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ou memórias que fiz do ano que nem acabou

Coluna de Nathália Bezerra

“sim, o mundo está absurdamente esquisito

já ninguém confia nas imposições dos prefeitos

a esta hora na terra é metade carnaval, metade conspiração

metade medo, metade fé

metade folia, metade desespero

e provavelmente a esta hora

uma metade do mundo está dançando

e outra dormindo

ainda outra metade limpando as armas

outra limpando o pó das flores”

Fevereiro, de Matilde Campilho

Nada do que eu escrevia parecia caber nesse tempo e nesse espaço que se aperta entre dezembro e janeiro. Nada cabe nesse desencontro de expectativas, de tentativas de fazer planos, de pregar as listas acima da cabeça. Faço planos mirabolantes que quase sempre entram em desuso. Tenho pouca ou quase nenhuma habilidade pra fazer promessas, com a quase certeza de que acumulo listas não cumpridas no bloco de notas. Acredito que muito do que eu tento fazer aparece aqui: no ato de escrever com a garganta seca. Não sei escrever com delicadezas ou meias arestas. Precisa passar pelo corpo, precisa descer pela pele.

Gastei algumas horas me dedicando a pensar o que seria escrever uma coluna quando, nessas alturas, já não se existe sem pé nem cabeça. Como se fosse possível aproveitar-se da segunda-feira pra começar de novo, foi também em dia desses que eu contei a uma amiga que gostava era da parte de ver como o texto fica depois do corte: parece que escrever também tem dessas horas de ver palavra que nem ferida aberta. E eu vivo fazendo isso o tempo todo. Parece que é nessa hora exata da fratura exposta que se dá pra escrever com vida, como quem enche os pulmões de ar. Dizem que a apnéia é suspender involuntariamente a respiração antes do mergulho: coisa parecida se faz escrevendo.

Tenho a mania de repetir os mesmos filmes o tempo todo. E eu achava que era pra lembrar, mas foi também dia desses que eu percebi que faço isso pra não esquecer. Não foram poucas vezes que tentei fugir da minha memória e veja só o que acontece quando eu fico ardendo na água ou molhando fogo na ponta dos pés: fiz isso tudo de um respiro só, como aquela coisa que eu ia dizer da apnéia e não disse. Eu preciso segurar todo ar que eu tenho nos pulmões miúdos pra ver se dá tempo de expirar antes que eu esqueça a palavra. Nesse meio tempo eu fico quase viva e quase morta esperando que o texto aconteça: esperando pra ver até onde o mergulho me carrega e até que termine, pra ver se eu chego na superfície não intacta, mas sem medo.

Uma vez me disseram que eu vivia me jogando e abraçando as coisas como se não tivesse o que perder e talvez eu não tenha nem isso e nem coragem. Mas é com a boca amarga e o nariz tampado que eu fecho os olhos antes de cair na água de novo e dizer: que eu volto. Eu sempre volto.

E se eu só vivo de novo quando volto a escrever, é feito jogar o corpo todo pra ver se eu acho as coisas que ainda não escrevi e eu nem vou. Escrever é um perigo desses que eu escolhi correr ao meio dia e pular dos açudes como quem espera por um amor do outro lado da ponte. Eu amo ouvir essa história, a do açude. É antiga, já tem mais de cinquenta anos mas eu não vou contar aqui dessa vez. Me pergunta outro dia? Escrever uma coluna me custa até as vértebras. É por isso que eu fico.

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