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Amar pretos é um ato político

Coluna de Madson Costa

Entender o amor não apenas como um sentimento construído organicamente e deliberadamente por dois indivíduos, mas como algo que também está sujeito aos fenômenos sociais é um dos pontos chaves para a compreensão do seu caráter político.

Amar não é um ato que se constrói aparte dos preceitos sociais(…), ele embasa-se majoritariamente nas implicações desses mesmos preceitos, que são, em sua maioria, excludentes para a população negra, que vem há séculos sendo ferida profundamente por questões que regem desde a estética natural de nossos traços até a simbologia de nossa cultura.

Além das agressões físicas e torturas da escravidão, por mais de 380 anos negros e negras vêm tendo sua autoestima e amor negados, sendo feridos, desde a infância, com concepções e jargões que ditam seus traços como feios e evitáveis: desde nossa cor até nossos lábios e cabelos. Nascer negro é um processo contínuo para recuperar e construir a autoestima, tomada desde a infância, onde sempre fomos os alvos das piadas, das chacotas e da feiura. “Nossos ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão”, elucida bell hooks, em “Vivendo de Amor”.  É cruel demais submeter pessoas a isso desde uma tenra idade e perpetuar tal durante toda sua vida.

Os aspectos mais básicos da negritude são rejeitados em prol da manutenção da estética hegemônica branca e europeia. Apenas veja quem dentro da hierarquia estética brasileira é visto como o padrão, o normal, o aceitável e o belo. Brancos compactuam para manterem seus privilégios, tanto estéticos quanto dentro das estruturas de poder de maneira consciente. Nos anos 1990, Maria Aparecida Bento cunhou o termo “pacto narcísico da branquitude”, em sua tese de doutorado na USP. O “pacto narcísico da branquitude” — uma espécie de acordo silencioso, onde pessoas brancas se contratam, se premiam, se aplaudem, se protegem.

Grada Kilomba, pensadora negra portuguesa, explica perfeitamente como acontece esse fenômeno que apaga o que não é branco. No reflexo narcísico, pessoas brancas vivem num mundo onde sua imagem é representada de forma avassaladora. Na televisão, nos jornais, nas redações, na Oscar Freire, no Leblon, nos círculos de elite das cidades do interior, nas festas coloniais na Bahia, a cor é branca e isso não choca. Aliás, isso sequer é questionado, ao passo que quando uma pessoa negra altiva entra no recinto “que não lhe pertence” passa a ser notada por todos, muitas vezes com exotização, muitas vezes com incômodo. “Uma metáfora interessante, não é? A negritude é sempre vista, mas é ausente. A branquitude nunca se vê, mas está sempre presente”.

Não somente com a tese de Cida Bento é visto como brancos têm consciência dos seus privilégios e tentam continuar a tomar vantagem disso.  Na pesquisa “Sim, nós somos racistas: Estudo psicossocial da branquitude paulista”, Lia Vainer Schucman expõe como eles tanto sabem quanto se consideram como o padrão moral, intelectual, cultural e estético, logo, não racializado. Mesmo para os brancos progressistas, o racismo ainda é um processo subjetivo, que que foge de suas escalas de percepção, tanto por uma burra inconsciência racial quanto por uma não-vontade pôr-se no lugar do outro por ego ou medo de perder seus privilégios.

Nesse contexto, amar um preto surge como um ato contra a hegemonia estética branca, como uma forma de resistir e lutar contra tal, como Claudete Alves nos alerta, na sua tese de mestrado sobre a solidão da mulher preta. A solidão não é apenas da mulher preta, mas, sim, de toda comunidade no geral. Digo amar porque há três fenômenos recorrentes nas relações amorosas com pessoas negras; a objetificação e erotização total de nossos corpos como meros mecanismos de satisfação sexual, a imposição da solidão negra, quando não se atinge os padrões utópicos de beleza para negros, baseados em traços finos e quase que impossíveis, ou negação do afeto e do carinho como se não os merecêssemos.

Amar pretos é um ato político contra as medidas de embranquecimento da população, que visavam progressivamente apagar o fenótipo negro do Brasil, no período pós-abolição, como o racismo estrutural há anos tenta, é um ato contra a solidão da comunidade negra, contra a negligencia emocional, contra o racismo estético, contra a hegemonia branca. Amar um preto ou preta é ajudar a reconstruir histórias, a sua autoafirmação. Fomos negados o direito de amar por séculos, de sentir e receber afeto, de chorar e desejar, mesmo após a abolição, a repressão emocional foi componente essencial para nossa sobrevivência perante a perseguição e segregação socioespacial racial.

“Ame ume pretinhe”

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