Luiz Miguel Xavier da Silva
Outro dia, ouvi uma frase do cineasta Fernando Meirelles que não saiu mais da minha cabeça: “Eu entendo inglês, mas eu não sinto em inglês. Por exemplo, quando você diz ‘Mango Tree’, em inglês é só uma árvore. Em português, Mangueira lembra a minha mãe.” Ele falava de cinema, mas eu só conseguia pensar em literatura.
É comum que vejamos pessoas que devoram livros internacionais, defenda-os com unhas e dentes e rejeitem a literatura nacional. Crescemos ouvindo sobre O Pequeno Príncipe, Alice no País das Maravilhas e diversos outros livros mundialmente conhecidos, mas, enquanto isso, onde estava Dom Casmurro? Onde estava Capitães da Areia? Onde estava A Hora da Estrela? Sumidas, esquecidas e escondidas às sete chaves, vítimas da supervalorização de
uma cultura que nem nos pertence, mas que já nasce sendo julgada como melhor.
Desde a colonização, nos ensinaram a ver o que vem de fora como superior, e ainda hoje isso ecoa nas prateleiras das livrarias, nas escolhas escolares e até nos gostos literários que desenvolvemos com o passar do tempo. O resultado é uma constante sensação de que a literatura brasileira é “difícil”, “inferior” ou “pouco universal”, quando na verdade ela fala diretamente com o nosso corpo, território e memória.
No entanto, há coisas que só a nossa língua materna dá conta. Não digo isso como forma de rebaixar as diversas outras línguas ricas em literatura, mas por saber que há sentimentos que se perdem nas linhas das traduções. Um bom exemplo disso é a inexistência da palavra “Saudades” em inglês. Lá eles usam “I miss you”, que traduzindo fica algo como “Sinto sua falta”. E convenhamos: “Que saudade sua!” não tem o mesmo peso que “Sinto sua falta”, não
é mesmo? Nosso “Saudade” é carregado de afeto e memória. Ele significa a falta, o carinho, a nostalgia, a ausência, o desejo de estar perto… tudo isso ao mesmo tempo. Que outra palavra poderia trazer essa carga emocional?
Como lembra Conceição Evaristo, nossos textos são feitos de carne. É preciso que nos vejamos na literatura que lemos para que possamos colher dali tudo de melhor que aquele texto tem a nos oferecer. Cada palavra é uma visita à nossa casa. Não iremos sentir com o casal que se conheceu nas redondezas do Empire State Building o mesmo que sentiríamos com a dupla de amigos que se apaixonou em um pagode no Bar dos Dois Irmãos.
A literatura brasileira não fala de nós, ela fala com a gente. Quando leio Graciliano, não leio só um livro, leio o silêncio da minha avó, os olhos fundos do meu vizinho depois do trabalho e o cachorro que correu comigo quando eu tinha oito anos. A literatura tem esse poder único de ser espelho e bússola para quem a lê. Ela nos ajuda a reconhecer partes de nós mesmos que estavam escondidas ou esquecidas: traumas que ainda doem, alegrias que merecem ser celebradas, memórias que precisavam ser revisitadas para ganhar sentido. E quando essa literatura é escrita na língua em que aprendemos a sentir, ela se torna ainda mais potente.
Pense em como algumas dores são difíceis de serem colocadas em palavras e que talvez você ache que ninguém jamais o entenderia, mas que de uma forma bem sutil e ao mesmo tempo visceral, Clarice Lispector, que viveu logo aqui ao lado, nomeou com maestria em duas páginas. Pense em como aquele nó na garganta e frio na barriga inexplicável pode ser traduzido pelas palavras de Fernando Pessoa. Pense em como Lêdo Ivo fez do mar alagoano
que você vê todos fins de semana uma metáfora eterna para a solidão. Pense em como de alguma forma alguém que caminhou pelas mesmas terras que a sua, que viu crescer a mesma árvore que você vê todos os dias e que ouviu os mesmos sotaques, teve a coragem e a sensibilidade de escrever alguém como você: um homem de chinelo de dedo que vende picolé na rua, um cantor de axé tendo o seu melhor carnaval, uma adolescente comendo a
última feijoada de sua avó.
Aqui em Alagoas, essa potência se revela em nossas narrativas e poesias que respiram o cheiro do mangue, o barulho do mar, o calor da cidade pequena e a força das comunidades que resistem e reinventam suas histórias. A literatura alagoana não é apenas um retrato do nosso estado, mas uma expressão viva da cultura brasileira, com suas contradições, belezas e desafios. É olhar o espelho e reconhecer que a moldura também é nossa.
Por isso, troquem o “I love you” pelo “Eu te amo”, corram no sentido contrário do Central Park para chegar mais rápido nas praias de Maragogi, e larguem o dia de Ação de Graças para viver o São João nordestino.
Se a literatura é um abraço, que ele venha quente e próximo, na língua que nos conhece desde o primeiro suspiro.
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Sobre o autor: Luiz Miguel Xavier da Silva é estudante de Letras pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e leitor-pesquisador que interroga a literatura e seus desvios. Natural de Delmiro Gouveia (AL), cultiva o desejo de se aprofundar em narrativas dissidentes e personagens que escapam do óbvio. Dedica-se a explorar a literatura alagoana em toda a sua amplitude — do sertão às paisagens urbanas — com um olhar voltado para uma produção sensível e diversa.