Tradição, resistência e identidade do forró em Alagoas

Embora seja o ritmo mais ouvido em Maceió e Patrimônio Cultural do Brasil, o forró enfrenta desvalorização e falta de apoio. Artistas, produtores e projetos educativos mantêm viva a música nordestina, conectando gerações e fortalecendo a identidade cultural de Alagoas

Por Maryana Carvalho sob supervisão de Lícia Souto

Anderson Fidellis, cantor e sanfoneiro. Foto: Day Fidelis

O forró é tradição: o som da sanfona e a cantoria arrastam o pé de quem está na plateia e aquecem o corpo de quem está em cima do palco. Segundo a pesquisa Cultura nas Capitais, é o estilo musical mais ouvido em Maceió, capital de Alagoas, com 34% de preferência do público. Além disso, também é reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil e  parte essencial da identidade nordestina. Mas será que recebe, de fato, o valor que merece?

Para entender o cenário alagoano de quem vive o forró há anos, a Revista Alagoana entrevistou quatro vozes inseridas na cena forrozeira: Anderson Fidellis, sanfoneiro e cantador; Rosiane, presidente da Associação de Forrozeiros de Alagoas (Asforral); Pinoquio do Arcodeon, produtor musical; e Celina, coordenadora dos projetos Forró na Escola e Palco Móvel do José Lessa.

Anderson Alan Fidellis de Souza começou longe dos palcos e do microfone. Quando ainda era menino, acompanhava o pai, pintor residencial, de casa em casa e o ajudava no trabalho. Como o pai não tinha habilidade de desenhar, era o filho quem rabiscava personagens e formas nas paredes, enquanto o mais velho se encarregava de cobri-las com tinta. Em reconhecimento pelo seu talento, recebia alguns “trocados”. 

“Me dava satisfação ver a parede com os desenhos que eu tinha feito. Às vezes eram personagens conhecidos, outras vezes eu inventava. Criava coisinhas que deixavam o pessoal das escolas satisfeito”, relembra.

Mas foi em outra arte que Fidellis realmente se encontrou: o forró. O gosto pela música nasceu ouvindo o radinho de seu avô, vigilante noturno, que tocava clássicos de Mestres como Zinho, Tinan Rodrigues e Geraldo Cardoso. No entanto, em 2004, ele descobriu alguém que mudou seu rumo e o inseriu de vez no baião: Luiz Gonzaga. Dois anos depois, formou o grupo do qual fez parte, o Trio Cheguei de Novo, junto ao amigo Lailson Lima e a irmã, Yzi Fidellis.

“Lailson me deu uma zabumba de alumínio, e minha irmã, tocava um triângulo feito de vergalhão de aço, desses usados para colunas na construção civil, feito pelo meu pai. Tocamos em portas de lojas, festas nas casas de professores, quadrilhas no interior. Foi essa lida que me deu experiência para entender o mundo de um artista iniciante, cheio de entusiasmo, sonhos, decepções, calotes, brincadeiras e coisas sérias”, conta Fidellis.

Anos depois, seu nome veio a público e tomou forma na cena alagoana com o primeiro projeto: “Lula Vive”. O trabalho era, ao mesmo tempo, um show narrativo da história do baião a partir do desbravamento e das canções de Luiz Gonzaga no Rio de Janeiro, e também  um projeto de pesquisa da Universidade Federal de Alagoas contemplado por uma bolsa chamada Vivências de Arte. Em 2012, o garotinho que desenhava de casa em casa, se tornou Anderson Fidellis, cantor e sanfoneiro. No começo, ele conta que queria performar o forró raiz – o tradicional –, isso porque via muitas bandas que se diziam do gênero, mas apresentavam uma versão “enlatada”, sem a essência da música nordestina. Em sua concepção, o movimento do piseiro – derivado do forró eletrônico – é algo mais honesto, porque assume a própria identidade.

“Antes, muitas bandas tratavam o forró tradicional como algo arcaico, destinado ao esquecimento. Hoje, quem está no piseiro assume que faz piseiro e, mesmo que apenas no discurso, reverencia as raízes. Por isso, acredito que o cenário atual esteja melhor”, explica. 

Sua fala expressa a mudança de como as novas gerações, que antes viam os ritmos tradicionais como algo ultrapassado, agora reverenciam o antigo através de novas melodias. Algo que ao mesmo tempo é inovador, mas ainda persiste na desvalorização do forró de raiz no cenário cultural e comercial. A consequência desse fenômeno recai sobre os mestres e artistas do gênero. Eles são rebaixados a um nicho e forçados a competir com superproduções que dominam o rádio, a TV e as festas de massa. Os palcos principais são, majoritariamente, ocupados pelas vertentes comerciais, o que resulta em cachês e infraestrutura menores para os sanfoneiros, precarizando sua arte. Fidellis relata que um bom exemplo disso é o São João. 

“Todo ano todo, mas me sinto um estranho no ninho, porque não vejo meus colegas ocupando esse espaço também. Às vezes toco entre um DJ e um funkeiro, outras entre um sertanejo e um pagodeiro… Sendo que o São João é a grande festa do forró”, relata.

Rosiane, presidente da Associação de Forrozeiros de Alagoas

Para Rosiane, presidente da Associação de Forrozeiros de Alagoas – que defende os interesses dos artistas da cena e assegura a participação deles em programações oficiais –, o grande problema é a falta de políticas públicas voltadas para o forró, o que evidencia o descompromisso dos gestores com esse segmento cultural.

“O ano tem doze meses, mas os artistas considerados ‘grandes atrações’ da mídia, com cachês milionários, acabam se apresentando justamente durante os festejos juninos, o que descaracteriza essa grande festa popular. O São João sempre foi o momento de destaque para os forrozeiros, e hoje a luta é para preservar essa tradição, que representa a cultura nordestina e consagra os artistas ligados ao forró como gênero musical”.

