RESENHA LITERÁRIA: “Sob o Céu de Isaías”, de Vitor Kappel

Esse romance é uma estreia agridoce sobre crescer em um país que te oprime. Por trás da aparente simplicidade do título “Sob o Céu de Isaías”, esconde-se uma narrativa profunda, tragicômica e tocante sobre amadurecer em um Brasil marcado por opressões morais, religiosas e afetivas. Romance de estreia de Vitor Kappel, a obra já nasce com voz própria uma mistura de delicadeza emocional e crítica afiada, com ecos de J.D. Salinger, Greta Gerwig e Oscar Wilde.

“Desde O Apanhador no Campo de Centeio, até filmes como Lady Bird, sempre me identifiquei com narrativas de formação”, explica o autor. “São histórias divertidas e ao mesmo tempo densas, que retratam a libertação de personagens em busca de identidade”.

É exatamente esse caminho que percorre Isaías, protagonista da obra: um jovem do interior do Brasil tentando encontrar seu lugar em um mundo hostil.

Isaías é um personagem de difícil definição, e essa é, justamente, sua maior força. Criado de forma ficcional, ele é um “caleidoscópio” de pessoas reais, segundo o autor: “Fruto de combinações de pessoas próximas a mim que carregam uma pureza rara hoje em dia”. Carregando uma bondade genuína, Isaías enfrenta uma jornada de amadurecimento que envolve conflitos internos, sexualidade, opressão religiosa e até mesmo uma rede criminosa.

Nesse processo, o romance apresenta uma “comicidade melancólica” — um humor sutil que desarma e aproxima o leitor, mesmo diante de temas difíceis. “Creio no humor como uma via exploratória da fragilidade humana”, afirma o autor, “garantindo empatia e beleza em temas complexos”.

Ambientado em uma pequena cidade do interior, o livro retrata uma atmosfera onde “padres, colégios religiosos e muros altos” compõem um cenário de repressão e conservadorismo. “Esse jovem sonha em fugir – literalmente – da pequena cidade que o aprisiona”, explica o autor. “Mas antes, precisa enfrentar perigos maiores do que provas ou o ENEM: uma rede criminosa, dilemas internos e a descoberta do amor”

A ambientação, embora ficcional, é reconhecível para qualquer leitor brasileiro. “Todos nós conhecemos atmosferas opressoras no país”, afirma. “O livro aborda um puritanismo que se infiltra no discurso público, na educação, na política, na cultura, provocando estigmatização e culpa”

Sem medo de tocar em feridas abertas, Sob o Céu de Isaías discute com honestidade temas como repressão sexual e fé. E apesar de tratar de questões tão delicadas, o autor nunca considerou suavizar o conteúdo por receio de reações negativas: “Não”, responde de forma objetiva quando questionado se sentiu medo da recepção.

A mensagem para jovens como Isaías — e para os leitores em geral — é clara: “Vai melhorar. Não deixe de buscar alguém de confiança para uma conversa.” A citação ao movimento It Gets Better, voltado à juventude LGBTQIAPN+, reforça o compromisso do autor com a empatia e a esperança. “Isaías no fundo tem uma dificuldade central, que é lidar com a sexualidade, e isso ecoa inúmeras vozes que são apagadas por um motivo inaceitável: amar.”

Na construção de sua escrita, o autor cita influências como Oscar Wilde e Don DeLillo, além de escritoras brasileiras contemporâneas que marcaram sua trajetória: Carol Bensimon e Helena Terra. “Fiquei emocionado ao ler O Clube dos Jardineiros de Fumaça”, diz sobre o livro de Bensimon. “É uma obra-prima”

O processo de publicação, no entanto, foi marcado por dor: a perda do primeiro editor, Leonardo Valente, a quem dedica a obra. Ainda assim, o lançamento se concretizou com o apoio da editora Patuá e de colaboradores que acreditaram na força da história.

Atualmente, o autor trabalha em um segundo livro — um thriller psicológico — e ainda reflete sobre o futuro de Isaías. “Vamos ver o quanto ele se libertou, inclusive de mim”, brinca.

Para os leitores que ainda vão conhecer Isaías, o autor deixa um desejo: “Que se enxerguem nesse personagem atrapalhado, mas genuinamente bondoso” Em meio à dor, ao riso e à complexidade, Sob o Céu de Isaías oferece um retrato comovente da juventude brasileira. E, como lembra a citação de David Foster Wallace que fecha a entrevista: “O humor é uma das maneiras mais eficazes de lidar com a dor”

Isaías nos mostra que, mesmo quando o céu parece opressor, há beleza na resistência — e uma esperança insistente em transformar o que nos cerca.

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