RESENHA LITERÁRIA: A glória e seu cortejo de horrores, de Fernanda Torres

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Logo de início: que surpresa boa. Bastou abrir o livro e ler o primeiro parágrafo, sem grandes expectativas, para sentir que algo ali ia me marcar, eu só não fazia ideia de como e de quanto.

O livro conta a história de Mário Cardoso, um ator conhecido que trabalhou em várias novelas de sucesso em uma emissora famosa. Agora mais velho ele criou uma obsessão de querer interpretar uma peça de Shakespeare no teatro. O livro narra as glórias e fracassos do protagonista como ator, dividindo entre o momento atual e o passado dele que se intercalam na narrativa.

A literatura brasileira ainda é um tesouro pouco explorado pelos próprios brasileiros, o que é uma pena. E este livro é prova disso. Quem poderia imaginar que Fernanda Torres, além de ser uma atriz talentosíssima e filha da lendária, mitológica, grandesíssima Fernanda Montenegro, também se revelaria uma escritora de mão cheia?

“A glória e seu cortejo de horrores”, título brilhante escolhido para seu segundo romance, emprestado de uma frase que sua mãe dizia com frequência, segundo ela mesma, resume de forma precisa o que aguarda o leitor: uma jornada intensa, irônica, e profundamente humana.

Em pouco mais de 200 páginas, com uma escrita deliciosa, sofisticada e, ao mesmo tempo, acessível, Fernanda nos um personagem envolvente em sua ascensão e queda. A narrativa, que vai e volta no tempo com naturalidade, mergulha no universo das artes cênicas, especialmente o teatro e a televisão. Seria uma escolha confortável para alguém com o histórico de Fernanda? Talvez.

Mas o diferencial aqui está no olhar: é o tema, e não a forma, que torna o livro tão rico. E é esse olhar crítico, recheado de sarcasmo e ironia na medida certa, que faz a obra se destacar e fazer o leitor não querer largar até terminar a última página.

Nada escapa da análise afiada de Fernanda no livro, nem Shakespeare, nem Guimarães Rosa, nem o Festival de Cannes, muito menos a TV Globo ou a Rede Record com suas produções bíblicas. O teatro militante da época da ditadura, os financiadores da cultura, os aspirantes à fama artística: todos são retratados com precisão e uma dose generosa de humor cáustico. Para uma autora ainda nova no mundo literário, Fernanda demonstra uma habilidade narrativa impressionante. E isso torna a leitura um verdadeiro prazer.

As referências culturais são muitas e inteligentes, não soam pedantes, “esnobes”, nem deslocadas. Elas compõem a narrativa e reforçam o quanto Fernanda domina esse universo da literatura. Por meio de Mario Cardoso, ela nos convida a enxergar os bastidores das artes cênicas brasileiras, construindo um panorama rico, irônico e profundamente sensível. Com este romance, Fernanda já demonstra ter lugar garantido entre os grandes nomes da nossa literatura. Se o tempo vai consagrar este livro como um clássico ou o vai colocar na na prateleira dos esquecidos, só vamos saber mais adiante.

Mas pode esperar de “A glória e seu cortejo de horrores” uma história cativante, provocativa e divertida, com um final tão inesperado e surreal que só poderia mesmo existir na literatura. E se, assim como para mim, este for seu primeiro contato com a autora, prepare-se: a partir de agora, Fernanda Torres vai deixar de ser apenas a atriz que você conhece. Ela também vai ganhar espaço na sua estante, seja ela de madeira ou digital.

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