contagia, mulher! é um carinho danado em ler que, de alguma forma, a gente vai se tocando mutuamente com esse encontro aqui. em breve quero te encontrar de perto também. me lembrei de uma vez que escrevi um texto junto com nathalia (marquei aqui o link se tu quiser ler), e lembro de ter dito à ela em algum momento que a gente escreve pra voltar ao nosso próprio nome. a gente escreve endereçada ao outro, mas tem vezes que a escrita vira esse regresso pra essa nossa casa,pro nosso corpo. é bonito demais te ler dizendo como esse entendimento do teu corpo foi criando esse jeito muito teu de escrever. ano passado eu ouvi algumas vezes sobre o significado de texto vir de tecido, tecer. esse ato de ir costurando as palavras, de fazer esses remendos na gente. dizendo isso, me lembro que eu tenho alguns textos desses, dolorosos, e parece que a escrita vira memória nessa nossa pele porque quase sempre eu choro como se tivesse acabado de escrever, ainda que não doa mais. mesma coisa acontece com textos que eu tenha escrito pra pessoas que amo muito, e quando releio parece que acabei de descobrir que um novo amor ainda acontece daquele mesmo jeito. existe algo teu, alguma memória dessa cristalizada em textos teus que te faça sentir tudo de novo?
Giovanna – Te escrevo de olhinho marejado, depois de um dia que foi bom e que também não foi tanto. marejado porque me emocionei com as tuas palavras e com o que elas me trouxeram. eu abri o texto e salvei para ler, pretendo me debruçar num dia mais tranquilo. curiosa para sentir daqui como se deu a costura dessas palavras de vocês duas, Nath. eu escrevi uns textos, depois de alguns anos de um acontecimento que me feriu inteira por dentro, quando eu estava no meu primeiro relacionamento com uma menina e acabou que a família não reagiu bem e a gente se perdeu uma da outra. os textos falavam sobre como eu ficava indignada com as pessoas que queriam me ensinar sobre o que era amor, que eu era muito nova para entender, sendo que tudo o que acontecia entre mim e ela era amor à flor da pele. quando leio esses textos que falam sobre esse afastamento, eu sinto muito ainda. de um novo jeito, mas sinto, eu me lembro muito, e tem vez em que aperta mais que o habitual. esse é um dos exemplos. foi o primeiro em que pensei e é o que, por enquanto, eu mais gostaria de compartilhar aqui contigo. um momento muito delicado da minha vida, que me feriu muito, que me rasgou. nossa, Nath, foi um caos. revisitar textos que eu escrevi sobre esse momento é sempre como sentir tudo de novo, uma vontade de combater aquilo, aquele absurdo todo…
Nathália – Chega a ser impressionante o jeito como as palavras também têm memória, né gi? para além da gente e das coisas que nos marcam no corpo, na pele, parece que o jeito como as coisas se escrevem também carregam junto o momento, o ato, a hora do silêncio. também tenho alguns textos dolorosos que me fazem chorar quando encontro, mas não consigo me desfazer deles. no fundo, eu gosto da sensação de poder ter esse relato, essa memória ainda em carne viva. obrigada por dividir comigo esse pedaço (e tantos) da tua vida. é com muita generosidade e gentileza que tu foi me deixando devagarinho chegar, no tempo que tinha que ser. fico feliz com o jeito como a gente se encontrou!
Giovanna – Nem me fala, Nath. este encontro aqui é um grande presente da vida. e que bom que a gente soube receber! memória em carne viva. lindo demais isso, pelo amor. dá para fazer vários títulos de livros com algumas palavras que você junta, parece que você bota na mão e oferece para mim. é tão gostoso e eu me identifico tanto, aí fica tão melhor. obrigada por se dividir comigo também, Nath. quando a gente se encontrar num abraço, durante o nosso café, ou um dos cafés (espero que sim), talvez a gente possa levar uma para outra esses textos que retratam essa vida na memória, o passado ainda presente de algum jeito que segue tocando. é bom lembrar de onde a gente veio, dos lugares pelos quais passou e olhar para o presente e reconhecer o que tem de melhor aqui e agora. tenho feito bastante isso aqui na nossa conversa, Nath. por isso, também, muito obrigada!
