Coruripe lê sua própria história ao acolher seu espaço literário sob a batuta de Édipo Silsant

À frente de uma Biblioteca Pública no litoral sul alagoano, o artista e educador une literatura, memória e cultura popular para construir uma cidade onde o conhecimento e a arte são ferramentas de transformação

 

Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais

Apesar dos desafios históricos que ainda insistem em afastar as pessoas dos livros, a Biblioteca Pública de Coruripe vem, pouco a pouco, rompendo barreiras, resgatando vínculos e provando que o conhecimento é, sim, uma chave capaz de abrir portas e transformar vidas. No coração do litoral sul de Alagoas, esse espaço deixou de ser apenas um abrigo de livros para se tornar um verdadeiro ponto de encontro da cultura, da memória e da esperança.

Mais do que promover a leitura, a biblioteca abraça a história viva de Coruripe — mestres da oralidade, artistas populares e guardiões de saberes ancestrais que fazem pulsar a identidade do município. À frente desse movimento está Édipo Silsant, filho da terra, que desde cedo encontrou na dança, no teatro e na literatura uma maneira de reinventar sua própria história. De origem humilde, ele transformou cada desafio em combustível para construir não só sua trajetória artística e educacional, mas também para devolver à sua comunidade o que a arte lhe ensinou: dignidade, pertencimento e transformação.

Em entrevista à Revista Alagoana, Édipo compartilha os bastidores desse trabalho que costura literatura, cultura, identidade e afeto. Fala das sementes que já florescem e dos sonhos que ainda deseja plantar para que Coruripe, cada vez mais, se reconheça como território de leitores, de artistas e de resistência. Confira:

R.A.: Você acredita que com uma biblioteca em funcionamento em Coruripe, isso a torna uma cidade de leitores? Por que?

Édipo: Acredito que sim. Mas é um processo. Ainda enfrentamos, infelizmente, uma cultura da não leitura, e essa é uma realidade que precisa ser dita com todas as letras. Existe um certo desinteresse histórico, e muitas vezes estrutural, em relação à leitura. Mas também acredito profundamente que é possível mudar isso. E a mudança começa com o exemplo, com a vivência e com a visibilidade dos resultados que a leitura pode gerar.

Aqui na Biblioteca Pública de Coruripe, temos buscado justamente isso: exibir, provocar, mostrar como a leitura transforma vidas. Temos, por exemplo, contação de histórias infantis, rodas literárias com convidados da cidade — pessoas reais, muitas vezes ícones locais, que compartilham suas trajetórias transformadas pela leitura, pelo estudo e pela pesquisa.

A biblioteca passa a ser não apenas um local de estudo, mas um ponto de encontro, de convivência e de crescimento. Toda semana temos atividades pensadas para a comunidade, buscando desenvolver esse vínculo afetivo com a leitura. Então sim, Coruripe está se tornando uma cidade de leitores. E a biblioteca tem um papel fundamental nisso. Ela abre portas, acolhe e mostra, na prática, que o conhecimento transforma e que o livro é uma das ferramentas mais poderosas nesse processo.

R.A.: A cidade de Coruripe tem diversas expressões populares, como o mané do rosário, o artesanato da palha do ouricuri, as baianas praieiras, etc, que são transmitidas através, majoritariamente, da oralidade. Você como coordenador e/ou professor tem pensado ações que valorizem também esta prática sem distanciar-se da alfabetização? Quais?

Édipo: Com certeza. Faz parte da nossa missão reconhecer e valorizar essas manifestações culturais que são a alma de Coruripe. Já convidamos diversos desses ícones locais para participar das rodas literárias que promovemos na biblioteca. Nomes como Mestra Betânia e dona Benedita, guardiãs de saberes tradicionais, são presenças fundamentais nesses encontros.

Além da coordenação da biblioteca, também atuo como técnico de credenciamento artístico. Recentemente, conseguimos credenciar a única banda de pífano da cidade, liderada por seu José, lá da comunidade do Poxim.. É uma banda que já participou de celebrações religiosas e eventos culturais, e tê-los no nosso acervo e programação é motivo de muito orgulho. É importante que essas pessoas não sejam apenas convidadas a se apresentarem, mas também que se vejam como parte do processo educativo e artístico da cidade. Que possam ensinar, aprender, trocar. 

A oralidade, o fazer artesanal, o saber ancestral, tudo isso também é leitura do mundo. E quando essas práticas se conectam com a biblioteca, com os livros, com as crianças e os jovens, nasce um caminho muito bonito de pertencimento e valorização da identidade local.

R.A.: Livros nas estantes e uma boa infraestrutura são requisitos básicos de uma biblioteca. Mas, dentro da realidade de Coruripe, uma cidade litorânea do interior alagoano, o que mais é necessário para garantir o bom funcionamento de um espaço dedicado à literatura?

