Tradição e o contemporâneo: povos indígenas de Alagoas reinvidicam seus espaços através da arte, saber e cultura

Nesta reportagem, destacamos as trajetórias de pessoas indígenas que, por meio da arte, revelam o lar, o cotidiano e fortalecem sua ancestralidade em uma realidade onde o preconceito ainda persiste em diversos campos sociais. 

 

Reportagem feita por Lu Melo sob supervisão de Lícia Souto

 

Desde que terra é terra, nossas tradições vem de povos originários. Sabe aquela benzedeira na sua rua que sabia curar a gripe com plantas medicinais? Ou aquele jarro de barro com adornos em que sua avó depositava água? Eles têm algo em comum: possuem histórias que atravessam a cultura e vida das diversas etnias indígenas no Brasil.

Em Alagoas, há 13 etnias espalhadas próximas à capital e ao interior do estado. Elas, diferentemente do que uma sucessão de estereótipos afirmaram na sociedade, possuem suas próprias narrativas, lutas, rotinas e arte. Porém, com o mesmo objetivo: ressaltar a valorização do povo e das culturas indígenas no território alagoano.  

Em comemoração ao Dia dos Povos Indígenas, a Revista Alagoana dedica-se a conhecer e enaltecer o papel da cultura e da educação ao abraçar expressões artísticas que contam histórias através de suas ancestralidades e resistências no estado. 

 

O cinema do cotidiano: Reidison mostra a vida de Kariri-Xocó através do audiovisual

O cinema revela novos olhares sobre um povo e sua cultura, capaz de alcançar até os olhos mais desatentos. Reidison é integrante do povo Kariri-Xocó, povo indigena que se formou na união de diferentes aldeias, na região do Baixo São Francisco, em Alagoas. Sua cultura valoriza a conexão com o natural, através de elementos essenciais que são manifestados em rituais, cantos, toré e práticas que evidenciam a espiritualidade e a relação sagrada com o local e a terra.

Para Reidison, a ancestralidade é a base de sua vida, um elo que atravessa o tempo e  dá forças para buscar aprendizagem. No cinema, isso se transforma nos detalhes de seus projetos. Elementos sonoros e visuais são destacados e remetem às tradições de Kariri-Xocó: a relação com a natureza é uma maneira de deixar a memória do povo vivas para as próximas gerações. 

Ele se declara como um multi-artista ligado ao audiovisual, dedicando o seu trabalho para um meio transformador que tem poder de relatar narrativas que misturam experiências pessoais e de pessoas mais antigas da aldeia.

 

“Acredito que essa linguagem tem um poder transformador em vários aspectos,  através dela, consigo contar as histórias do nosso povo, mostrando nosso cotidiano, nossa luta e nossa resistência. Sobre meu processo criativo, ele começa na escuta: ouço os mais velhos, observo os detalhes da vida na aldeia, faço um paralelo entre os relatos e minha experiências também e busco traduzir isso em imagens e sons que transmitem verdade, a cultura e muitas vezes reflexões também”, disse. 

 

Apesar do enaltecimento da cultura e da arte indigena, Reidison conta que o financiamento de movimentos artísticos dos povos é pouco incentivado por órgãos públicos. A falta de acesso a recursos, editais e políticas públicas limitam as oportunidades para as etnias espalhadas pelo estado de Alagoas.

 

“Isso nos desafia a sermos criativos e resilientes, continuamos resistindo e ocupando espaços. Acredito também que há poucos investimentos de editais e tudo mais voltado para o artista como unidade e como uma pessoa. Muitas vezes, ele não pode consolidar seu sustento apenas na arte, não falo só de mim, mas conheço e vi vários relatos do ‘como vou viver de arte, se só os grandes conseguem investimento’, ‘esses editais só tem vagas para associações ou empresas?’, mesmo assim continuo e continuamos lutando e produzindo porque nossa arte é, antes de tudo, uma forma de luta e afirmação de identidade”, conta. 

 

O produtor audiovisual destaca como a comunicação, tecnologia e a arte são ferramentas de empoderamento para grupos originários que, desde sempre, tiveram sua voz silenciada. Ele ressalta o seu papel de facilitar a acessibilidade tecnológica para pessoas que ainda possuem dificuldades com aparelhos eletrônicos. 

 

A igaçaba das memórias ancestrais

Foto: Acervo pessoal

Ao falar com a Revista Alagoana, nos deparamos com uma situação curiosa: Yguaratã estava dividido entre conversar conosco e mergulhar de corpo e alma na criação de mais uma de suas obras. Em suas mãos, a produção de peças se torna uma forma de enaltecer a terra de que a linhagem paterna tanto se orgulha. 

Sua linhagem familiar se entrelaça com a história da reivindicação indígena no estado. Seus avós fizeram parte da Fazenda Canto, a primeira aldeia indigena reconhecida em Alagoas. Segundo relatos contados ao artesão, Dócia, avó de Lucas, foi parteira e curandeira do local.

Lucas nasceu a partir da miscigenação entre sua mãe, uma mulher sertaneja e seu pai, um homem indigena, do povo Xukuru-Kariri, localizados na região de Palmeira dos Índios.

Foto: Divulgação

“A minha ancestralidade me representa na totalidade, no meu eu, no meu jeito de tratar as pessoas, no meu gênio e, principalmente, em quem é Lucas Yguaratã. Sinto essa proteção desde a minha infância, desse outro sentido que nós não conseguimos enxergar, mas que sabemos que está lá, eu sei que minha herança vem muito desse lugar.”, destaca.

Suas obras destacam o que ouviu e vivenciou durante as passagens rotineiras em Maceió, no litoral alagoano, no Agreste e Sertão de Alagoas. Colocando na argila os folguedos e apresentações culturais que fizeram parte de sua história nos moldes das próprias mãos.