Nathália – é sempre lindo ver mulheres que escrevem dizendo em voz alta, usando os pulmões pra falar da vida. me emociona ver a delicadeza e a força com que a escrita parece ser um jeito de estar no mundo, de fazer uma morada na palavra. como foi/é/tá sendo pra tu o processo de escrever e deixar ir, deixar que outras pessoas conheçam teus escritos? te conto que comigo, é como se fosse minha hora mais frágil (mas ainda assim, é com fragilidade que aparece a coragem de não conseguir fazer outra coisa além disso, além da escrita). me conta?
Giovanna – “usando os pulmões para falar da vida’’. com certeza, Nath, uma das frases mais poderosas e bonitas que eu já li. nunca mais quero me esquecer dela. que beleza total! confesso que eu não sei o que te responder direito. ao mesmo tempo em que sinto que, para mim, deixar escrever e deixar ir é a parte mais fácil, depois, eu preciso lidar com o ‘’já foi’’, e não dá para controlar onde vai estar nem para onde vai. ainda assim, acho que minha sede maior de todas é para que leiam o que eu escrevo. que leiam que eu não quero sorrir hoje, eu quero chorar, o dia tá muito difícil, e eu que preciso dar conta. quero que leiam os detalhes que me deixam apaixonada, quero que se vejam diante das minhas verdades, que me conheçam. que me olhem e me conheçam. por muito tempo, precisei esconder partes minhas. escondi dos outros; mas nem percebi que, antes de tudo, antes de esconder dos outros, eu escondia era de mim. partes que precisavam de mim. decidi não me colocar mais nesse lugar, decidi tentar o tempo todo, quantas vezes eu precisasse. porque eu tinha me visto e tinha gostado do que via, queria que vissem, queria que minha beleza brilhasse em seus olhos. porque isso faz a gente olhar para a gente de outro jeito também. com o carinho que a gente encontrou em determinado texto, com aquela palavra de coragem que esbarrou na gente em tal verso. eu escrevo para me encontrar, para que me encontrem, então que me leiam, que me saibam, que se interessem pelas suas próprias coisas, seus próprios amores, suas próprias questões mal resolvidas. mas, em resumo, eu acho que jogar para o mundo me faz sentir que estou me colocando na pista para dançar. e, jogando o que a gente escreve no mundo, acaba que a gente tem a oportunidade de dançar com outras tantas histórias que também tomaram coragem para se jogar na pista assim.
Nathália – Teve uma vez que anotei em algum lugar: “escrevo como quem respira”. como se precisasse tirar as palavras do peito, localizar algum lugar no corpo pra escrita nascer dali. desde então me pego fazendo analogias com os pulmões até que um dia me lembrei que me contaram a história de que meus pulmões nasceram quase colados um no outro, a pele fina demais. eu não tinha me dado conta dessa lembrança na hora que te escrevi, e tu ter marcado que gostou dela me fez lembrar. o desejo de escrever para que as outras pessoas leiam é tão visceral e tão bonito, gi. uma vez ouvi que escrita só se faz com destino, ainda que desconhecido. a gente sempre escreve pra algum lugar, pra alguém. até pra nós mesmas. perdi as contas de quantas vezes só precisa ver algo escrito pra sentir alívio, pra tirar algo de mim. aquela sensação de que depois que escrever, passa. me conta como é pra tu nessas horas da escrita diante dessa necessidade (urgente) de que saia, da pressa de ir embora, de deixar que chegue em outro canto?
Giovanna – Nath, eu te li pensando em quantas pessoas eu conheço que escrevem e guardam para si suas palavras. você já deve ter escutado que o maior receio de todo mundo é se expor demais. de fato. compartilhar com o mundo parte do que a gente é por dentro é um risco. mas o que não é? é tudo. e quanta delícia e oportunidade surge quando a gente se lança assim, né? quando se reconhece enquanto alguém que sente sem medo de sentir, que é sem medo de ser. é tudo um risco, e que bom que a gente se propõe a corrê-los todos, assim a gente tem poema para fazer, coisa para sentir e história para contar. bom, eu reconheço que, no geral, eu tenho duas reações preponderantes sobre essa urgência de colocar para fora: ou eu me sinto muito aliviada de conseguir fazer para, depois, lançar, e me propor a fazer as trocas oportunizadas por essa partilha, ou entro em desespero porque sinto que tem coisa para sair, e eu quero que saia agora, porque eu quero que seja agora senão vai passar do tempo, aí eu endoido um pouco, tenho umas crisezinhas básicas de choro porque me sinto sufocada. mas é bom também para eu relembrar da fluidez das coisas, daquilo que nem sempre precisa estar sob o meu controle. mas que delícia que é quando a gente vai nessa fluidez das palavras e se joga para o mundo com os braços para o alto, ou com o coração sem muito peso agora. que lindo que é ser lida, ser atravessada, ser recebida bem quando a gente se joga assim, né, com tanta força, com tanto de si?