Édipo: A biblioteca vai muito além das paredes. Aqui em Coruripe, entendemos que manter uma biblioteca ativa é também estar presente nos espaços onde as pessoas estão. Por isso, além de garantir livros, ar-condicionado, café e salas confortáveis, nós investimos em projetos que levam a literatura até a comunidade.

Temos um trabalho constante nas escolas, onde realizamos contação de histórias, exibições de documentários e rodas de conversa. Mas não paramos por aí. Vamos às praças, às comunidades mais afastadas, às escolas da zona rural. Levamos literatura, arte e, principalmente, a possibilidade de transformação social. Porque, para nós, uma biblioteca viva é aquela que sai do lugar e alcança as pessoas, onde quer que elas estejam.

R.A.: Como tem sido a resposta da comunidade ao trabalho realizado pela biblioteca?

Édipo: A resposta ainda é tímida, mas já percebemos sinais de transformação. Muitas pessoas chegam aqui sem nem saber que Coruripe tem uma biblioteca pública — e, mais ainda, uma biblioteca desse porte. Alguns acham que é um espaço privado, chegam perguntando quanto custa para utilizar os serviços ou levar um livro. Quando explicamos que é tudo gratuito, os olhos se enchem de surpresa e interesse.

Essa reação diz muito sobre a nossa cidade. Coruripe tem crescido, recebido investimentos, e agora também tem um equipamento cultural que nos enche de orgulho. Mas há ainda um caminho a percorrer para quebrar essa cultura de que espaços como este não são para todos.

Então, aos poucos, a comunidade vai se apropriando do espaço. E é esse o nosso maior objetivo: mostrar que a biblioteca é pública, é para todos, e pode ser um ponto de virada na vida de quem entra por essas portas.

R.A.: Houve alguma história ou movimento vivido na biblioteca que tenha te marcado profundamente?

Édipo: Sim, vários momentos me marcaram profundamente. Um deles é o projeto de homenagear pessoas que contribuíram e ainda contribuem para o desenvolvimento de Coruripe — seja no campo cultural, educacional, econômico ou social. É muito emocionante reconhecer esses nomes enquanto eles ainda estão vivos, e também valorizar a memória dos que já partiram.

Um exemplo muito especial foi a homenagem ao professor Lemos. Ele foi um grande cronista, e se hoje existe uma biblioteca pública com esse nível de organização e relevância, é, em grande parte, por causa dele. Foi o único que se preocupou em registrar por escrito a história de Coruripe. Se ele não tivesse feito isso, talvez muito desse legado se perdesse. Ter um espaço dentro da biblioteca que carrega o nome dele é algo que nos honra profundamente.

Outro momento marcante foi a homenagem à dona Lindalva, poetisa, mulher de muitas batalhas, que mesmo com tantas dificuldades segue escrevendo. Ela nos contou que o grande desejo dela é publicar seus livros antes de morrer. Isso mexe muito com a gente. Ver como a literatura pode ser resistência, sonho, memória. Quando esses encontros acontecem, a gente entende que está construindo algo que vai muito além dos livros nas estantes. 

R.A.: Se precisássemos montar um espetáculo de dança formado por livros, quais títulos seriam indispensáveis? Preferencialmente aqueles encontrados na Biblioteca Pública de Coruripe.

Édipo: Ah, com certeza, Graciliano Ramos não poderia faltar nesse espetáculo, Machado de Assis também teria seu espaço. O professor Lemos, nosso cronista local, também estaria nesse palco, sua escrita registra a história de Coruripe com muito afeto e verdade. É o tipo de literatura que emociona e poderia ganhar vida com gestos, vozes e passos, um espetáculo sobre memória e pertencimento.

Não podemos deixar de lado José de Alencar, com seu romantismo e regionalismo, e Ariano Suassuna, seus textos são vivos, carregados de ritmo e musicalidade, perfeitos para um espetáculo que mistura literatura, teatro e movimento. E tantos outros autores que temos aqui na biblioteca, cada livro é uma possibilidade, uma coreografia em potencial. 

R.A.: Quais são os planos futuros da Biblioteca Pública de Coruripe?

Édipo: Estamos muito realizados com tudo que vem sendo realizado e entusiasmados com os projetos que estão por vir. Nosso objetivo é transformar a biblioteca em um grande polo de literatura e cultura para Coruripe e região. Queremos ampliar a oferta de eventos culturais, começando pelo nosso sarau literário, que já está em fase inicial e pretendemos poder reunir participantes não só do município, mas também de outros estados.

Além do sarau, planejamos trazer apresentações de arte, dança, teatro, e organizar, quem sabe, um grande festival literário que ganhe reconhecimento regional e até nacional celebrando a cultura e a diversidade literária da nossa terra. Queremos que a biblioteca seja mais do que um espaço de leitura: um lugar pulsante, onde arte, cultura e comunidade se encontrem para crescerem juntas.

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