O movimento nerd não para de crescer — e em Alagoas, ele já é parte da cena cultural
Texto de Esmeralda Donato com supervisão de Bertrand Morais
Celebrado neste domingo (25), o Dia do Orgulho Nerd marca um fenômeno que deixou de ser nichado para se tornar expressão de massa no Brasil. Em todo o país, eventos temáticos lotam centros de convenções e movimentam bilhões na indústria do entretenimento. Em Maceió, o Festival da Cultura Nerd é um reflexo local dessa expansão: na última edição, mais de 16 mil pessoas passaram pela Praça Multieventos, mostrando que o amor por animes, HQs, games, K-pop e ficção científica tem sotaque, território e protagonismo alagoano.
O universo nerd, também chamado de geek, nasce da valorização de interesses historicamente marginalizados pela cultura de massa, como ficção científica, quadrinhos, jogos de tabuleiro, tecnologia e literatura fantástica. O estigma que por décadas acompanhou fãs de cultura pop deu lugar a um orgulho que movimenta bilheterias, feiras temáticas, cosplayers e até a indústria de inovação.
No Brasil, esse fenômeno ganhou força nos anos 2000, impulsionado pela internet e pela expansão do acesso a produtos culturais. Hoje, ser geek é ser protagonista — e isso se reflete tanto nos produtos que consumimos quanto nas histórias que escolhemos contar.
A Revista Alagoana conversou com Lita Oliveira, com mais de 20 anos de vivência na cultura nerd, a artista compartilha sua trajetória como cosplay, e mostra que, mais do que entretenimento, o orgulho geek é uma forma de pertencimento e expressão identitária na sociedade contemporânea. Confira:
R.A: Você está há mais de 20 anos nesse universo. Como foi seu primeiro contato com o cosplay e o que te fez continuar?
Lita: Tudo começou no colégio, com uma professora que fazia cosplay. Ela me levou para meu primeiro evento em 2002, no Sesc Poço. Era bem simples, só exibição de animes e jogos de RPG. Em 2004, fiz meu primeiro cosplay consciente: Sakura de Naruto. Sempre fui fascinada por esse universo, mas era difícil, não tinha internet, perucas, nem costureiras que topassem fazer esse tipo de roupa. Mesmo antes disso, eu já me fantasiava. Fui criada pela TV Manchete. Meu primeiro “cosplay do coração” foi no aniversário de Cavaleiros do Zodíaco.
R.A: Como era ser nerd e cosplayer em Alagoas nos anos 2000? E como vê a cena hoje?
Lita: Naquela época, ser nerd era ser “CDF esquisito”. As pessoas estranhavam. Não era como hoje, que todo mundo conhece um super-herói. Era difícil consumir cultura nerd, não tinham lojas, as revistas demoravam a chegar, e a internet era limitada. Hoje a cultura cresceu muito. Temos editais, eventos, cosplayers premiados, e até o Festival da Planet, que deve virar referência no Nordeste. Ainda é difícil, mas estamos avançando.
R.A: E hoje, como você se vê dentro da cultura nerd alagoana?
Lita: Eu cresci com isso. Meu pai me apresentou aos games e quadrinhos. Hoje, sou arquiteta e uso muito do que aprendi no cosplay no meu trabalho e vice-versa. Para mim, é um hobby terapêutico. Já ganhei apoio do governo, fiz trabalhos com impressão 3D e customização, mas o que mais gosto é o processo criativo.
R.A: Você costuma participar de eventos fora do estado. Como tem sido essa experiência com o público em outros lugares?
Lita: É incrível. Quando levei meu cosplay da Lady Dimitrescu para a BGS, fiquei com mais de 2 metros de altura — chamava muita atenção! Demorei mais de duas horas para andar 200 metros porque todo mundo queria fazer foto. Era emocionante ver fãs se encantando, se sentindo representados. Já me vesti de princesa da Disney também, e é muito comum as crianças virem correndo, se ajoelharem, abraçarem… Essas reações fazem tudo valer a pena.
R.A: Como é ser jurada em eventos? E como alguém pode chegar a esse lugar?
Lita: É preciso estudar muito. Assistir apresentações, entender estilos de outras regiões, ter noção de costura, tecidos, caimento. Isso ajuda a avaliar com mais sensibilidade. Você aprende participando, competindo, observando. O Brasil é referência no cosplay mundial, dá para aprender muito só assistindo.
R.A: E sobre costurar seus próprios figurinos, como surgiu isso?
Lita: Sempre quis aprender, mas só na pandemia que levei a sério. Já tinha noção de tecidos e cortes. Comecei fazendo ajustes simples, depois roupas inteiras. Ainda peço ajuda para figurinos complexos, mas faço muitas reformas sozinha. Não vejo problema em comprar peças prontas, cosplay é sobre interpretar, não sobre fazer tudo do zero.
R.A: Como você aborda a gordofobia dentro da cultura nerd?
Lita: É um tema difícil. Já fui muito atacada por ser fora do padrão, principalmente no começo. Hoje, com maturidade e terapia, lido melhor. Mas sei que muita gente sofre calada. Por isso falo sobre isso nas redes: para dar apoio a quem precisa. Se alguém tivesse me dito lá atrás que eu podia ser qualquer personagem, independente do meu corpo, teria feito toda a diferença.
R.A: E como o cosplay se relaciona com suas outras áreas, como arquitetura e música?
Lita: Para mim, tudo se mistura. No mestrado, estudo arquitetura e games. Meu TCC foi sobre acessibilidade em estúdios de quadrinhos. Também toco violino num projeto no Hospital Universitário – HU, e às vezes vou de cosplay. As crianças adoram! O cosplay virou parte de mim. É minha válvula de escape, minha forma de expressão. Até andando na rua vejo um cano e penso: “dá uma boa espada”. É automático.
R.A: Para encerrar: o que o cosplay representa para você hoje?
Lita: O cosplay virou parte de quem eu sou. Mesmo nos momentos mais cansativos, ele é minha válvula de escape. Quando estou montando um figurino, ajustando uma peruca ou só sonhando com a próxima apresentação, consigo relaxar e me divertir. Às vezes, vejo uma caixa na rua e penso: “isso dá uma ótima maleta de personagem!”.
Mais do que um hobby, o cosplay me conecta com as pessoas, me dá esperança, aquece o coração. Por mais difícil que seja o dia, quando alguém sorri ao me ver vestida de um personagem que ama, tudo vale a pena.