Nathália – Penso que, talvez, esse convite de que um texto dance com outras pessoas seja das coreografias mais bonitas de se fazer. há pouco tive a coragem de encarar esse processo de começar a publicar os meus. foi sim, feito um parto. me demorei muito. havia medo de mostrar as coisas que escrevia, de assinar meu nome, dizer do meu rosto, colocar o corpo nesse lugar. ao mesmo tempo em que escrever em outros lugares, seja no instagram, aqui na revista alagoana e na revista mormaço foram jeitos de me permitir e me autorizar a estar em trânsito, a movimentar essa necessidade e deixar que a escrita não seja um ato solitário, mas que possa tocar outras solidões além das minhas. talvez seja como se escrever fosse não permitir que nossas solidões estejam desacompanhadas. como é pra tu isso de encarar nossas solidões e as das outras pessoas quando se escreve?
Giovanna – Deve ser essa a minha parte favorita de todas. esse encontro das partes de todo mundo que se sente só de algum jeito, em algum formato. ali em cima, quando te falei do período tenebroso que eu atravessei pelas consequências do preconceito em relação ao relacionamento que eu mantinha com uma menina, posso complementar de cá a resposta da sua pergunta: fiquei incomunicável por alguns meses. peguei dois cadernos, que eu tinha encontrado no quarto da minha falecida avó, e escrevi poemas nos dois. enchi de textos e frases. cerca de 200 criações. ao mesmo tempo em que eu me sentia muito sozinha, por vários fatores da situação toda, eu me sentia amada por muita gente que me amava como eu era e torcia pela minha felicidade sempre. pensei tanto em quem atravessava situações como aquela sem amparo, sem condições de respirar. eu me sentia muito sozinha sem ela também. eu escrevi aqueles textos por mim, por aquele amor, por ela, por todo mundo que já foi machucado assim. meio que comecei ali a me juntar com a solidão das outras pessoas. a perceber como eu reagia à minha, o que ela significava, sabe, Nath?
Você já deve ter se dado conta de que, ultimamente, há não tão pouco tempo assim, eu tenho falado muito sobre carinho, a falta que faz às vezes, como bate um medinho, de vez em quando, de que a gente não receba um carinho tão bom e verdadeiro de novo. é impressionante como as pessoas se identificam com essas publicações. é massa possibilitar esse lugar para além de mim, além do que eu sinto, além do que me faz falta. perceber que a gente se move por coisas parecidas, que todo mundo fica mais feliz quando tem um denguinho de verdade, uma atenção genuína. é muito bom escrever, publicar e se juntar com as pessoas mesmo sem saber como isso se dá lá dentro delas. todo mundo quer companhia.
Nathália – É bonito também o jeito como, de algum modo, a identificação torna a solidão menos solitária. já te disse também como gosto do jeito como tu fala e escreve de jeito muito afetuoso, sincero e aberto com que tu se entrega na escrita. me fez lembrar de uma vez quando eu me dei conta como na escrita é um jeito de ser vulnerável, de se colocar em peito aberto na frente disso. é como se fosse um ato que chega antes de mim. antes de escrever, já era necessário antes me ver desprotegida. acho que tem em mim essa necessidade de primeiro deixar as vestes, deixar o ideal. parece que escrever tem dessas coisas de que se deixe despir, que se deixe despedir também. como isso te chega?
