Texto de Lícia Souto
Sejam 50 metros de muro que ganham cores e formas na Praia da Avenida, na orla de Maceió, ou 80 centímetros de tela. Um pequeno tonel ou enormes backbus e outdoors, a arte de Yara Pão salta aos olhos e ganha vida na mente da população alagoana.
Sobre a obra, a artista conta:”Pensei: o que temos em comum? Primeiro quis representar uma mulher ao volante, pela possibilidade de condução, mas ainda não era esse o caminho, mas sim o fato de sermos passageiras, seguindo viagem até quando somos nós as condutoras. O restante dos símbolos fica por conta de vocês interpretar.”
Yara Barbosa Pinto – Yara Pão – é uma artista alagoana de 26 anos, que encontrou no grafite e no muralismo um meio de expressão, uma paixão e um trabalho que, até então, não fazia ideia de que poderia leva-la tão além.
Desde o ensino fundamental Yara já desenvolvia algumas telas, chegou até a participar de exposições junto a alguns artistas consagrados em Alagoas. Quando concluiu o ensino médio e teve que decidir qual curso iria fazer, ela pensava em algo relacionado as artes plásticas, mas na época não achou nada nesse sentido em Maceió, sem poder ir para outros estados, ela optou pelo curso de design, ainda sem ter dimensão das infinitas possibilidades que a profissão traria.
“No início da faculdade, eu estava no Rex Bar, ali próximo ao Jaraguá, e do nada apareceu uma galera para fazer uns grafites nos pontos de ônibus e eu fiquei impressionada porque eu nunca tinha visto aquilo pessoalmente. Daí eu fui apresentada aos meninos e fiquei amiga do pessoal da MCZ Crew, e foi aí que eu comecei a pintar na rua. Nós íamos com os nossos próprios investimentos, sem apoio de ninguém, alguns dos meninos já trabalhavam com isso (grafite e tatuagem). A única mulher que eu conheci, na época, que participava desse movimento era a Ursa. Acho que por não ter uma referência de mulheres que faziam grafite na minha cidade, na minha terra, parecia uma coisa muito distante para mim”, relembra a artista.
– O que você busca dizer e transmitir através dos seus traços e cores?
Yara – Todos os meus trabalhos carregam uma mensagem, seja ela algo mais visível ou implícito, mas sempre por meio das cores, dos movimentos e do simbolismo que as formas são capazes de trazer. Tenho muita liberdade para criar de acordo com as fases que eu estou passando, do momento que a gente vivencia enquanto sociedade, cultura e mulher. Mas tudo passa por uma reflexão, principalmente quando é algo que vai ter visibilidade na rua ou até comercialmente mesmo, porque tudo comunica e a gente tem que ter cuidado com as possibilidades de interpretação. A depender do local, eu tento valorizar algo naquele contexto, por exemplo, pintei ali no Vergel, eu tento valorizar as marisqueiras, valorizar nosso patrimônio do Sururu. Então é algo que considera a identidade também.
– Tem algum trabalho que tenha te marcado em especifico? Algum lugar que foi especial para você?
Yara – Essa pergunta é bem difícil porque cada trabalho tem uma particularidade, as vezes nem só pela obra, mas pela vivência, pelo significado. Mas eu posso destacar uma que é especial para mim que é ali na praça do skate, foi uma caixa d’agua que eu pintei e eu considero aquela obra muito importante porque para a construção dela eu passei por um processo longo de reflexão sobre os acontecimentos ali da praça, a ocupação, fiz várias analises. Aproveitei a construção dele para a minha tese de conclusão de curso, associei o design à cidade e a arte; levantei temáticas como a relação da ocupação dos espaços, do feminismo, da guerra visual que existe na cidade. Eu integrei o processo de construção do desenho a uma leitura do próprio bairro, da própria praça.
– Como Yara – pessoa e não apenas artista – o que é inegociável para você? Quais valores, crenças e princípios você acredita e defende?
Yara – Pessoalmente e artisticamente eu acredito muito no respeito. No respeito, no amor próprio e na fé. Eu acredito que o respeito tem que existir em todos os âmbitos, o respeito de si, do local, das diferenças, entender que nada nesse mundo é igual. E que nessa luta de entender o diferente, a gente lute com honra, com dignidade e consciência, consciência de como as nossas atitudes reverberam, que a gente pode ferir e incomodar os outros, porque são realidades e culturas diferentes, mas o respeito ou a tentativa dele é o essencial para a manutenção de um mundo melhor. Sobre amor próprio, acredito que se todo mundo cultivasse um pouco mais, levasse mais a sério, a gente não estaria aonde parece que estamos indo. E a fé, de uma forma geral, a crença no que a gente quer, no que é possível, na transformação; ter um pensamento positivo, que é diferente de ser ingênuo, mas acreditar mesmo, acreditar com o pé no chão, com possibilidade, com fé.
