As redes sociais tomadas por imagens geradas em segundos por uma IA chamam atenção para a ascensão dos algoritmos e provoca questionamentos sobre limites éticos, direitos autorais e desvalorização do processo criativo.
Texto de Esmeralda Donado supervisionado por Lícia Souto
Nos últimos dias, uma tendência que utiliza inteligência artificial para transformar fotos reais em imagens com a estética dos filmes do Studio Ghibli ganhou força nas redes sociais. A iniciativa, impulsionada por uma atualização do ChatGPT, permite criar imagens inspiradas no estilo do renomado estúdio japonês — responsável por clássicos como A Viagem de Chihiro, Meu Amigo Totoro e O Castelo Animado. Esse fenômeno ganha ainda mais sentido diante da profunda conexão cultural entre Brasil e Japão no campo da cultura pop.
Os animes figuram como um dos principais símbolos dessa influência, fazendo do país um dos maiores consumidores de anime fora do Japão. As produções do Studio Ghibli, com seus visuais marcantes, narrativas sensíveis e personagens carismáticos, conquistaram o público brasileiro, o que explica em parte a disseminação dessa nova tendência.
Contudo, a popularidade da trend logo foi ofuscada por críticas. Um vídeo de 2016, no qual Hayao Miyazaki — cofundador do Ghibli — se posiciona de forma contundente contra o uso da inteligência artificial na criação artística, voltou a ganhar circulação. Em uma reunião exibida no documentário Never-Ending Man, Miyazaki afirmou:
“Não consigo assistir a isso e achar interessante. Quem cria essas coisas não entende o que é a dor. Estou completamente enojado. Nunca desejaria incorporar essa tecnologia ao meu trabalho. Considero isso um insulto à própria vida.”
Embora esse caso tenha gerado ampla repercussão, ele não é isolado, evidenciando que os desafios relacionados à inteligência artificial se estendem a toda a cadeia criativa e não apenas às artes visuais. No início deste ano, músicos de diversas partes do mundo se mobilizaram contra o uso indevido de obras protegidas por direitos autorais. Em resposta à regulamentação do Reino Unido, que permite que empresas de tecnologia utilizem trabalhos protegidos para alimentar IAs, mais de 1.000 artistas — incluindo nomes como Annie Lennox, Damon Albarn e Kate Bush — lançaram o álbum Is This What We Want?, composto por doze faixas formadas inteiramente por sons mecânicos.
Esses episódios reabriram discussões essenciais sobre autoria, ética e os limites do uso de IA não somente nas artes visuais. Contudo, a ausência de regulamentação clara sobre o uso de obras pré-existentes levanta graves questões sobre os direitos de propriedade intelectual.
A advogada Emilly Vieira, especialista em propriedade intelectual, ressalta:
“Atualmente, no Brasil, temos a Lei 9.610/1998, que protege os direitos autorais. Contudo, essa proteção está vinculada à originalidade da criação e não à técnica utilizada pelo artista. No caso das imagens inspiradas no Studio Ghibli, os personagens são protegidos por lei, mas, como a trend utiliza fotos pessoais dos usuários, torna-se mais difícil caracterizar uma infração, a menos que a imagem final se assemelhe demasiadamente a uma obra protegida e haja exploração comercial.”
Nesse cenário, o avanço das ferramentas de inteligência artificial representa mais do que um desafio tecnológico: é uma ameaça concreta à valorização da criação humana. Enquanto artistas independentes veem seu trabalho desvalorizado, grandes plataformas lucram com conteúdos que frequentemente se fundamentam em produções não autorizadas.
Como os artistas podem se proteger?
Entre as medidas de proteção, Emilly Vieira ressalta que o direito autoral no Brasil é automático — ele nasce com a criação da obra. No entanto, recomenda que os artistas se protejam ainda mais: “Apesar dessa proteção automática, o ideal é que o artista registre suas obras em instituições como a Biblioteca Nacional ou em escolas de belas artes, garantindo um documento oficial. É importante, também, utilizar marcas d’água e deixar claro que a reprodução sem autorização é proibida. Sempre que possível, recorra a ferramentas que impeçam o uso por IAs. Se houver indícios de plágio, procure um advogado, registrando data, local e contexto onde sua obra foi copiada. Esses cuidados tornam o processo mais viável e aumentam as chances de reparação.”
