Luiz Miguel Xavier da Silva
Quando falamos em literatura alagoana, é quase inevitável que a paisagem do sertão se levante na memória – árida, dura, castigada pelo sol e pela fome. Graciliano Ramos moldou esse imaginário com mãos firmes, e sua grandeza ninguém contesta. Mas e as outras Alagoas? Onde estão as palavras que nascem nos becos estreitos de Maceió, no asfalto rachado do Benedito Bentes, no corpo de uma travesti que escreve poemas enquanto espera a madrugada passar? Será que só existe literatura onde há seca, mandacaru e vaqueiros? Ou será que insistimos em uma ideia estreita demais de regionalismo?
Não podemos negar a importância das narrativas descritas nas malhas de ficção de Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, e muitos outros, mas ainda há tanto para se desbravar na literatura alagoana que não há como mensurar a riqueza poética do nosso estado em tão poucas linhas. Então por que não conhecer mais sobre ela?
É de se questionar que não haja nas escolas conversas e livros que nos aproximem da literatura alagoana, valorizando sempre o que temos no exterior e esquecendo da beleza que temos à nossa volta. As bibliotecas não seguem rumos diferentes, é comum passar horas rondando os corredores e observando as prateleiras e encontrar somente um exemplar de Vidas Secas (1938), que, por sinal, é uma ótima leitura, mas não é o que define toda a Alagoas.
Quem nunca se emocionou com o fim trágico da cachorrinha Baleia? Ou quem nunca se perguntou os verdadeiros nomes dos filhos de Fabiano e Sinhá Vitória?
No entanto, surge a necessidade de se questionar: que outros livros alagoanos eu já consumi?
Quantos outros autores, cuja escrita traduzem nossa alma, não estão escondidos por trás das cortinas do estereótipo de que o sertão é só seca?
Há uma Alagoas de Graciliano, sim, mas também uma que nunca coube na sua secura.
Breno Accioly, por exemplo, mesmo tão pouco conhecido nacionalmente, merece sua devida atenção. Ele coloca em suas narrativas um lirismo e uma melancolia que nos faz ranger os dentes e clamar por um arco de felicidade de seus personagens. Poucos autores dialogam com dilemas humanos – como o luto, a violência, o amor e a vingança – com a mesma maestria e sensibilidade que Breno Accioly. Além disso, mesmo com toda essa narrativa intimista, ele ainda consegue espaço em suas linhas para colocar críticas sobre a sociedade que nos faz refletir por horas e horas. Em A Valsa, Accioly expõe de maneira cortante como a mídia é capaz de distorcer a realidade em nome de narrativas convenientes. Ele escreve:
“Era a mais simples e real das investigações. Porém, na manhã seguinte, nenhum jornal falou do comício da fome. Falou, no entanto, de uma solidariedade do povo ao governo. Ora, enquanto o povo perguntava – onde está o pão, onde está o trabalho? – fotógrafos funcionavam máquinas e, quem não houvesse assistido ao comício, podia ter a impressão, ao ler os jornais, de que o governo era benquisto.”
Mesmo escrevendo décadas atrás, Breno Accioly já evidenciava que Alagoas não era feita apenas de terra seca, mas também de crítica social, dor íntima e complexidade humana.
O tempo passou, mas a inquietação dos nossos autores continua viva. Em Os Moinhos (2009),uma coletânea de poemas produzida por Milton Rosendo, que aborda as mais diversas formas de amor, sempre ligando pessoas a momentos e descrevendo sentimentos da forma mais poética e bela possível, nos empurra como um sopro para a imersão de seus escritos. Em Soneto de Infidelidade, por exemplo, ele discorre:
“Bem mais de ti me ajunto quanto mais de ti me afasto e se, em outros corpos, te busco numa vã entrega, é para, ao fim de tudo, achar-te em minha busca cega e a ti me entregar num amor mais dilatado e casto…”
Depois de Milton, encontramos outros nomes que escrevem com outras urgências. Brisa Paim, que embora tenha nascido na Bahia, passou tempo o suficiente em terras alagoanas para consolidar seu nome na literatura do estado, escreve em seu primeiro romance A Morte de Paula D. (2009) a agonia de uma dona de casa e mãe de três crianças numa típica família patriarcal em um dilema moral criado por perceber que não consegue se libertar de suas dores e amarguras, renegando então seu papel de mãe e esposa na tentativa de se reencontrar em si mesma. A força da sua escrita pode ser sentida quando ela escreve:
“Porém, ainda naquela condição invejável, naquela condição pipocante de felicidade, uma pontinha de mim, pontinha rebelde, está triste. Realmente triste e, então eu não entendo como podem conviver assim, lado a lado, como duas irmãs xifópagas, a tristeza e a felicidade.”
Mas Alagoas também é romance, leveza, cotidiano e afeto. Há também no acervo de literatura alagoana espaço para clichês e histórias que nos aquecem o peito, como a obra Amor em Jogo de Felipe Mateus, natural de União dos Palmares, que usa cenários reais da região nordeste, como a Praia de Ponta Verde, em Maceió, para compor a sua história: uma comédia romântica que conta sobre a vida de Henrique Valente, um interiorano que buscou na capital melhorias de vida e que se inscreveu com o ex-namorado, Apolo Brandão, no primeiro reality show de casais LGBTQIAPN+.
Mas a literatura alagoana não termina aí. Nilton Resende usa sua linguagem encantatória para fugir dos clichês do típico nordeste e inserir um pouco de homoerotismo em sua obra Diabolô (2011), uma coletânea de nove contos que te prendem do começo ao fim e que sempre apresenta alguma perda irremediável. É impossível ler esse livro e não desejar mais e mais páginas para se deliciar com a leitura.
E há também Ísis Florescer, atriz e escritora trans alagoana (a primeira mulher trans a publicar uma obra em Alagoas, diga-se de passagem), que em Segunda Pele (2011) transforma vivências marcadas pela marginalidade e pela violência em poesia de resistência. Sua escrita é pulsante, provocadora e reivindica um espaço onde a literatura alagoana abrace os corpos dissidentes com a mesma legitimidade que já conferiu ao vaqueiro do sertão.
A literatura alagoana não cabe apenas no retrato rachado do chão seco. Ela pulsa nos muros pichados da periferia, nas mensagens trocadas pelo celular, nas palavras ditas entre beijos apressados, nas calçadas de paralelepípedos e nas vielas escuras onde a linguagem se reinventa em gírias. Está viva. Só precisa ser lida.
Nos bares do centro, nas escolas públicas, nas redes sociais, em editoras independentes ou em livros vendidos diretamente das mãos dos autores, uma nova geração tem escrito com sangue, suor e sensibilidade aquilo que ainda insistimos em ignorar: Alagoas é múltipla. É travesti, preta, periférica, lésbica, indígena, nordestina até o osso. Há espaço para tanto aqui…
E talvez o que nos falte não seja literatura, mas leitura. Coragem para atravessar as páginas já batidas e encontrar o que ainda pulsa à margem. É tempo de virar a chave e perguntar de novo: Literatura alagoana é só sertão? Ou será que a gente é que anda lendo pouco do que realmente somos?
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Sobre o autor: Luiz Miguel Xavier da Silva é estudante de Letras pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e leitor-pesquisador que interroga a literatura e seus desvios. Natural de Delmiro Gouveia (AL), cultiva o desejo de se aprofundar em narrativas dissidentes e personagens que escapam do óbvio. Dedica-se a explorar a literatura alagoana em toda a sua amplitude — do sertão às paisagens urbanas — com um olhar voltado para uma produção sensível e diversa.