– O que mais instiga e desperta o seu processo criativo?
Yara – Acredito que o que mais instiga meu processo criativo é a vivência. Vivenciar a relação do tema traz uma vontade e uma força, é um ímpeto para produzir. Eu acredito muito no meio para a ação, estar em atividade, em um processo dinâmico de evolução, organização e disciplina, principalmente, tem muita relação com o meio, com as pessoas que estão ao nosso redor. Não só pelo misticismo mesmo, mas na prática, acho que quando dizem “digas com quem tu andas e eu te direi quem és” não é uma coisa fixa total, mas influencia. Além disso, tudo que vemos, acompanhamos, consumir o trabalho dos artistas, suas bibliografias, conquistas e falhas.
– Quando você olha para a cultura alagoana, o que mais admira e o que percebe uma carência hoje?
Yara – Acho que nós temos muitas riquezas, mas nem tudo que é nosso, que tem a nossa cara, é abraçado pela população. Acho que a gente tem muito estrangeirismo, muitos artistas de fora são mais reconhecidos e valorizados, acho que isso também acontece porque somos novos. Alagoas é um estado relativamente novo, em desenvolvimento, quando comparamos com grandes metrópoles, então é até um pouco difícil a gente mensurar isso e também pela questão do investimento no setor cultural, pela ausência de incentivo público e das próprias empresas.
Aos poucos estamos conseguindo alcançar e mostrar para as empresas e população que é muito interessante investir na arte local, porque por mais que no primeiro momento, aparentemente, não tenha um retorno, isso a longo prazo é imensurável. Isso impacta no nosso turismo e na economia, na interpretação das pessoas, na capacidade de expressão, de pensamento cognitivo mesmo, porque a arte não é só para embelezar, deixar o lugar mais instagramável, ela traz uma expressão de possibilidades, de se colocar no mundo e as pessoas verem e ouvirem de outra maneira.
O que eu admiro na cultura alagoana é a nossa capacidade de continuar, de resistência, de evoluir mesmo com todas as dificuldades. Acredito que isso deve acontecer independente de qualquer intervenção do estado, município e empresas, a gente realmente tem que ter força e correr atrás. Claro, é constitucional que nós tenhamos acesso à cultura, mas eu admiro àqueles que correm atrás, porque não é fácil. Eu passei por isso, de início ninguém acreditava, não tive o apoio nem da minha familia, é como se não reconhecessem como meu trabalho. Diziam para eu fazer uma faculdade que fosse me dar retorno financeiro, como advocacia, por exemplo, e hoje eu tenho plena convicção que posso viver muito bem.
Eu sinto que cada vez mais estou galgando um caminho de realização, não só profissional e de aceitação, mas também financeira, é um processo que é longo, até porque eu venho de uma realidade muito diferente de outros artistas, não vou me vitimizar porque eu venho de uma condição, querendo ou não, privilegiada. O que eu quero dizer é que esse meio artístico, por muito tempo ele ainda é, na realidade, dominado por um status de poder pelas pessoas que já vem de uma família e estrutura que possibilitam arriscar e viver de arte sem ter que se preocupar com uma segunda profissão.
– Pandemia: pessoalmente e como artista, algo mudou na sua visão?
No início da pandemia eu estava bem assustada, estava com medo, porque todo mundo estava passando por uma situação financeira de instabilidade, mas a demanda do meu trabalho seguiu e eu não trabalho em ambientes que aglomerem, geralmente estou sozinha pintando.
Não que a pandemia me fez enxergar isso apenas agora, mas reforçou o pensamento de que temos que ajudar mais o próximo, temos que nos doar mais. Eu continuo fazendo isso, quando pinto na rua, nas ongs, dou uma palestra, ajudando crianças em situação de vulnerabilidade, enfim, continuar levantando questões que são importantes. Eu me considero uma pessoa leve e tento trazer isso no meu trabalho, alegria e leveza para essa realidade e circunstâncias que estamos vivenciando.