Giovanna – Suas palavras me fazem lembrar de uma das minhas temáticas favoritas para escrever sobre: justamente, a vulnerabilidade. que tem tudo a ver com esse despir, com essa despedida, né? eu me encontro muito quando escrevo sobre o quão perdida eu me sinto. quando não estou bem com a minha aparência ou com as coisas que eu produzo e eu coloco isso em palavras, é tão satisfatório perceber que essas coisas estão se encaminhando para algum lugar. ficar nua desse jeito permite que a gente respire, quase que um banho de cabeça em todas as partes que a gente precisa olhar com cuidado sempre. mas que, às vezes, por algum descuido nosso, por alguma força alheia, acaba que a gente tira o foco do que é tão essencial que se cuide.
Nathália – Quando tu vai escrever, costuma ter algum costume, hábito ou ritual teu antes? ou te costuma vir a escrita em tempos inesperados? quase sempre comigo é um susto. de repente, me vejo tomada por uma necessidade que eu nem sabia que tinha, que eu nem sabia que sentia. penso que às vezes a escrita tem seus jeitos estranhos de dizer de mim mais do que eu. como é contigo tua relação com esse momento, antes que um texto aconteça?
Giovanna – Puts, Nath! ler você falando sobre o nascimento da escrita me fez pensar que, parindo no “susto’’, como você bem disse, acaba que, entrando em contato novamente com um texto que a gente já escreveu, texto este parido num momento de pura emoção, de criatividade à flor da pele, ele se apresenta no formato como foi parido, por mais que a gente receba de outra forma, lendo sob nova perspectiva – que acontece sempre, natural. ou seja: tem texto que tem formato, textura, cheiro de lágrima. você lê o texto e você sabe que é um texto que chora. muitos nascem assim para mim, quando minhas lágrimas tocam uma na outra. eu achando que só fosse chorar pelos olhos… aí vem o coração e se junta com os dedos… e o trabalho em equipe está preparado.
Tem texto que tem formato de mulher, com seios, tem os cabelos cacheados, a pele macia, amarronzada, tem texto com cheiro de sexo, de primeiro beijo, de desejo com medo de não ser amada de novo. porque nasce da expressão do coração. eu sou muito visceral, sinto os textos sendo expulsos pelas minhas coxas, sinto como se saíssem nos sussurros dos flertes que eu dou. eu costumo sentir meu corpo antes de escrever e durante a escrita, desse jeitinho mesmo que você escreveu que funciona contigo também, sendo pega de surpresa por uma necessidade que sobe de um jeito… como a vontade de fazer xixi, de beber água, de abraçar alguém especial no dia do seu aniversário. eu acho que o texto vem e eu vou junto!
Mas e você, Nath? me conte um pouco mais da sua relação com as palavras… você escreve há muito tempo? sempre foi de compartilhar seus escritos? acaba que eu não consigo acompanhar muitas pessoas que eu sigo no Instagram, e admito que, quando fui rever seu perfil, fiquei um tanto abismada/em choque com o match que eu dei com sua maneira de escrever. eu fiquei admirada, porque já te seguia fazia um tempo e não me lembrava de te ver compartilhando assim, dum jeito que me deixasse sentindo tão representada, sei lá. como você põe suas palavras para fora é gostoso de receber do lado de cá, viu? ainda mais com essa fusão de imagens, fotografias, cores. eu acho tudo, de verdade. me conta como é para você tudo isso, desde quando é assim?
Nathália – Pra mim acho que é feito a história que te contei dos pulmões: é pra continuar viva. é engraçado tu ter feito essa pergunta porque ultimamente tenho revisitado alguns textos e fotografias que fiz dos últimos dois anos e parece uma viagem. a escrita me acompanha há tempos, desde que fui aprendendo essa mágica de juntar sílabas, de fazer um som. desde então, guardei vários cadernos, mantidos sempre em segredo. a fotografia chegou devagar, e era o jeito que eu guardava saudade. curiosamente, só foi com o susto da pandemia e com a tentativa de encontrar outras línguas diante da angústia que comecei a experimentar essa mistura entre fotografia e escrita. agora sigo na tentativa de desgrudar das imagens visuais pra tentar deixar o texto criar imagens com as palavras. meus textos agora são mais curtos que antes.