O forró é Patrimônio Cultural e Imaterial do Brasil e está se encaminhando para ser da Humanidade pela Unesco. Dessa forma, é papel do poder público proteger e difundir essa cultura, para que chegue às pessoas. A associação atua durante todo o ano para fortalecer esse reconhecimento e já conquistou avanços importantes, como a inclusão dos forrozeiros nos festejos juninos.

“Trata-se de uma Cultura Viva, que circula e se mantém. Por isso, olhamos para o futuro com grandes expectativas: mais espaços de trabalho, maior conscientização da própria categoria sobre sua relevância e, consequentemente, mais respeito por parte dos gestores públicos”, explica Rosiane.

Produção musical no forró

Pinoquio do Acordeon, produtor musical, sanfoneiro e cantador

Antes do palco, existem as quatro paredes de um estúdio, onde a música ganha forma. Por isso, a revista conversou com Pinoquio do Acordeon, produtor musical que mantém um estúdio em Maceió. Natural de Colônia Leopoldina, Alagoas, seu nome artístico não se refere ao boneco famoso associado a mentiras, mas às roupas que lembravam o maestro Pinoccio, também sanfoneiro.

“Comecei minha carreira de produtor quando montei minha própria equipe de trabalho, a banda. Eu decidia tudo, do início ao fim: a produção dos ensaios, os blocos de músicas, a transição de uma música para outra”, conta Pinoquio.

A ideia de criar o próprio estúdio surgiu da necessidade. Com muitos trabalhos a serem realizados e os estúdios disponíveis sempre ocupados, ele enfrentava dificuldades para gravar suas produções como queria. Por isso, resolveu montar seu próprio espaço, sem “dor de cabeça”.

Sobre o forró de raiz, o produtor lamenta o impacto da influência de empresários e políticos, que segundo ele, enfraqueceu a tradição. Ele reforça a importância da união entre músicos e da valorização da cultura local. “Todos devem se unir, se valorizar e exigir respeito à nossa cultura”, diz Pinoquio.

Pinoquio ressalta que os desafios enfrentados pelos músicos não são exclusivos de Alagoas, mas comuns em várias regiões do Brasil e do mundo. Para ele, um apoio mais efetivo do governo à cultura geraria mais oportunidades, não apenas para o forró, mas para todos os estilos musicais. Conclui que investir na música é investir na história da cultura.

Forró como educação, memória e comunidade 

A música também é sobre comunidade. José Lessa Gama foi fundador do site Forró Alagoano e presidente da Associação dos Forrozeiros de Alagoas. Por meio de suas pesquisas, ele transmitiu a cultura e a identidade do forró no estado. Criou alguns projetos, entre eles o Palco Móvel do Forró, que leva e difunde o gênero para diversas comunidades de Alagoas onde não há acesso a equipamentos culturais nem à produção artística local. Além disso, ajuda a preservar os mestres que pavimentaram a história do forró e, ao mesmo tempo, abre espaço para que a tradição continue, promovendo a democratização da cultura.

Celina Cerqueira, coordenadora do projeto Mapa do Forró

Nomes como Chau do Pife – reconhecido como Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana – e Anderson Fidellis já subiram ao trio para animar a plateia. Celina Cerqueira, filha de Lessa e Rosiane, ressalta a importância do projeto:“A presença do palco transforma os espaços públicos, que muitas vezes ficam vazios, em pontos de encontro. As famílias saem de casa, os vizinhos se reencontram, crianças dançam com os avós. Há algo simbólico e profundamente comunitário nisso. Vemos jovens artistas sendo convidados a tocar e moradores valorizando os artistas do próprio bairro. É uma ação que mexe com autoestima, memória afetiva e identidade”, explica.

Outra iniciativa de José Lessa foi o Forró do Povo, criado em 2022 com o objetivo de ensinar aos alunos das escolas as matrizes rítmicas do forró, como xote, xaxado, arrasta-pé e baião. Segundo Celina, nesse espírito, o trabalho evoluiu e se tornou Forró na Escola. O projeto adota uma abordagem pedagógica que combina apresentações de um casal de dançarinos com o roteiro ligado a temas escolares, como geografia, história, cultura e cidadania.

Ela observa que os alunos começam tímidos, mas rapidamente se envolvem na história e na dança do arrasta-pé. Além de levar o forró para escolas e comunidades, Celina criou o Mapa Forró Alagoano, uma plataforma que mapeia os artistas do estado. O espaço cataloga músicos de diversas cidades de Alagoas, funcionando como um museu digital que reconhece os cantores e aproxima o público de quem faz o forró acontecer. A plataforma reúne biografias, discografias e registros audiovisuais dos mestres tradicionais. “O objetivo é que essa base cresça e se fortaleça com a participação dos próprios artistas e do público”, explica.

Projeto Forró na Escola Estadual Teotônio Vilela Brandão

Mesmo com a desvalorização da cultura, projetos como os de José Lessa, Celina Cerqueira e Rosiane mantêm o forró presente e em crescimento. O forró não é apenas música: é tradição e história, que conecta pessoas de diferentes gerações. Como Anderson Fidellis mencionou, o ritmo se renova quando os antigos mestres passam seus conhecimentos para os mais jovens, garantindo que a cultura nordestina continue.

“Como dizia Raul Seixas, ‘os velhos já estão com a cabeça feita’. Trabalhar o forró com adolescentes, justamente nesse momento em que eles estão formando sua identidade, é uma oportunidade de reforçar o sentimento de pertencimento e de mostrar que o forró é parte da história deles”, conclui Celina.

 

 

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