“A mensagem que recebi foi ‘não precisamos de você’”: o impacto da IA na produção artística
Enquanto o público em geral se encanta com a estética inspirada no Studio Ghibli, artistas como Nycollas Constantino — ilustrador alagoano que atua no mercado independente — expressam desconforto e preocupação. Em entrevista à Revista Alagoana, ele conta que, no início, sua reação foi neutra, já que a tendência envolvia apenas ver como as próprias fotos ficariam com aquele estilo, sem intenção de substituir a contratação de um ilustrador. Contudo, conforme os impactos da tecnologia se tornaram mais evidentes, Nycollas passou a rejeitar a proposta.
“Fiquei incomodado ao ver páginas públicas, inclusive de órgãos oficiais, divulgando essa tendência como algo inofensivo, o que reforça a desvalorização do trabalho dos artistas locais. A mensagem implícita é: ‘não precisamos de você, a máquina já faz igual (ou melhor) e de graça’. Isso é extremamente perigoso”, alerta.
Sobre a popularização da trend, Nycollas atribui o sucesso ao apelo emocional das obras do Studio Ghibli: “Mesmo quem nunca conviveu com aquela cultura sente uma nostalgia profunda ao assistir aos filmes. Quando uma IA simula esse estilo e insere sua imagem naquele universo, gera-se uma conexão emocional imediata. Embora a IA possa arrancar a alma do processo — o toque do artista —, o resultado estético ainda encanta quem não percebe essas nuances.”
Ao abordar os impactos no mercado, o ilustrador ressalta que áreas abrangidas pelo termo “ilustrador” sofreram uma redução significativa na oferta de trabalho. “Empresas de publicidade e grandes estúdios de jogos passaram a usar IA para acelerar processos. Mesmo que a qualidade não seja a mesma, para o volume e velocidade exigidos, ‘serve’. Dessa forma, muitos profissionais perderam espaço no mercado”, acrescenta.
Nycollas finaliza destacando o principal debate: “O maior problema é a legalidade. A IA não cria do zero; ela mistura partes de obras existentes sem dar crédito. Para criar essa trend no estilo Miyazaki, a IA precisou absorver e replicar traços do Estúdio Ghibli, o que envolve diretamente questões de direitos autorais. Vivemos um momento em que a legislação para proteger os artistas é insuficiente, e grandes empresas utilizam conteúdos públicos para treinar suas IAs sem que muitos saibam disso, escondido nos termos de uso que ninguém lê.”
O valor da arte humana na era digital
Ao optarmos por consumir produtos visuais prontos, gratuitos e emocionalmente apelativos, corremos o risco de abdicar de algo fundamental: o olhar humano, enraizado em nossa própria realidade. Nycollas ressalta que, diante das consequências negativas da IA, surgem até “acusações falsas contra artistas reais, afirmando que utilizavam IA quando, na verdade, eram apenas excepcionais em seu ofício. Hoje, se o artista não registra todo o processo — algo que exige equipamento, tempo e energia —, as pessoas questionam a autoria da obra. Isso afeta diretamente a credibilidade e a saúde mental dos profissionais. Para quem está de fora, parece apenas um ‘filtro legal’, mas para nós é um ataque direto à nossa profissão, ao nosso esforço e à nossa arte”, enfatiza.
No mercado das artes visuais, enquanto algoritmos produzem imagens em questão de segundos, a demanda por criações originais sofre uma queda acentuada, obrigando os artistas a competir com produções rápidas que frequentemente carecem da profundidade estética e do toque humano.
O avanço da inteligência artificial na criação de imagens reabre um debate que vai além da tecnologia: o valor que atribuímos à arte, à autoria e, sobretudo, à cultura que nos cerca. Num país como o Brasil, onde artistas locais já enfrentam desafios estruturais para garantir a sobrevivência de suas produções, a popularização de conteúdos gerados por IA acentua um ciclo de invisibilização. Em tempos de algoritmos e fórmulas automáticas, optar por consumir arte feita por pessoas — especialmente aquelas que resistem na cena local — pode ser um importante ato de resistência e consciência.