Sinto que a verborragia foi dando lugar à um outro exercício que tenho tido que é bordar cartões postais, em que preciso dizer em poucas palavras. tento escrever com linha e reconhecer as letras pelos buracos que elas fazem no verso. acho que a escrita vai criando outros jeitos na gente de viver dentro desse mesmo corpo, e é lindo tu ter me feito essa pergunta. acho que desses tempos todos, do início pra cá (e ainda acho que em se falando de escrita, o começo se reinventa), ainda guardo a vontade de quem olha no olho de um abismo com a ânsia de ir. quero saber também como foi pra tu o teu começo com a escrita, com teus jeitos de dizer, com tuas formas de exercitar teu olhar e teu sentir quando vira palavra. quando tive contato com teus textos, a primeira coisa que me vêm de imediato é a sensação de sentir vontade de agarrar tuas palavras com os dedos, de imaginar a forma como teu texto inventa caminhos por onde passar. sinto que tua escrita é também um tanto sensorial, ou se é a sensação que provoca em mim pela ânsia de tocar um texto, de ver uma palavra virar matéria. quero saber de tudo que te vier com essas coisas todas, me diz?
Giovanna – Lá em cima, antes de te ler aqui embaixo, eu delineei um pouco sobre como se dá, dentro e fora de mim, esse processo de observar, sentir e escrever. inclusive, reitero que sua escrita é um bordado que dá vontade de tocar também, de passar na pele. eu tenho escrito muito sobre a pele. nos últimos tempos, na minha relação com meu corpo, com a minha cor, minha ancestralidade, com meu amor por mulheres também, as palavras têm se montado de texturas, de cheiros, de toques. eu acho uma delícia que você tenha feito essa observação sobre o texto sensorial que você encontra quando me lê (e que eu acho lindo, lindo mesmo, que seja tão recíproco assim, porque é o mesmo que eu encontro quando leio você). depois daqui, espero que a gente se esbarre em algum lugar, ou que dê certo agendar um café e fazer acontecer de fato, para a gente construir novas linhas na vida. você é uma pessoa valiosa e eu sinto isso desde antes do convite que você fez para estarmos aqui. depois daqui, então, tem sido lindo continuar descobrindo você e, junto com isso, com todo esse movimento que você é e que você faz, eu tenho descoberto um bocado mais de mim também, revisitado o que me faz sentido, sentir as coisas, sabe? que experiência boa sentir você, Nath, e tudo isso. eu sempre tive muitas angústias na vida, mas a alegria também sempre foi minha companheira, então eu percebo isso na construção da minha escrita, uma dança entre a dor e o prazer, um ritmo que nasce daí. como conseguir tocar todas as coisas, como ser furada por um espinho e não me deixar paralisar ao ponto de temer tocar outras flores, sabe? vem muito daí. e, dada toda essa intensidade, eu sinto que sangro mesmo nas palavras que coloco para fora, sinto que faço as letras sorrirem uma do ladinho da outra, e acho brilhante perceber isso acontecer de dentro para fora (de mim) e receber de fora para dentro também (a partir de você, do seu olhar, do seu tato).
Do mesmo jeitinho com que você toca minhas palavras daí, tenha toda a certeza do mundo de que eu faço o mesmo com as suas. mais uma razão para me identificar tanto com a leitura de você: suas palavras vestem pele, suam, dançam. cada palavra sua é um convite para alguma coisa. eu sinto isso daqui, Nath! e tenho certeza de que todo mundo que tem a chance de te ler/observar/tocar sente algo nesse mesmo sentido. você é pele pura!
Nathália – Te escrevi um pouco antes dessa mesma vontade de que a gente se encontre, também, presencialmente. é tanta coisa que me provoca esse encontro (ainda virtual) contigo, que me dá essa mesma sensação. daqui, te lendo e te escrevendo, parecia que a gente já se conhecia. é boa a sensação de sentir essa abertura, esse convite à intimidade. sinto isso te lendo, e vendo nos teus textos o jeito como tu se entrega e se lança pra vida. uma das coisas que mais me encantam na escrita é a possibilidade do toque e eu gosto do jeito como ao longo da nossa conversa, isso foi acontecendo o tempo inteiro. acho bonito quando tu fala da escrita como essa dança entre a dor e o prazer, porque comigo é também desse mesmo jeito. a dor e o prazer feito um par, e ainda bem que é assim. costumo até pensar em como esse exercício da escrita me faz ter mais intimidade com os momentos de solidão, de dor e de prazer. é como se tudo fosse aumentado até diminuir de tamanho. escrever vai me trazendo uma repetição necessária pra que nem a dor nem o prazer sejam infinitos, e acredito que não tenha nada tão humano quanto tentar fazer essas duas coisas coexistirem. tem um poema da mar becker que diz: “o corpo onde amo é o corpo onde falto”. acho que é por isso que me enlaça tanto esse amor pela escrita: é onde consigo me ver mais longe de um ideal. mais crua, sabe? é nesse mesmo corpo que falta e por ter brecha, dá pra escrever sem que se tente preencher esses espaços da gente. te agradeço por deixar espaço pra que essa falta se sustente e que exatamente por conta disso, a gente continue escrevendo uma à outra.
