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Vitor Pirralho e as fagulhas para um incêndio de reflexões

Texto de Lícia Souto

“Nobres no convés e os negros no porão, conte de um até dez e prenda a respiração, quem controla o passado tem o futuro à mão”.

A letra é do rapper alagoano Vitor Lucas Dias Barbosa, conhecido como Vitor Pirralho, que leva às mentes, através da literatura que ensina em sala de aula ou das letras de suas músicas, fagulhas para um incêndio de reflexões.

Seu terceiro álbum de Vitor Pirralho & Unidade chamado A Invenção é a Mãe das Necessidades foi lançado em fevereiro de 2019, com 13 faixas e as participações especiais de Ney Matogrosso, Zeca Baleiro, Pedro Luís, Ellen Oléria, Tonho Crocco, Luiz de Assis e Boby CH.

– Por que o nome Pirralho?

Esta é uma pergunta que me persegue. Pirralho é um apelido de infância, demorei a desenvolver minha estatura e por isso meus amigos me chamavam de pirralho. Depois que cresci, o apelido ficou, como nunca me aborreci com ele, nem era jocoso por parte de quem me apelidou, eles são meus amigos até hoje a bem da verdade, eu decidi também utilizar artisticamente a homenagem que me fora feita na infância/adolescência. Depois, estudando Literatura, me apaixonei pela obra de Oswald de Andrade e descobri que ele tinha um jornalzinho poético cujo nome era O Pirralho, aí gostei ainda mais do meu apelido. Tem umas “conspirações” que são muito legais.

– Em que ponto a literatura brasileira e o rap se encontram?

A prática do rap por si só já é uma prática literária. A tradução da sigla rap é ritmo e poesia, ou seja, a literatura já está no rap desde a sua fundação. É a poesia sendo cantada num ritmo, numa métrica, aliás, a origem da poesia já se dá por esse amálgama também. Por isso, o símbolo da poesia é uma lira (instrumento musical), pois os primeiros poetas recitavam seus versos com um acompanhamento musical. Agora, nem todo mundo que pratica o rap sabe dessas origens, poucos têm contato com a literatura em sua essência, eles simplesmente rimam.

– Como você vê a expressão do rap no Nordeste, sobretudo em Alagoas?

De fato, o rap no Nordeste tem crescido. Tem um divisor de águas aí: 2016. Dois caras se juntaram, o Baco Exu do Blues e o Diomedes Chinaski, um de Salvador e o outro de Recife, respectivamente, e fizeram uma música, a “Sulicídio”. Na faixa, eles disparam contra os atuais MCs e rappers da cena do Sul e Sudeste – os caras saíram dizendo os nomes desses MCs na música, mandam xingamentos e dizem que não presta para nada o som dos caras, que é tudo playboy de condomínio etc. Essa faixa deu uma zoada no Brasil de uma forma que todo mundo começou a responder, o pessoal que foi citado na faixa. Isso deu uma movimentada no rap nordestino e nacional também, é a tal da diss (disrespect song), que já acontecia nos Estados Unidos com aquela história famosa de Tupac e Notorious BIG, que acabou com os caras se matando. Aqui começou um monte de gente, com seus 21, 22 anos, que é a idade dos caras, a responder.

Depois disso, deu uma visibilidade geral no rap, na nova geração, na new school, e de lá para cá está bombando. Tem também a coisa do acesso à tecnologia, você só precisa de um computador em casa para fazer rap, música de maneira geral. Então tem um monte de beatmaker, produtor, MC etc. Começou-se a criar um mercado promissor em cima do rap. A produção audiovisual também aumentou, começaram a criar marcas também, roupas, estúdios, selos, enfim, criou-se um mercado muito forte de 2016 para cá. E Maceió acompanha esse movimento. Tem muita gente nova impulsionando essa onda. Tem o Boby CH, o Quarentena Sonora, o PH, o Jerry Loko, a Arielly, a Monster House – que é uma marca que trabalha com esse mercado novo do rap… ou seja, o pessoal tá se movimentando, tudo gente nova de 20 e poucos anos. São eles mesmos que se juntam e fazem.