Mesmo não sendo inserido desde criança dentro da cultura do povo Xukuru-Kariri, Lucas manifesta sua arte através da produção de peças de cerâmica, tradição da cultura da etnia indígena da família paterna. Panelas, porrões (conhecidos como potes) são feitos pela população. 

“Por exemplo, a árvore de toré, que é uma manifestação que eu represento, nela, o índio está sentado fumando xanduca, na peça ele tá de olhos fechados, então ali ele tá realmente sentindo aquela sensação de prazer por estar cultuando uma tradição dele. Um professor estava me falando que alguns dos indígenas que faço têm alguns traços afros. Porque é uma mistura, convivi com muitas pessoas e a minha obra é mais ou menos isso, é uma mistura de tudo que eu vejo”, conta.

Para Lucas, suas misturas entre traços afro e indígenas criam uma identidade de trabalho única. Algumas obras, ainda que não assinadas, são fáceis de serem referenciadas ao olhar os detalhes do autor.

A tradição da cerâmica ajudou o povo Xukuri-Cariri a ser um território reconhecido, através de escavações foram encontradas as urnas sumárias feitas de barro cozido, as igaçabas. Dentro delas havia ossos de indígenas com alguns acessórios. Com isso, aquele lugar foi reconhecido como território indígena.

 

O papel da educação na ressignificação da história indígena

Foto: Suellen Oliveira/Ascom Uneal

A educação é um meio transformador. Em escolas, os alunos experienciam uma pequena parcela de uma sociedade em construção; já nas universidades, o ambiente é propício para o crescimento político, profissional e, essencialmente, social. Porém, os meios educativos possuem barreiras que impedem grupos étnicos iniciarem a vida acadêmica. O racismo, o preconceito contra identidades fora do padrão eurocêntrico e o elitismo são pontos que ainda são levantados em debates sobre inclusão em instituições de ensino federal.

Entretanto, ainda existem caminhos. No dia 1 de agosto foi realizada a primeira colação de grau coletiva (evento que celebra a conclusão de um período de ensino, seja o médio ou superior) de mais de 200 estudantes de 12 das 13 etnias de povos indígenas de Alagoas, feito inédito no Brasil. A turma fazia parte do Curso em Licenciatura Intercultural Indigena (CLIND) na Universidade Estadual de Alagoas (Uneal).

A graduação foi o primeiro curso a formar 80 indígenas em Alagoas. A formação atravessa o cotidiano, a história, a tradição e as lideranças que participam fortemente dentro do processo formativo dos estudantes de diferentes etnias. 

Jairo Campos, que é professor, museólogo e diretor do instituto, conta a importância de ecoar as vozes indígenas e reconhecer o papel cultural identitário dentro do cenário da educação, principalmente nas universidades públicas.

“É um reconhecimento em tempo deste momento histórico, da importância cultural identitária dos nossos povos originários, tradicionais que são quilombolas, ciganos, são povos originários pela universidade pública. Então, para as comunidades indígenas, nesse espaço de memória, homens e mulheres dedicam parte do seu tempo para criar e fazer arte a partir da sua cultura”, explica. 

Jairo destaca que, para os que não estão inseridos dentro da cultura indigena, essa é uma forma que as universidades públicas têm de incorporar atividades, entender a importância e criar uma nova atmosfera entre as comunidades de dentro e fora da população originária. 

Apesar do momento histórico, a falta de políticas públicas que impactam a vida, educação e outros setores é um obstáculo para a valorização das populações no estado. Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), menos de 1% das candidaturas (cerca de, apenas, 50 candidatos) no pleito alagoano foram de pessoas que se autodeclararam indígenas. Oito candidatos foram eleitos a cargos de prefeito ou vereador em alguns municípios do estado.

Para Jairo, os povos indígenas precisam ser vistos dentro do orçamento público e que a sociedade tenha consciência ao escolher representantes que entendam o protagonismo político que os povos originários precisam ter. 

“O nosso trabalho dentro da universidade termina sendo de provocar e de mobilizar o exercício da experiência, quem quer que corra atrás de recursos para desenvolver trabalhos, mas isso é um desafio muito grande. Então precisamos ter mais empregos, oportunidades nas aldeias, escolas, que isso seja realmente estruturado. Eles [indígenas] precisam estar no orçamento público e que isso seja revertido em ações sob diversas áreas para que essa reparação aconteça e que essas pessoas tenham direito a fatias generosas do nosso orçamento. Os nossos indígenas foram os primeiros, foram os guardadores de todas nossas riquezas, não dá mais para fazer de conta que essas pessoas não existem, não dá mais para silenciar e negar direitos. Não dá mais”, relata.

 

 

Foto: Divulgação

A sociedade brasileira ainda carrega preconceitos contra os povos originários. Apesar do histórico de miscigenação, grande parte da população mantém-se presa a padrões eurocêntricos. No campo educacional, a negação dos saberes indígenas constitui uma barreira significativa, dificultando sua valorização e perpetuando o apagamento histórico que se arrasta há séculos.

A partir das narrativas contadas entre as gerações das 13 etnias de Alagoas, Reidison, Yguaratã e os mais de 200 estudantes que se formaram na Uneal constroem espaços para a inserir a cultura de cada povo no corpo social alagoano. 

O cinema, o artesanato, a educação e outras linguagens artísticas evidenciam e reafirmam a riqueza e a beleza dos povos Kariri-Xocó e Xucuru-Kariri, por exemplo, essenciais para ressignificar a história indígena em um estado que pouco valoriza essa narrativa, e que, muitas vezes, privilegia monumentos e atrativos turísticos para agradar visitantes sem relação com os territórios em questão.

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