Giovanna – Desta vez, te ler me fez lembrar do livro ‘’a parte que falta’’. que eu ainda não li, mas vidrei na leitura que Jout Jout fez no canal dela. adoro lembrar de como eu me senti bem quando me dei conta de que alguém tinha decidido fazer o favor de me dizer que essas lacunas existem dentro de todo mundo – e que nunca, nunca mesmo, todas elas terão como ser todas preenchidas. e que não há o que se lamentar de todo. porque: quanto mais canto vazio, mais espaço para escrever também, para se demorar. e que bom que a gente aproveita a consciência disso, esse lembrete que, às vezes, precisa vir de fora, para escrever uma para a outra, para sentir os espaços preenchidos, para aproveitar quanto espaço tem para dançar e respirar nas brechas onde existe nadica de nada, onde dá para inventar um mundo novo até, rabiscar novas palavras, escrever um novo livro. e, cada vez mais, preenchendo espaços, olhar para os lados e perceber as novas lacunas que acompanham a gente. que esse é um dos maiores e mais importantes ciclos de todos. fazer esse reconhecimento, né?
Nathália – Me sinto muito monotemática, como se as mesmas coisas encontrassem jeito de se repetir com outras palavras. conversei um pouco sobre isso na entrevista com a lary andrade, quando contei à ela como quase sempre eu escrevo sobre saudades, sejam reais ou inventadas. a necessidade e essa paixão quase-orgânica de escrever é algo que insiste, ainda maior que eu. acho que uma das poucas coisas de que tenho certeza é a de que não dá pra fugir quando esse desejo pela arte chama a gente. eu gosto do verbo chamar porque também me lembra de ardências, do que lateja na pele. acho que eu só descobri que precisava escrever quando me dei conta que não saberia viver sem isso. é tanto que agora eu me percebo que os momentos em que escrevo intensamente ou que não escrevo absolutamente nada são sempre em momentos nebulosos da vida. é como se a escrita fosse jeito de me dar notícias de como eu me situo no mundo. como é pra tu essa tua relação entre a escrita, a pausa e teus jeitos de se perceber na vida?
Giovanna – Adoro como vou te lendo e reconhecendo alguns termos ou ideias em comum nas ideias que a gente traça. isso da nebulosidade me pega muito. em momentos assim, eu me reconheço nesta mesma reação: ou escrevo demais ou escrevo de menos. e é curioso como um mesmo tópico, um mesmo acontecimento consegue me posicionar em dois extremos tão distantes um do outro: ou eu escrevo horrores, capaz de completar um livro de poemas de 100 páginas no mínimo só falando sobre tal coisa, ou eu me sinto bloqueada e passo semanas, até meses, sem conseguir escrever uma linhazinha que seja sobre. compartilhar contigo uma situação que aconteceu acho que no começo de 2021 comigo. não lembro quanto tempo fazia que eu não lia um livro, aí fui lá catar um na minha estante para voltar a ler e não consegui passar da terceira página. fiz isso com outro. nada. outro. nadica em dobro. eu sei que eu comecei a chorar porque jurei que tivesse desaprendido a ler, a me emocionar, me deixar levar pelas palavras. aí fui na livraria com o meu pai, encontrei um livro de poemas de uma autora que eu gostava, cheguei em casa, acendi uma luz bem suave, tomei um banho, deitei na cama e comecei a ler.