Ainda é uma coisa um tanto aleatória, pois cada um que faça o seu, pouca convergência, pouca colaboração, e, o pior, essa onda de diss é uma praga, é todo mundo falando mal de todo mundo. Às vezes até há uns combinados marketeiros em torno disso, tipo assim: um fala do outro e o outro responde, isso movimenta e divide a plateia, mas no final todos se beneficiam da audiência, pois, positiva ou negativamente, as visualizações, comentários e compartilhamentos favorecem todos os lados. O saldo negativo disso tudo, a meu ver, é que a coisa se torna apenas entretenimento e perde a essência.

– Quem são suas referências e o que te inspira?

Minhas referências e inspirações vêm da literatura e da música mais antiga. Na literatura, principalmente o primeiro momento do Modernismo, a Antropofagia oswaldiana, é o que eu mais estudo e discuto. Na música, as coisas que mais me tocam vêm dos anos de 1970, principalmente no que se refere à black e à soul music, tanto estrangeiras quanto nacionais. Mas uma grande inspiração nacional, sem dúvida, vem dos anos 1990, é Chico Science & Nação Zumbi. Eles praticaram, como só a Tropicália praticara no final da década de 1960, a Antropofagia no campo musical.

– As letras de rap carregam muito da observação do cotidiano e da realidade ao redor do autor, do contexto em que ele vive. Suas letras são carregadas de referências da literatura, e, frequentemente, nos levam a refletir sobre as questões dos povos indígenas. Por que a escolha do contexto indígena?

Basicamente, a ideia é essa, trazer esse conceito mesmo. Veja bem, estamos vivendo uma distopia, uma distopia real, daquelas que alguns autores escreveram na literatura, como George Orwell em “1984” e Aldous Huxley em “Admirável Mundo Novo”, todo esse cerceamento e desprezo pela vida humana desses governos ditatoriais estão acontecendo. Então a ideia inicial do índio como o nativo que estava aqui (pelo menos no Brasil) antes de tudo isso acontecer, que eu já vinha trabalhando nos discos anteriores (principalmente no “Pau-Brasil”), eu decidi trazer à tona novamente no clipe Rumos e rumores, com Ney. Ney interpreta um pajé cuja terra não foi invadida ainda, o outro personagem, que eu interpreto, é alguém que está nessa distopia, nesse futuro-presente, no agora, que manda uma mensagem para o pajé via pen drive, naquela imagem símbolo da garrafa com um pen drive dentro, como se fosse um pergaminho, como antigamente se faziam naquelas mensagens em garrafas lançadas ao mar.

A minha ideia no clipe ao salvar as informações de uma sociedade bélica e doente e enviar isso para um índio pré-colonizado foi tipo: “Ó, tenta fazer alguma coisa porque tudo isso aqui que eu vou mandar de informação para você, essa tecnologia toda vai consumir a porra toda aqui e ela vai se tornar bélica e as pessoas vão se matar”. É nesse ponto que a coisa se expande, vai para além do indígena. Porque o nível é mundial. Eu tentei, a princípio, trazer essa questão nacional, do índio brasileiro que está recebendo essas informações, mas as imagens que são veiculadas no clipe são de guerra, de protestos, de bomba, de avião explodindo, essas coisas todas. Então realmente a coisa vai além da questão indígena apenas, mas tentei focar nessa ideia de quem estava no Brasil antes da colonização e fiz esse recorte. Mas quando eu mando informação para o índio, eu mando o que está acontecendo no mundo.

– Como surgiu e o que representa para você a parceria com Ney Matogrosso?

Foi sorte, a verdade é essa. Em 2009 – olha como as coisas são mais antigas até chegar nesse disco novo – ele veio fazer um show aqui em Maceió. Coincidentemente, a gente tinha recém-lançado o disco “Pau-Brasil”, nosso segundo disco, e o jornal Gazeta de Alagoas queria fazer uma matéria de capa do Caderno B, o caderno cultural, sobre o lançamento desse disco, já que ele foi viabilizado por causa de um prêmio nacional bastante conhecido, o Projeto Pixinguinha. A coincidência foi que o show de Ney foi numa sexta e no sábado saiu essa matéria, e no hotel em que ele estava hospedado aqui, o pessoal deixou no quarto dos hóspedes o jornal para eles lerem. Ney foi direto no caderno cultural e estava lá minha cara.

