Em um Brasil marcado pela diversidade, os povos indígenas se destacam por carregar a força da ancestralidade e o desejo de transformação.
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais
Em meio aos impactos históricos da colonização, da miscigenação forçada e da negação de direitos, a juventude indígena tem se levantado para reivindicar espaço, território, memória e dignidade. Longe dos estereótipos cristalizados que limitam suas identidades ao que se espera ver, esses jovens enfrentam um desafio ainda mais profundo: afirmar quem são em um país que tantas vezes insiste em inviabilizá-los.
É nesse contexto de afirmação identitária que se insere a luta dos jovens Karapotó, povo originário das margens do Rio São Francisco, com presença histórica nos estados de Alagoas, Sergipe e Pernambuco. Tradicionalmente ligados à pesca, à agricultura e à cerâmica, os Karapotó sempre mantiveram uma relação sagrada com a terra e as águas, migrando conforme os ciclos naturais. A chegada dos colonizadores, no entanto, trouxe profundas rupturas: foram aldeados em missões religiosas, viram seus territórios serem expropriados e tiveram sua cultura brutalmente reprimida. Ainda assim, resistiram — e seguem resistindo.
Hoje, muitos Karapotó vivem na comunidade de Terra Nova, na cidade de São Sebastião, e continuam lutando pelo reconhecimento de seu território ancestral e pela preservação de seus saberes.
A Revista Alagoana conversou com Ramon, jovem indígena da comunidade, que nos convida a refletir sobre o que significa ser indígena nos dias de hoje, ”eu não posso falar de mim, sem antes falar da minha comunidade”, afirma o jovem. Seu relato é também o retrato de um povo que, apesar das violências históricas, resiste, se reinventa e segue em luta pela terra, pela memória e pelo direito de existir, confira:
R.A: Quais são as suas inquietações como jovem indígena?
Ramon: Hoje, o que mais me inquieta é a questão da valorização. Quando vou fazer uma apresentação, por exemplo, por ter traços miscigenados, sou olhado de forma diferente. Esperam ver o estereótipo do indígena amazônico: cabelo liso, franja e olhos puxados. Mas essa não é a única representação possível.
R.A: Como foi seu processo de autorreconhecimento enquanto jovem indígena? Foi algo natural ou aconteceu aos poucos?
Ramon: Eu já morei na Aldeia, e Terra Nova é um povoado diverso — com brancos, negros e indígenas. Desde criança, a gente é “cobrado” a ser uma coisa só: ou índio, ou branco, ou negro. Com meus pais, aprendi os costumes indígenas desde cedo, então o reconhecimento foi natural.
Mas, por causa da perda da identidade do povo Karapotó com a invasão e disputa por terras, houve momentos em que, por medo de preconceito, eu neguei minha identidade. Quando criança, eu evitava dizer que era indígena para não ser zoado. Com o tempo, entendi quem eu sou e aceitei isso com orgulho: nasci indígena e vou morrer indígena.
R.A: Quais ações você considera importantes para construir uma identidade indígena sem estereótipos?
Ramon: Uma das ações que costumo fazer é trabalhar com crianças pequenas, ajudando-as a não negar quem são. Mesmo com a miscigenação, tento mostrar de forma didática que a identidade delas é legítima.
A expectativa de que todo indígena tenha a aparência do Norte do país é um pensamento limitado. O Nordeste foi uma das regiões mais invadidas, o que afetou a preservação de traços físicos. Além disso, uso as redes sociais para divulgar nossa cultura e fortalecer a identidade indígena de forma mais ampla.
R.A: Ser um jovem indígena, hoje, ainda traz muitos desafios. Quais foram os mais marcantes para você ao afirmar sua identidade?
Ramon: A invisibilidade é um dos maiores desafios. A política silencia nossas vozes e limita nossos planos. Muitas ideias que tenho para ajudar minha comunidade acabam barradas.
Mas o audiovisual tem sido uma ferramenta de resistência. Através dele, consigo mostrar nossa realidade, sem precisar da permissão de lideranças políticas. A internet nos deu esse espaço, livre de censura interna e externa.
R.A: Como o ensino escolar (nas aldeias e nas cidades) influencia a construção da identidade indígena dos jovens?
Ramon: Isso depende muito do tipo de escola. Na escola indígena, o ensino é voltado às tradições da comunidade, então o jovem mantém sua essência. Mas quando o indígena vai estudar fora, em escolas “brancas”, há uma influência forte dos costumes não indígenas, o que pode enfraquecer sua identidade.
Na escola indígena, há uma integração entre o ensino formal e os saberes tradicionais — como aprender a fazer artesanato, cantar Toré, entre outros. O problema é que o ensino “convencional” ainda repete uma versão romantizada da história, como se em 1500 os indígenas tivessem recebido os portugueses com alegria, o que não condiz com a realidade.
R.A: De que maneira a transmissão oral dos saberes ancestrais fortalece a identidade dos jovens indígenas?
Ramon: A oralidade é essencial para manter nossa essência viva. Se eu fosse ancião, teria rodas de conversa todas as noites para passar adiante o que meus avós me ensinaram.
Por isso, é fundamental buscar essas histórias enquanto nossos mais velhos ainda estão vivos. Se não fizermos isso, e seguirmos apenas os costumes brancos, vamos perder tudo.
R.A: Você acredita que a tecnologia e as redes sociais têm ajudado ou dificultado a preservação das tradições indígenas?
Ramon: Acredito que têm ajudado bastante. Com as redes sociais, conseguimos mostrar a realidade da comunidade ao mundo.
Claro, elas não substituem os saberes dos anciãos, mas ampliam nosso alcance.
Por outro lado, existe um desafio: alguns indígenas, ao se aculturar, acabam se afastando das tradições para se aproximar do modo de vida branco. Isso acontece muito em comunidades mistas como Terra Nova.
R.A: O que você tem aprendido de mais valioso com a pedagogia intercultural indígena? Ela se difere dos ensinamentos dos mais velhos?
Ramon: A pedagogia intercultural indígena tem um viés mais acadêmico, e também nos conecta com outras comunidades — a sala de aula é um espaço multiétnico.
Mas há uma diferença grande: ouvir uma história contada por um ancião é uma experiência viva, que prende a atenção. No ensino acadêmico, há muita pesquisa e análise, o que nos distancia um pouco da emoção e da ancestralidade.
A diferença está aí: o saber científico e o saber cultural têm formas diferentes de transmitir conhecimento.
R.A: Como a língua Dzubucúa entrou na sua vida?
Ramon: Descobri a existência da língua Dzubucúa através de um colega, durante o Congresso de Território Educacional, em Delmiro. Vi um senhor falando e fiquei curioso. Pesquisei por conta própria, mas não encontrei muita coisa.
Este ano, na faculdade, conheci colegas que já tinham algum conhecimento da língua e compartilharam artigos comigo. Fiquei impressionado e decidi iniciar um projeto de criação de um dicionário, que está em andamento.
R.A: Se você tivesse a oportunidade de ocupar um espaço de fala em um evento como a COP30, quais seriam suas reivindicações no contexto da sua etnia em Alagoas?
Ramon: Eu falaria principalmente sobre o processo de miscigenação e a luta pela demarcação das terras. A dominação de terras é uma das questões mais urgentes que precisamos enfrentar.