Eu devorei o livro numa noite, me emocionei como há tempos não fazia com algo que eu lia assim. foi incrível. produzi, naquela noite, uns três textos. foi tão visceral, fluiu de um jeito que me explicou tanta coisa, sabe? acho que eu tenho uma certa dificuldade em lidar com as pausas, fico meio desesperada no limbo sem saber o que vai acontecer (ou o que está acontecendo). aí, depois que eu respiro, faço uma caminhada, tomo um bom banho de sol, choro um bocado, consigo me situar um pouquinho melhor. mas, de primeiro instante, eu sempre fico meio louca achando que nunca mais vou conseguir escrever alguma coisa, ainda sabendo que é uma bobagem, que escrever é o que eu mais amo fazer há tanto tempo, desde antes de descobrir tanta coisa importante sobre mim. quando consigo recuperar essa consciência, eu consigo desfrutar mais do processo, por mais doloroso que seja ele. e, quando vou ver, duas horas, dois dias, duas semanas depois, estou escrevendo de novo, aproveitando a oportunidade de me perceber, de um jeito inédito, através das minhas palavras. é até bom que eu acabo conseguindo escrever sobre as pausas e reconhecer a importância que elas têm em todos os processos da vida, sabe, Nath? mesmo que isso me perturbe o juízo até eu me ligar que é assim mesmo, que eu já aprendi isso em um outro momento da vida, que basta relembrar. é massa se conhecer. mesmo doidinha assim, eu acho que eu faço isso bem, acho que, grande parte do tempo, eu estou aberta para permitir que isso aconteça. daí se dá a evolução que eu consigo perceber na minha escrita ao longo do tempo, sempre com novas verdades, com a coragem do mundo para abrir e expor as fragilidades, para compartilhar os amores de fazer chorar os olhos, tremer o corpo, excitar os dedos. é uma relação intensa, de prazeres e desprazeres, mas que, no final, só me faz sentir que eu cresci um bocado mais.
Nathália – Fiquei curiosa de saber qual foi o livro que te fez ler e escrever por tanto tempo seguido desse jeito. é tão boa a sensação de quando se encontra com algo assim, de jeito tão espontâneo. me reconheci nisso que tu conta, de se sentir até meio desesperada depois de passar tempos sem escrever, uma sensação esquisita como se fosse durar pra sempre. é engraçado porque às vezes basta um acontecimento para as palavras voltarem. fui aprendendo a lidar com esses intervalos de muita escrita e de muito silêncio, acho que ambas as coisas vão sendo necessárias. no sentido da escrita ser esse jeito de tu se sentir e se conhecer, de sentir teu próprio corpo escrito nele. teria algum texto teu que tu queira/possa compartilhar que conte um pouco disso?
Giovanna – Ai! o livro foi da Rupi Kaur, ‘’meu corpo minha casa’’, Nath. ele me atravessou todinha. eu fiquei muito sensibilizada pelas partes difíceis da vida dela que ela retratou nos poemas, fiquei encantada de um outro jeito com a maneira com que algumas palavras me pegaram e impulsionaram também. foi massa. eu gosto bastante da ideia que traz um texto meu que, inclusive, estará no meu livro (‘’o sol vem depois’’), que se chama saio de mim, e tem um versinho dele que me veio na hora em que você fez essa pergunta: voltei para mim / saí de mim / várias vezes /para saber se o que eu via / era o que eu realmente sentia / ou era só produto alheio / de quereres. o texto inteirinho fala sobre processo de sair de si e voltar, de se deparar com quem a gente é por dentro sempre de um jeito novo. a escrita representa esse exercício para mim, eu sou capaz de me apresentar a mim mesma através de palavras, e essas palavras eu alcanço quando paro para sentir meu coração, para me olhar na frente do espelho do meu quarto. é bem precioso, né? o que nasce quando a gente menos espera.
Nathália – Li hoje um trechinho de uma carta do caio fernando abreu, no final de morangos mofados. ele falava da escrita do livro e em dado momento começou a falar de clarice, e ele diz: “a primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo”. te escrevo de volta hoje com essa mesma sensação, sangrada de tudo, e te agradeço pela entrega tão viva aqui. dessa vez nem tenho tanto uma pergunta, é só pra dizer e deixar marcado como me encanto com esses encontros de gente que também sente a escrita no corpo, o sangue nas unhas, o texto na pele. te agradeço por me lembrar dessa força-frágil que tem em escrever e se colocar no mundo, gi.