Ele se interessou porque dizia que era “rap antropofágico” e que o discurso das letras era no eu lírico do índio, ou seja, a primeira pessoa do discurso era indígena. Ele leu aquilo sobre o disco ser conceitual, baseado em Oswald de Andrade, nessa coisa da antropofagia da cultura indígena, devorar o inimigo para se tornar mais forte, a visão do disco tendo essa visão em primeira pessoa do índio. Ele pensou, depois me disse isso, que todo rap que ele ouvira, até hoje, a primeira pessoa é o descendente africano, do africano escravizado. O rap tem muito essa coisa realmente, da cultura negra, do sofrimento dos negros escravizados, que também é uma etnia importante, claro, na formação do povo brasileiro, só que quando tudo começou era o índio que estava aqui. Então decidi trazer essa visão que, a meu ver, pouco tinha sido trabalhada na música.

Não inventei isso, mas pouco se trabalhava a visão de ter o índio como um representante nacional. O rap, de fato, é a representação da etnia negra, dos descendentes de toda a história vergonhosa da escravidão. Daí que quando Ney leu a matéria, ele falou com a produtora local do show, Sue Chamusca, e perguntou se ela me conhecia. Ela disse que sim e ele disse que queria me conhecer. Ela me ligou na hora avisando. Eu não tinha lido a matéria ainda, era sábado pela manhã, eu ainda ia sair de casa para comprar o jornal. Fui lá e o conheci. Entreguei o disco, falei mais ou menos o que ele já tinha lido, bati um papo…

Ele já estava ali esperando no saguão do hotel o carro vir buscá-lo para levá-lo ao aeroporto e ir embora, então foi tudo muito rápido. Uns três meses depois, ele me ligou dizendo: “Gostei demais do disco e… vou gravar”, sem dizer ainda qual faixa gravaria. Fiquei bem emocionado. A gente continuou desenvolvendo uma relação, sempre conversando, sempre trocando ideia. Quando ele começou a ensaiar e fazer o show novo – ele fez um show para depois fazer o disco –, o Ney começou a me mandar os ensaios, e para minha surpresa e para surpresa de todo mundo foi “Tupi Fusão”. A surpresa foi porque o refrão dela fala meu nome, eu me apresento na música. Eu falo “Vitor Pi, vim em tupi, para entupir de ideia a cabeça de toda a trupe”. Eu pensei: “Essa está fora, não vai ser essa porque fala meu nome”.

Entre os amigos e a família ficou meio que uma aposta, e, claro, todo mundo já tinha descartado essa. Mas foi essa. Ele disse: “Como no refrão você diz o seu nome, não posso dizer ‘Vitor Pi, vim em tupi’, como se fosse você, vou modificar uma palavra do refrão. Eu vou dizer ‘Vitor Pi, vive em tupi’. Tem algum problema?” Eu disse: “Problema nenhum”. Isso foi em 2009, quando ele começou a ensaiar e a sair em turnê para depois gravar o disco. Quando ele gravou, era 2013. E foi assim que tudo começou. Para mim, isso é o ápice da realização artística. Profissionalmente, só falta viver de música.

– A América Latina está passando por diversas mudanças políticas e ondas de protestos em vários países. Muitos encaram como retrocesso histórico o período que estamos vivendo, especialmente no Brasil, como você vê esse cenário?

Vejo também como retrocesso, o cenário político, claro, mas sinto muito orgulho em ver o povo indo às ruas em busca de seus direitos, as minorias (que são as maiorias) lutando pela manutenção de suas culturas. O que vem acontecendo no Chile, por exemplo, é revolucionário, os povos indígenas do Brasil e de toda a América Latina se organizando, acessando politicamente seus direitos, tudo isso é motivador e está inserido no que eu já venho discutindo há muito. Ter a notícia do retorno do Rage Against The Machine em 2020 é sensacional também. É necessário! Precisamos de arte e ativismo, precisamos de artivismo! Não esmoreceremos; se necessário, derramaremos sangue para que mais sangue não seja derramado, é assim que se escreve a História.

*Entrevista realizada no final de 2019.

 

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