Giovanna – Te deixo aqui, sexta à noite, tanto carinho, Nath. eu morro de vontade de ler esse livro, e esse trecho, em específico, já me atravessou algumas vezes, aumentando sempre minha vontade de ler Morangos Mofados. mas nunca me atravessou assim. tão diretamente. como uma carta endereçada. como as palavras com as quais você me enlaça e eu só me sinto feliz demais por escrever, partilhar e alcançar pessoas como você, que escrevem e partilham dum jeito tão lindo e especial também. eu fico encantada com isso tudo, que só acontece porque a gente se coloca no mundo, como você mesma relembrou ali em cima. e acho delicioso que você seja uma mulher jovem e nordestina, que suas palavras sejam maduras, que sua arte se performe de tantas maneiras, porque, assim, você tem mais de uma possibilidade de tocar o mundo com o seu tato, com o seu olhar sobre as coisas. como você faz comigo de tantos jeitos! sua arte me encanta muito, sua escrita e o que você partilha denotam a potência de mulher que você é, o que me deixa ainda mais feliz por você reconhecer em mim a possibilidade de fazer uma conversa tão maravilhosa quanto esta acontecer, porque eu sei das minhas potências enquanto mulher também, então saiba que fico muito satisfeita por a gente ter administrado esse tempo, mesmo com todas as correrias doidas e doídas da vida da gente, para se encontrar aqui. e eu te agradeço por fazer ser tão gostoso me mostrar aqui para você te receber um bocado também, Nath.
Nathália – Tô relendo tudo do começo agora. esse jeito como a gente se encontra pra, sobretudo e antes de tudo, falar de amor. fui lendo e foi me dando uma emoção danada, dessas que faz a gente se sentir viva. viveremos. é muito preciosa tua presença! todo esse carinho que foi acontecendo nesse ritmo muito nosso. uma respiração cadenciada, uma pausa, o tempo de olhar bem no fundo dos olhos de outra pessoa. não consigo te dizer um tanto porque aqui não cabe. obrigada por estar aqui, gi (e que seja só um até logo)
Giovanna – Que lindo mesmo construir e revisitar esses amores todos junto com você e a sensibilidade nas suas palavras, Nath. eu não consigo parar de sentir como esse encontro me atravessou de tantas maneiras, inclusive quando eu pensei em como conciliar as coisas todas da vida e não conseguia, de modo algum, pensar em abandonar essa construção aqui. tão lindo o que a gente fez e tem feito. lindo juntar um bocado de quem eu sou com um bocado de quem você é, criar essa intimidade desse jeito, né? sem ter, literalmente, olhado dentro dos olhos uma da outra. e ter a oportunidade de testemunhar como existem tantas maneiras de se entrar em alguém e permitir essa entrada no mundo da gente. lindo te acompanhar e ser acompanhada por tu, Nath. com certeza, um até logo. (eu me empolguei muito com o café, poxa vida)
Nathália – Antes da gente ir, conta pra mim onde a gente pode encontrar mais do teu trabalho e da tua escrita? (se tu tiver locais onde escreve/publica textos, se tiver livros à venda onde é possível adquirir, formas de te encontrar por aí, como instagram, site, etc)
Giovanna – Claro, claro! então, eu tenho um perfil no Instagram que abandonei um pouco nos últimos anos, o @apenaslunetta. é um perfil só de textos. tem bastante coisa lá, mas não está atualizado. eu tenho um podcast onde faço a leitura de textos meus, que também está inativo (mas com a pretensão de me organizar em 2023 e trazê-lo de volta à vida), bem gostoso de ouvir, presente em diversas plataformas digitais gratuitas, inclusive, no Spotify – Poesia com Giovanna Lunetta. e, nos últimos anos, o meu perfil pessoal no Instagram se tornou, também, meu perfil de trabalho e divulgação da minha arte, então lá tem texto novo toda semana, com vídeos recitando e interagindo de outras maneiras também: @giovannalunetta. sobre livros à venda, está bem próximo de acontecer, hein?! este ano, vou lançar meu primeiro livro, já está tudo encaminhado, hihihi. então me sigam no Instagram para acompanhar as novidades e os avanços de pertinho! para já adquirirem o de vocês assim que estiver liberado!